domingo, 20 de janeiro de 2019

Não se pode, com o Evangelho na mão, decidir a sorte dos homens


Em fevereiro de 2018, o Ministro do Interior italiano Matteo Salvini, então candidato a chefe do Governo, afirmou, em Milão, na Praça da Catedral, tendo a Constituição italiana numa das mãos e os Evangelhos na outra, que se comprometia a ser ‘fiel’ ao seu povo, ‘respeitando os ensinamentos’ de ambos os textos.
Porém, em setembro de 2018, o Governo italiano endureceu as condições para os imigrantes no país ao emitir um decreto que prevê, entre outras coisas, fortes restrições para a obtenção de vistos humanitários e a expulsão de imigrantes considerados “perigo social” ou dos condenados em primeira instância.
O decreto foi aprovado pelo Conselho de Ministros, sob proposta pelo Ministro do Interior, o ultradireitista Matteo Salvini, que nos três meses em que ocupa o cargo tem implementado uma política de restrição da imigração. Disse Salvini, em entrevista ao lado do primeiro-ministro italiano, Giuseppe Conte:
Em caso de perigo social ou de condenação em primeira instância de um solicitante de refúgio, isso será motivo suficiente para levá-lo a um centro de refugiados para que sejam iniciados os trâmites para sua expulsão”.
O decreto – contemplando condenações em primeira instância por delitos relacionados com drogas, roubo, violência sexual, violência contra um funcionário público ou lesões graves – tem por meta “fazer a Itália mais segura”, afirmou Salvini nas redes sociais, além de contribuir para o fortalecimento do país na luta contra a máfia, bem como contra o tráfico de pessoas, fazendo com que “criminosos” e “falsos requerentes de refúgio” sejam expulsos mais rapidamente.
O decreto prevê, entre outras, medidas como a retirada da cidadania italiana a imigrantes que sejam condenados em definitivo por terrorismo ou o impedimento da entrada no país de estrangeiros que tenham sido expulsos de outros países do espaço Schengen.
O período máximo de detenção dum imigrante em vias de deportação será ampliado de 90 para 180 dias, dando mais tempo ao Estado para completar o processo de deportação. A maioria dos requerentes de refúgio deverá ficar em grandes centros de acolhimento.
A concessão de vistos de permanência por motivos humanitários será fortemente restrita e passará a contemplar apenas vítimas de exploração no trabalho, tráfico humano, violência doméstica, calamidades naturais, tratamentos médicos graves ou que tenham reconhecidamente realizado atos de valor para a sociedade.
Nos últimos anos, cerca de 25% dos pedidos de refúgio na Itália foram concedidos com base nesse status, e a grande maioria dos imigrantes que chegam ao país são fugitivos da pobreza.
No primeiro trimestre de 2018, as autoridades da Itália examinaram cerca de 23 mil pedidos de refúgio, segundo a Fondazione ISMU, um centro de pesquisas sobre migração. Mais de 61% dos pedidos foram rejeitados, e 21% dos requerentes obtiveram proteção humanitária. Apenas 6% obtiveram o status de refugiados.
Os media italianos noticiaram que foram alterados trechos do projeto de decreto porque o presidente os considerara inconstitucionais.
Desde que assumiu o poder, a 1 de junho, o governo de coligação (Liga do Morte e Movimento Cinco Estrelas) tem recusado permitir o desembarque de navios de resgate de migrantes no Mediterrâneo. E Salvini prometeu acelerar as deportações de ilegais e sustentou que as comunidades de ciganos devem ser recenseadas e seus integrantes estrangeiros deportados.
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Face às susoditas declarações de Salvini e à atual política imigratória, o Cardeal italiano Francesco Montenegro, Arcebispo de Agrigento – cuja arquidiocese compreende a ilha de Lampedusa, no Mediterrâneo, para onde têm rumado milhares de migrantes em busca de vida melhor, mas que, muitas vezes, não chegam a porto seguro, perecendo no mar – considera que é uma visão “parcial” debater o problema da imigração “com as lentes da segurança” e que o medo dos migrantes arrisca o regresso ao tempo das fortalezas, castelos e pontes levadiças.
Ao prelado agrigentense parece “impossível” alguém pensar e dizer, “com o Evangelho na mão, ‘eu decido a sorte dos homens’ deixando-os no mar”. É a referência óbvia a gestos e declarações do governante que invoca Deus, não só em vão, mas para agir malédica e maleficamente.
Neste âmbito, Rui Jorge Martins publicou, a 17 de janeiro, no site do SNPC (Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura), uma pequena entrevista – que traduziu e editou – do prelado a Domenico Agasso Jr, de que se respigam as afirmações mais pertinentes.
Sobre o tema da segurança, considerou, em termos gerais, que se trata dum “problema que é preciso ter em conta”, mas sendo “preciso estarmos atentos” para não cairmos em exageros implausíveis, fruto de “uma motivação de escolhas nem sempre partilháveis”. Com efeito, “enfrentar o problema da imigração com as lentes da segurança torna-se parcial”. E, se é verdade que “a imigração pressupõe riscos”, também “oferece possibilidades”. Por isso, “o problema da segurança não nos deve fazer tornar uma fortaleza”, o que “não é sequer atual num mundo que olha para o futuro globalizando-se”.
Assim, em consonância com “os apelos evangélicos do Papa Francisco ao acolhimento, deve-se deixar claro queo Evangelho deve ser assumido com o peso que tem”, pois, se lhe fizermos “descontos segundo as necessidades”, ele “deixa de ser Evangelho”. E esclarece:
A Palavra de Deus é o navegador por satélite [GPS] para poder ir para a frente, viver a sua fé. Um cristão não pode deixar de ter em conta o Evangelho. Há confirmação disto inclusive na história da Igreja: os mártires, por coerência com Evangelho, desobedeceram aos imperadores, sacrificando a sua vida. É por isso que deve haver um espaço também para a objeção de consciência: Diante de uma lei injusta, que devo fazer? Fechar os olhos e aceitar?”.
Depois, responde à questão: “Não podendo um cristão aceitar que pessoas sejam deixadas nas estradas ou no mar, como é compatível a linha da Liga Norte repelir os desesperados nas barcaças com a exposição do Rosário e o juramento de Salvini sobre o Evangelho?
Diz o Cardeal, ressalvando que, sendo problema de consciência de Salvini, não o pode julgar:
Não o entendo, mas não me sinto na disposição de fazer um juízo. Não compreendo como consegue colocar as duas coisas juntas, porque me parece impossível, com o Evangelho na mão dizer ‘eu decido a sorte dos homens’, deixando-os no mar.”.
Contando das reações que tem da parte de alguns relativamente à sua posição de criticar a prioridade do tratamento dos animais em detrimento das pessoas, refere:  
Estou a receber muitos insultos porque confrontei a opção de deixar no mar pessoas com a de abandonar os animais na rua. Num e-mail duríssimo escreveram-me que os animais não fazem os danos que poderá fazer um homem que chega de outra terra. Vi um poster publicitário com o focinho de um cão que ‘pede’: ‘Não me abandones’. Pergunto-me: porque é que o cão tem direito àquele ‘pedido’ e não o têm homens, mulheres e crianças desesperadas.”.
Declara categoricamente que respeita os animais e não quer “que o cão seja abandonado”, mas que também não aceita “que seres humanos sejam abandonados ao risco de morrer na água à espera que outras pessoas acabem de discutir, sentadas à volta de uma mesa”.
A seguir, admitindo que “quem está naquelas embarcações pode não ser perseguido, mas ter problemas políticos, não ser refugiado” interroga-se:
Mas então, e os nossos emigrantes que partem daqui? Haverá talvez uma perseguição em Itália? Têm motivos religiosos? Um dia também eles poderão ser rejeitados; e nós, como reagiremos?”.
E constata:
Partem muitos do sul porque aqui não há trabalho – eu tenho 153 mil emigrantes da minha diocese – e não se foram embora para viagens de turismo. Porquê, então, pretender que sejam respeitados os direitos dos ‘nossos migrantes’ e não se comportar do mesmo modo para quem chega até nós? Cada homem tem direito a uma vida digna e respeitada.”.
Quanto à atitude a ter com os migrantes, adverte contra o pressuposto de quem vem ao nosso encontro ser “um potencial delinquente”, o que levaria as pessoas a fecharem-se em casa para não não voltarem a sair. Por isso, é de seguir o conselho de Jesus: sermos “simples, mas também astutos”, ou seja, caminhar “com os olhos abertos”. Se uma pessoa é perigosa, “então a é chamada polícia “a dar segurança”. Porém, nada faz supor “que cada homem que chega, só porque tem a cor da pele diferente, é um sujeito que faz o mal”. E confessa:
Quando vi as crianças mortas no naufrágio de Lampedusa, os seus caixões brancos, e o rosto de tantos imigrantes, não notei potenciais terroristas. Ora, se em viagem me acolhessem dizendo-me ‘vem da Sicília, então é um mafioso’, sentir-me-ia desconfortável.”.
Confessa que o mais preocupante na questão da segurança-acolhimento-integração é “a síndrome do medo” que origina “a reação de fechar portas e janelas, criar muros”, o que “não permite olhar para o futuro”, pois, fechando “a casa a sete chaves” e ficando “às escuras”, não saberemos o “que acontece do lado de fora”. Ora, neste contexto migratório, “há quem tenha vontade de mudar, de construir um futuro aberto, acolhedor e solidário” e “quem pretende um futuro baseado nos muros semelhantes aos do passado”. E Francesco Montenegro questiona: “Mas se abatemos esses muros que no passado construímos, que sentido faz construir outros”?
Por isso, apela ao acolhimento, o que “vale para todos”. Porém, não basta tirá-los “do mar”, mas também permitir-lhes que vivam “dignamente”. E a integração não consiste em eles agora terem de pensar como nós, mas, ao invés, “é preciso colocar um ao lado do outro, ver o que há em comum e caminhar em conjunto”. Por agora, diz o Cardeal, “somos capazes de viver a tolerância ao máximo – ‘porta-te bem, senão…’ –, mas isto não é integração. E considera:
Fala-se do mundo moderno, aldeia global, globalização, mas depois encontramo-nos em situações de um contra o outro. É este o futuro que nos espera? Regressaremos aos castelos, às pontes levadiças com água à volta de modo que ninguém entre?
Por fim, conclui: “Pensar no futuro com o homem na Lua e nós aqui a construir couraças e fortes é realmente absurdo”.
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Ocorreu, a 18 de janeiro, a primeira tragédia de 2019 com mortes nas rotas do mar Mediterrâneo, quando um bote sobrecarregado de migrantes naufragou a 50 milhas da costa da Líbia: 117 pessoas morreram afogadas, segundo informações da OIM (Organização Internacional das Migrações) na Itália.
Flavio di Giacomo, porta-voz da OIM na Itália, informou que três pessoas foram resgatadas pela marinha italiana, transportadas para a ilha de Lampedusa, na Itália, e hospitalizadas. Os sobreviventes revelaram que nenhum dos migrantes no barco inflável usava coletes salva-vidas, pois muitos migrantes não se podem dar ao luxo de os comprar, já que representam um custo adicional ao da travessia.
Entre os mortos, estão cerca de dez mulheres, uma delas grávida, e duas crianças. A maioria é proveniente da Nigéria, de Camarões, da Gâmbia, da Costa do Marfim e do Sudão.
Em nota distribuída à comunicação social, a Comunidade de Santo Egídio considera:
Não se pode ignorar isso, seja por humanidade – que deveria ser de todos – seja pela tragédia destas pessoas. Diante de um fenómeno de proporções tão grandes, a União Europeia deveria colocar de lado as pequenas discussões e avançar com propostas amplas, que possam contrastar eficazmente os traficantes de seres humanos.”.
E prossegue em tom crítico:
Antes de tudo, é preciso salvar quem está em perigo, não apenas nos mares, mas também no deserto e em campos de detenção na África. Em segundo lugar, é preciso intervir com inteligência, e de forma consistente, nos países de proveniência da imigração, reforçando a paz e criando trabalho, a começar pelos jovens. Em terceiro lugar, é urgente também pensar no ingresso regulamentado – como os ‘corredores humanitários’ em caso de guerras – porque favorecem a integração, que é a única resposta humana, económica e socialmente sustentável ao fenómeno da migração, que certamente nos acompanhará nos próximos anos.”.
Obviamente, como antes de mais, “é preciso salvar vidas em perigo”, a Comunidade de Santo Egídio pede mais humanidade aos governantes, propõe intervir nos países de origem da migração e criar ingressos regulamentados para integrar os migrantes na Europa.
Por sua vez, o Papa disse, em relação aos naufrágios no Mediterrâneo, que os migrantes buscavam apenas um futuro”.
Depois da recitação do Angelus na Praça de São Pedro e de conceder a bênção a todos os presentes, o Papa revelou ter duas grandes dores no coração: a Colômbia e o Mar Mediterrâneo.
Sobre a Colômbia, confessou:
Desejo assegurar a minha proximidade ao povo colombiano depois do ataque terrorista de quinta-feira na Escola Nacional da Polícia. Oro pelas vítimas e pelos seus familiares e continuo a rezar pelo caminho da paz na Colômbia.”.  
Em relação aos náufragos no Mediterrâneo, disse:
Penso nas 170 vítimas de naufrágios no Mediterrâneo. Estas pessoas procuravam futuro para suas vidas. Vítimas, talvez, de traficantes de seres humanos. Rezemos por elas e por aqueles que têm responsabilidade pelo que aconteceu.”.
E rezou a ‘Ave Maria’ pelos mortos e por aqueles que têm responsabilidade pelo que aconteceu.
Recorde-se que, nas últimas horas, se registaram dois naufrágios: ao largo da Líbia, 117 pessoas, incluindo mulheres e crianças, morreram afogadas, enquanto 53 migrantes perderam a vida no Mar de Alboran, entre a Espanha e Marrocos
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Pode evocar-se o Evangelho e rejeitar imigrantes?
2019.01.20 – Louro de Carvalho

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