Em fevereiro de 2018, o Ministro do Interior italiano Matteo Salvini, então candidato a chefe do Governo,
afirmou, em Milão, na Praça da Catedral, tendo a Constituição italiana numa das
mãos e os Evangelhos na outra, que se comprometia a ser ‘fiel’ ao seu povo, ‘respeitando
os ensinamentos’ de ambos os textos.
Porém, em setembro de 2018, o Governo italiano endureceu as
condições para os imigrantes no país ao emitir um decreto que prevê, entre
outras coisas, fortes restrições para a obtenção de vistos humanitários e
a expulsão de imigrantes considerados “perigo social” ou dos condenados em
primeira instância.
O decreto foi aprovado pelo Conselho de Ministros, sob
proposta pelo Ministro do Interior, o ultradireitista Matteo Salvini, que nos
três meses em que ocupa o cargo tem implementado uma política de restrição da
imigração. Disse Salvini, em entrevista ao lado do primeiro-ministro
italiano, Giuseppe Conte:
“Em caso de perigo social ou de condenação
em primeira instância de um solicitante de refúgio, isso será motivo suficiente
para levá-lo a um centro de refugiados para que sejam iniciados os
trâmites para sua expulsão”.
O decreto – contemplando condenações em primeira instância
por delitos relacionados com drogas, roubo, violência sexual, violência
contra um funcionário público ou lesões graves – tem por meta “fazer a Itália mais segura”, afirmou
Salvini nas redes sociais, além de contribuir para o fortalecimento do país na luta
contra a máfia, bem como contra o tráfico de pessoas, fazendo com que
“criminosos” e “falsos requerentes de refúgio” sejam expulsos mais
rapidamente.
O decreto prevê, entre outras, medidas como a retirada da
cidadania italiana a imigrantes que sejam condenados em definitivo por
terrorismo ou o impedimento da entrada no país de estrangeiros que tenham sido
expulsos de outros países do espaço Schengen.
O período máximo de detenção dum imigrante em vias de
deportação será ampliado de 90 para 180 dias, dando mais tempo ao Estado para
completar o processo de deportação. A maioria dos requerentes de refúgio deverá
ficar em grandes centros de acolhimento.
A concessão de vistos de permanência por motivos humanitários
será fortemente restrita e passará a contemplar apenas vítimas de exploração no
trabalho, tráfico humano, violência doméstica, calamidades naturais,
tratamentos médicos graves ou que tenham reconhecidamente realizado atos de
valor para a sociedade.
Nos últimos anos, cerca de 25% dos pedidos de refúgio na
Itália foram concedidos com base nesse status,
e a grande maioria dos imigrantes que chegam ao país são fugitivos da pobreza.
No primeiro trimestre de 2018, as autoridades da Itália
examinaram cerca de 23 mil pedidos de refúgio, segundo a Fondazione ISMU, um
centro de pesquisas sobre migração. Mais de 61% dos pedidos
foram rejeitados, e 21% dos requerentes obtiveram proteção humanitária.
Apenas 6% obtiveram o status de
refugiados.
Os media italianos noticiaram que foram alterados trechos do
projeto de decreto porque o presidente os considerara inconstitucionais.
Desde que assumiu o poder, a 1 de junho, o governo de coligação
(Liga do Morte e Movimento
Cinco Estrelas) tem recusado
permitir o desembarque de navios de resgate de migrantes no Mediterrâneo. E
Salvini prometeu acelerar as deportações de ilegais e sustentou que as
comunidades de ciganos devem ser recenseadas e seus integrantes estrangeiros
deportados.
***
Face às susoditas declarações de Salvini e à atual política imigratória, o Cardeal italiano Francesco Montenegro, Arcebispo de
Agrigento – cuja arquidiocese compreende a ilha de Lampedusa, no Mediterrâneo,
para onde têm rumado milhares de migrantes em busca de vida melhor, mas que,
muitas vezes, não chegam a porto seguro, perecendo no mar – considera que é uma
visão “parcial” debater o problema da imigração “com as lentes da segurança” e
que o medo dos migrantes arrisca o regresso ao tempo das fortalezas, castelos e
pontes levadiças.
Ao prelado agrigentense
parece “impossível” alguém pensar e dizer, “com o Evangelho na mão, ‘eu decido
a sorte dos homens’ deixando-os no mar”. É a referência óbvia a gestos e
declarações do governante que invoca Deus, não só em vão, mas para agir
malédica e maleficamente.
Neste
âmbito, Rui Jorge Martins publicou, a 17 de janeiro, no site do SNPC (Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura), uma pequena
entrevista – que traduziu e editou – do prelado a Domenico Agasso Jr, de que se
respigam as afirmações mais pertinentes.
Sobre o tema da segurança, considerou, em termos gerais, que se trata dum “problema que é preciso ter em conta”, mas sendo “preciso
estarmos atentos” para não cairmos em exageros implausíveis, fruto de “uma
motivação de escolhas nem sempre partilháveis”. Com efeito, “enfrentar o
problema da imigração com as lentes da segurança torna-se parcial”. E, se é
verdade que “a imigração pressupõe riscos”, também “oferece possibilidades”.
Por isso, “o problema da segurança não nos deve fazer tornar uma fortaleza”, o
que “não é sequer atual num mundo que olha para o futuro globalizando-se”.
Assim, em
consonância com “os apelos
evangélicos do Papa Francisco ao acolhimento, deve-se deixar claro que “o Evangelho deve ser assumido com o peso que
tem”, pois, se lhe fizermos “descontos segundo as necessidades”, ele “deixa
de ser Evangelho”. E esclarece:
“A Palavra de Deus é o navegador por
satélite [GPS] para poder ir para a frente, viver a sua fé. Um cristão não pode
deixar de ter em conta o Evangelho. Há confirmação disto inclusive na história
da Igreja: os mártires, por coerência com Evangelho, desobedeceram aos
imperadores, sacrificando a sua vida. É por isso que deve haver um espaço
também para a objeção de consciência: Diante de uma lei injusta, que devo
fazer? Fechar os olhos e aceitar?”.
Depois, responde à questão: “Não podendo um cristão aceitar que
pessoas sejam deixadas nas estradas ou no mar, como é compatível a linha da
Liga Norte repelir os desesperados nas barcaças com a exposição do Rosário e o
juramento de Salvini sobre o Evangelho?
Diz o Cardeal,
ressalvando que, sendo problema de consciência de Salvini, não o pode julgar:
“Não o entendo, mas não me sinto na
disposição de fazer um juízo. Não compreendo como consegue colocar as duas
coisas juntas, porque me parece impossível, com o Evangelho na mão dizer ‘eu
decido a sorte dos homens’, deixando-os no mar.”.
Contando das
reações que tem da parte de alguns relativamente à sua posição de criticar a
prioridade do tratamento dos animais em detrimento das pessoas, refere:
“Estou a receber muitos insultos porque
confrontei a opção de deixar no mar pessoas com a de abandonar os animais na
rua. Num e-mail duríssimo
escreveram-me que os animais não fazem os danos que poderá fazer um homem que
chega de outra terra. Vi um poster publicitário
com o focinho de um cão que ‘pede’: ‘Não
me abandones’. Pergunto-me: porque é que o cão tem direito àquele ‘pedido’
e não o têm homens, mulheres e crianças desesperadas.”.
Declara
categoricamente que respeita os animais e não quer “que o cão seja abandonado”,
mas que também não aceita “que seres
humanos sejam abandonados ao risco de morrer na água à espera que outras
pessoas acabem de discutir, sentadas à volta de uma mesa”.
A seguir,
admitindo que “quem está naquelas embarcações pode não ser perseguido, mas ter
problemas políticos, não ser refugiado” interroga-se:
“Mas então, e os nossos emigrantes que
partem daqui? Haverá talvez uma perseguição em Itália? Têm motivos religiosos?
Um dia também eles poderão ser rejeitados; e nós, como reagiremos?”.
E constata:
“Partem muitos do sul porque aqui não há
trabalho – eu tenho 153 mil emigrantes da minha diocese – e não se foram embora
para viagens de turismo. Porquê, então, pretender que sejam respeitados os
direitos dos ‘nossos migrantes’ e não se comportar do mesmo modo para quem
chega até nós? Cada homem tem direito a uma vida digna e respeitada.”.
Quanto à atitude a ter com os migrantes, adverte contra o pressuposto de
quem vem ao nosso encontro ser “um potencial
delinquente”, o que levaria as pessoas a fecharem-se em casa para não não
voltarem a sair. Por isso, é de seguir o conselho de Jesus: sermos “simples,
mas também astutos”, ou seja, caminhar “com os olhos abertos”. Se uma pessoa é
perigosa, “então a é chamada polícia “a dar segurança”. Porém, nada faz supor “que
cada homem que chega, só porque tem a cor da pele diferente, é um sujeito que
faz o mal”. E confessa:
“Quando vi as crianças mortas no naufrágio
de Lampedusa, os seus caixões brancos, e o rosto de tantos imigrantes, não
notei potenciais terroristas. Ora, se em viagem me acolhessem dizendo-me ‘vem
da Sicília, então é um mafioso’, sentir-me-ia desconfortável.”.
Confessa que o mais preocupante na questão da segurança-acolhimento-integração
é “a síndrome do medo” que origina “a reação de
fechar portas e janelas, criar muros”, o que “não permite olhar para o futuro”,
pois, fechando “a casa a sete chaves” e ficando “às escuras”, não saberemos o “que
acontece do lado de fora”. Ora, neste contexto migratório, “há quem tenha
vontade de mudar, de construir um futuro aberto, acolhedor e solidário” e “quem
pretende um futuro baseado nos muros semelhantes aos do passado”. E Francesco
Montenegro questiona: “Mas se abatemos
esses muros que no passado construímos, que sentido faz construir outros”?
Por isso,
apela ao acolhimento, o que “vale para todos”. Porém, não basta tirá-los “do
mar”, mas também permitir-lhes que vivam “dignamente”. E a integração não
consiste em eles agora terem de pensar como nós, mas, ao invés, “é preciso
colocar um ao lado do outro, ver o que há em comum e caminhar em conjunto”. Por
agora, diz o Cardeal, “somos capazes de viver a tolerância ao máximo –
‘porta-te bem, senão…’ –, mas isto não é integração. E considera:
“Fala-se do mundo moderno, aldeia global,
globalização, mas depois encontramo-nos em situações de um contra o outro. É
este o futuro que nos espera? Regressaremos aos castelos, às pontes levadiças
com água à volta de modo que ninguém entre?”
Por fim,
conclui: “Pensar no futuro com o homem na
Lua e nós aqui a construir couraças e fortes é realmente absurdo”.
***
Ocorreu, a 18 de janeiro, a primeira
tragédia de 2019 com mortes nas rotas do mar Mediterrâneo, quando um bote
sobrecarregado de migrantes naufragou a 50 milhas da costa da Líbia: 117
pessoas morreram afogadas, segundo informações da OIM (Organização Internacional das
Migrações) na Itália.
Flavio di
Giacomo, porta-voz da
OIM na Itália, informou que três pessoas foram resgatadas pela marinha
italiana, transportadas para a ilha de Lampedusa, na Itália, e hospitalizadas.
Os sobreviventes revelaram que nenhum dos migrantes no barco inflável usava
coletes salva-vidas, pois muitos migrantes não se podem dar ao luxo de os
comprar, já que representam um custo adicional ao da travessia.
Entre os mortos, estão cerca de dez
mulheres, uma delas grávida, e duas crianças. A maioria é proveniente da
Nigéria, de Camarões, da Gâmbia, da Costa do Marfim e do Sudão.
Em nota distribuída à comunicação
social, a Comunidade de Santo Egídio considera:
“Não
se pode ignorar isso, seja por humanidade – que deveria ser de todos – seja
pela tragédia destas pessoas. Diante de um fenómeno de proporções tão grandes,
a União Europeia deveria colocar de lado as pequenas discussões e avançar com
propostas amplas, que possam contrastar eficazmente os traficantes de seres
humanos.”.
E prossegue em tom crítico:
“Antes
de tudo, é preciso salvar quem está em perigo, não apenas nos mares, mas também
no deserto e em campos de detenção na África. Em segundo lugar, é preciso
intervir com inteligência, e de forma consistente, nos países de proveniência
da imigração, reforçando a paz e criando trabalho, a começar pelos jovens. Em
terceiro lugar, é urgente também pensar no ingresso regulamentado – como os
‘corredores humanitários’ em caso de guerras – porque favorecem a integração,
que é a única resposta humana, económica e socialmente sustentável ao fenómeno
da migração, que certamente nos acompanhará nos próximos anos.”.
Obviamente, como antes de mais, “é preciso salvar vidas em perigo”, a Comunidade
de Santo Egídio pede mais humanidade aos governantes, propõe intervir nos
países de origem da migração e criar ingressos regulamentados para integrar os
migrantes na Europa.
Por sua vez, o Papa disse, em relação aos naufrágios
no Mediterrâneo, que os “migrantes buscavam apenas um
futuro”.
Depois da recitação do Angelus na Praça de São Pedro e de conceder
a bênção a todos os presentes, o Papa revelou
ter duas grandes dores no coração: a Colômbia e o Mar Mediterrâneo.
Sobre a Colômbia, confessou:
“Desejo
assegurar a minha proximidade ao povo colombiano depois do ataque terrorista de
quinta-feira na Escola Nacional da Polícia. Oro pelas vítimas e pelos seus
familiares e continuo a rezar pelo caminho da paz na Colômbia.”.
Em relação
aos náufragos no Mediterrâneo, disse:
“Penso
nas 170 vítimas de naufrágios no Mediterrâneo. Estas pessoas procuravam futuro
para suas vidas. Vítimas, talvez, de traficantes de seres humanos. Rezemos por
elas e por aqueles que têm responsabilidade pelo que aconteceu.”.
E rezou a ‘Ave Maria’ pelos mortos
e por aqueles que têm responsabilidade pelo que aconteceu.
Recorde-se que, nas últimas horas, se
registaram dois naufrágios: ao largo da Líbia, 117 pessoas, incluindo mulheres
e crianças, morreram afogadas, enquanto 53 migrantes perderam a vida no Mar de
Alboran, entre a Espanha e Marrocos
***
Pode evocar-se o Evangelho e rejeitar imigrantes?
2019.01.20 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário