No quadro
da sua viagem apostólica ao Panamá a fim de acompanhar a XXXIV Jornada Mundial
da Juventude e no terceiro dia desta JMJ, Francisco celebrou a Santa Missa com a dedicação do altar da
Catedral Basílica Santa Maria La Antigua,
acabada de restaurar, com a presença de numerosos Sacerdotes, Consagrados e
Movimentos Leigos. Trata-se do ato de libertar esta antiga diocese do mero
estatuto de diocese antiga, que alguns pretendiam transformar em título para
bispo auxiliar, a fim de a acoplar à diocese do Panamá, como temos em Portugal Bragança-Miranda,
Portalegre e Castelo Branco ou Leiria-Fátima, ficando Santa Maria La Antigua como Concatedral.
Francisco, como refere Jane Nogara a partir da Cidade do Vaticano, iniciou
a sua homilia comentando um trecho do Evangelho de João (Jo 4, 6-7) em que se refere que Jesus, “cansado
da caminhada, sentou-Se, sem mais, na borda do poço. Era por volta do meio-dia”.
Entretanto, chegou uma samaritana para tirar água, a quem Jesus pediu: “Dá-Me de beber”.
O Pontífice partiu do facto de Jesus,
cansado de caminhar, ter precisado de aplacar e saciar a sede e recuperar as
forças para continuar a sua missão de “levar
a Boa-Nova aos pobres, curar os corações feridos, proclamar a libertação aos
cativos e consolar os que sofriam”. E aplicou o episódio de Jesus na história
da sua vida pública à vida do mundo de hoje – em que todas as situações de cansaço
“são situações que nos tolhem a vida e a energia” – ousando dizer:
“O Senhor cansou-Se e, nesta fadiga, encontra
lugar tanto cansaço dos nossos povos e da nossa família, das nossas comunidades
e de todos aqueles que estão cansados e oprimidos” (cf Mt 11,28).
De facto, o Papa fala de uma situação que “parece ter-se
instalado nas nossas comunidades”, que tem muitas causas e motivos – uma “espécie subtil
de cansaço, que nada tem a ver com o cansaço do Senhor”. É o “cansaço da
esperança”, que não deixa avançar e nem olhar para diante. Como se tudo ficasse
confuso” e “pondo em questão as forças, os recursos e a viabilidade da missão
neste mundo que não cessa de mudar e interpelar”. “É um cansaço paralisador” e que põe “em dúvida, a
própria viabilidade da vida religiosa no mundo de hoje” – disse o Pontífice,
que vincou:
“O cansaço da esperança nasce da constatação
de uma Igreja ferida pelo seu pecado e que, muitas vezes, não soube escutar
tantos gritos nos quais se escondia o grito do Mestre: ‘Meu Deus, porque me
abandonaste?’ ”.
Ora, isso faz com que se instale um
pragmatismo cinzento no coração das nossas comunidades” dando espaço a “uma das
piores heresias do nosso tempo: pensar que o Senhor e as nossas comunidades não
têm nada para dizer nem dar a este mundo novo em gestação”. E, “então aquilo
que um dia nasceu para ser sal e luz do mundo acaba por oferecer a sua versão
pior”.
Por isso, devemos ter a ousadia, como
Jesus, de pedir “Dá-me de beber” para
recebermos daquela “fonte de água que dá a vida eterna” para voltar, sem medo,
ao poço originário do primeiro amor, quando Jesus se cruzou connosco no nosso
caminho, nos olhou com misericórdia e pediu que O seguíssemos” – miserando et eligendo (o lema episcopal deste Papa) – e “nos fez sentir que nos amava,
e não só pessoalmente mas também como comunidade”.
Com efeito, a imploração “Dá-Me de beber” significa “recuperar a
parte mais autêntica dos nossos carismas fundacionais – que não se limitam
apenas à vida religiosa, mas se estendem a toda a Igreja – e ver as modalidades
em que se podem expressar hoje” (…) e “significa reconhecer-se necessitado de
que o Espírito nos transforme em homens e mulheres memoriosos de uma passagem,
a passagem salvífica de Deus”. Só assim “a esperança cansada será curada”,
pronta para retomar a missão com a força de Jesus – assegura o Papa
latino-americano.
Por fim, Francisco falou da
reabertura da Catedral depois de longo tempo de restauração: “uma Catedral
espanhola, índia e afro-americana torna-se, assim, Catedral panamenha, dos
panamenhos de ontem, mas também dos de hoje que a tornaram possível”. E, garantindo
que “já não pertence só ao passado, mas é beleza do presente”, o Pontífice apelou
a que não deixemos alguma vez “que nos roubem a beleza herdada dos nossos pais”
e que “seja ela a raiz viva e fecunda que nos ajuda a continuar a fazer bela e
profética a história da salvação” aqui e agora.
Esta Catedral a partir de hoje torna
a ser um espelho do modo como age o Senhor: é, de novo, “um regaço que impele a
renovar e nutrir a esperança, a descobrir como a beleza de ontem pode tornar-se
base para construir a beleza de amanhã”.
***
Como o Senhor, também os
discípulos experimentaram e experimentam hoje em si próprios o que significa a
dedicação e disponibilidade do Senhor para levar
a Boa-Nova aos pobres, curar os corações feridos, proclamar a libertação aos
cativos e dar a liberdade aos prisioneiros, consolar quem estava de luto e
proclamar um ano de graça para todos (cf Is 61,1-3; Lc 4,18-19). Pobreza, cativeiro,
feridas luto tanto podem tolher a energia como podem constituir desafios. E, na
ótica de desafio, muitos discípulos de hoje (como os de então) presenteiam-nos com tantos momentos importantes na
vida do Mestre em que podemos encontrar uma palavra de Vida, porque Ele é a Vida
e veio para que tenhamos a vida e a tenhamos em abundância.
Diz o Papa que, “para a nossa
imaginação, sempre em movimento”, “é fácil contemplar e entrar em comunhão com
a atividade do Senhor”, mas, por vezes, custa-nos não sabermos ou não podermos
contemplar e acompanhar as fadigas do Senhor, como se estas não se apropriassem
à sua condição divina. Mas, porque o Senhor Se cansou, é-nos lícito sentir o cansaço
e procurar lenitivo em quem no-lo pode dar, o próprio Senhor manso e humilde de
coração, que nos incita:
“Vinde a mim, todos os que estais cansados e
oprimidos, que Eu aliviar-vos-ei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim,
porque sou manso e humilde de coração e encontrareis descanso para o vosso
espírito. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve.” (Mt 11,28-30).
Francisco,
apesar da impossibilidade de as abranger a todas, especificou muitas situações
de fadiga nos sacerdotes, nos consagrados e consagradas, nos membros dos movimentos
laicais: as longas horas de trabalho, que deixam pouco tempo para comer,
descansar e estar com a família; as ‘tóxicas’ condições laborais e afetivas,
que levam ao esgotamento e desgastam o coração; a simples dedicação diária; o
peso rotineiro de quem já não sente gosto ou não encontra reconhecimento e
apoio para enfrentar as exigências de cada dia; as situações complicadas já
habituais e previsíveis até aos momentos urgentes e angustiantes de pressão –
um complexo de pesos a suportar. E frisou que todas as situações nos quebrantam
a vida fazem emergir “a necessidade urgente de encontrar um poço onde se possa
aplacar e saciar a sede e o cansaço do caminho; todas clamam, num “grito
silencioso”, por “um poço donde começar de novo”.
Este poço vem
obviar ao cansaço e à sede, pois, saciando a nossa sede, retempera-nos as
forças.
Não é só o cansaço
“de quem, ao fim do dia, apesar de quebrantado pelo trabalho, consegue mostrar
um sorriso sereno e agradecido”, mas também o “que surge quando o sol, no pino
– como sugere o Evangelho –, dardeja a pique os seus raios, tornando as horas
insuportáveis”, fazendo-o “com tal intensidade que não deixa avançar nem olhar
para diante, como se tudo ficasse confuso”, o “cansaço que nasce ao olhar o
futuro” ou quando a realidade nos cai em cima “pondo em questão as forças, os
recursos e a viabilidade da missão neste mundo, que não cessa de mudar e
interpelar”.
Diz o Papa
que este cansaço paralisador “nasce de olhar para frente e não saber como
reagir face à intensidade e incerteza das mudanças que estamos atravessando
como sociedade”, que parecem pôr em causa “as nossas modalidades de expressão e
compromisso, os nossos hábitos e atitudes ao enfrentar a realidade” e
questionam “a viabilidade da vida religiosa no mundo atual”.
Porém, temos
que vigiar e orar para não nos habituarmos “a viver com uma esperança cansada
perante o futuro incerto e desconhecido”, porque isso tende a instalar “um
pragmatismo cinzento no coração das nossas comunidades”, fazendo com que pareça
que tudo continua “dentro da normalidade”, mas induzindo, na verdade, a fé a
deteriorar-se e a degenerar. E, dececionados com uma realidade que não
compreendemos ou em que pensamos “não haver lugar para a nossa proposta”, podemos
dar guarida de cidadania a uma das piores heresias do nosso tempo: o vazio da
vida cristã e apostólica, consentindo em que a luz do mundo e o sal da terra
que somos chamados a ser possam vir a ter por destino, respetivamente, a
extinção ou o lançamento ao lixo.
Como a
Samaritana, “não queremos aplacar a sede com uma água qualquer, mas com aquela “fonte
de água que dá a vida eterna” (Jo 4,14). Como ela, deveremos, pois, ter a ousadia de pedir: “Senhor, dá-me dessa água, para eu não ter
sede, nem ter de vir cá tirá-la” (Jo 4,15). E diz o Papa Francisco:
“Como bem sabia a Samaritana que, desde há anos, carregava cântaros
vazios de amores falidos, também nós sabemos que não é qualquer palavra que pode
ajudar a recuperar as forças e a profecia na missão, nem é qualquer novidade,
por mais sedutora que pareça, que pode aliviar a sede. Sabemos, como ela bem sabia,
que nem mesmo o conhecimento religioso e a justificação de certas opções e
tradições, passadas ou presentes, nos tornam sempre fecundos e apaixonados ‘adoradores (…) em espírito e verdade’.”
(Jo 4,23).
Depois,
entenderemos que a solicitação de Jesus à Samaritana “Dá-Me de beber” ficará a ser para nós a abertura da “porta da nossa
esperança cansada para voltar, sem medo, ao poço originário do primeiro amor,
quando Jesus passou pelo nosso caminho”, o retorno dos nossos passos a, “na
fidelidade criativa, escutar que o Espírito não criou uma obra particular, um
plano pastoral ou uma estrutura para ser organizada, mas, através de tantos ‘santos
ao pé da porta’ – entre os quais encontramos padres e madres fundadores dos
vossos Institutos, bispos e párocos que souberam colocar bases sólidas nas suas
comunidades –, deu vida e respiração a um determinado contexto histórico que
parecia sufocar e esmagar toda a esperança e dignidade”.
A solicitação
“Dá-Me de beber” constituirá para nós
a coragem da purificação e da recuperação da “parte mais autêntica dos nossos
carismas fundacionais – que não se atingem apenas a vida religiosa, mas toda a
Igreja” – e da visão das “modalidades em que se podem expressar hoje”, olhando “com
gratidão o passado”, indo “à procura das raízes da sua inspiração” e deixando
que ressoem novamente com força entre nós”. Significa aceitar a necessidade de o
Espírito nos transformar em pessoas memoriosas da passagem salvífica de Deus, ajudando-nos
a viver o presente, a viver a vida com a paixão de nos sentirmos comprometidos
com a história, imersos nas coisas. E a esperança cansada será curada e gozará
do ‘particular aperto do coração’, quando não tiver medo de, voltando ao primeiro
amor, encontrar, nas periferias e desafios de hoje, “o mesmo cântico, o mesmo
olhar que suscitou o cântico e o olhar dos nossos pais”.
Grande Papa
em espiritualidade sacerdotal, consacral e laical!
2019.01.26 –
Louro de Carvalho
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