sábado, 26 de janeiro de 2019

“Beber da fonte de água que dá a vida eterna”


No quadro da sua viagem apostólica ao Panamá a fim de acompanhar a XXXIV Jornada Mundial da Juventude e no terceiro dia desta JMJ, Francisco celebrou a Santa Missa com a dedicação do altar da Catedral Basílica Santa Maria La Antigua, acabada de restaurar, com a presença de numerosos Sacerdotes, Consagrados e Movimentos Leigos. Trata-se do ato de libertar esta antiga diocese do mero estatuto de diocese antiga, que alguns pretendiam transformar em título para bispo auxiliar, a fim de a acoplar à diocese do Panamá, como temos em Portugal Bragança-Miranda, Portalegre e Castelo Branco ou Leiria-Fátima, ficando Santa Maria La Antigua como Concatedral.
Francisco, como refere Jane Nogara a partir da Cidade do Vaticano, iniciou a sua homilia comentando um trecho do Evangelho de João (Jo 4, 6-7) em que se refere que Jesus, “cansado da caminhada, sentou-Se, sem mais, na borda do poço. Era por volta do meio-dia”. Entretanto, chegou uma samaritana para tirar água, a quem Jesus pediu: “Dá-Me de beber”.
O Pontífice partiu do facto de Jesus, cansado de caminhar, ter precisado de aplacar e saciar a sede e recuperar as forças para continuar a sua missão de “levar a Boa-Nova aos pobres, curar os corações feridos, proclamar a libertação aos cativos e consolar os que sofriam”. E aplicou o episódio de Jesus na história da sua vida pública à vida do mundo de hoje – em que todas as situações de cansaço “são situações que nos tolhem a vida e a energia” – ousando dizer:
“O Senhor cansou-Se e, nesta fadiga, encontra lugar tanto cansaço dos nossos povos e da nossa família, das nossas comunidades e de todos aqueles que estão cansados e oprimidos” (cf Mt 11,28).
De facto, o Papa fala de uma situação que “parece ter-se instalado nas nossas comunidades”, que tem muitas causas e motivos – uma “espécie subtil de cansaço, que nada tem a ver com o cansaço do Senhor”. É o “cansaço da esperança”, que não deixa avançar e nem olhar para diante. Como se tudo ficasse confuso” e “pondo em questão as forças, os recursos e a viabilidade da missão neste mundo que não cessa de mudar e interpelar”. “É um cansaço paralisador” e que põe “em dúvida, a própria viabilidade da vida religiosa no mundo de hoje” – disse o Pontífice, que vincou:
O cansaço da esperança nasce da constatação de uma Igreja ferida pelo seu pecado e que, muitas vezes, não soube escutar tantos gritos nos quais se escondia o grito do Mestre: ‘Meu Deus, porque me abandonaste?’ ”.
Ora, isso faz com que se instale um pragmatismo cinzento no coração das nossas comunidades” dando espaço a “uma das piores heresias do nosso tempo: pensar que o Senhor e as nossas comunidades não têm nada para dizer nem dar a este mundo novo em gestação”. E, “então aquilo que um dia nasceu para ser sal e luz do mundo acaba por oferecer a sua versão pior”.
Por isso, devemos ter a ousadia, como Jesus, de pedir “Dá-me de beber” para recebermos daquela “fonte de água que dá a vida eterna” para voltar, sem medo, ao poço originário do primeiro amor, quando Jesus se cruzou connosco no nosso caminho, nos olhou com misericórdia e pediu que O seguíssemos” – miserando et eligendo (o lema episcopal deste Papa) – e “nos fez sentir que nos amava, e não só pessoalmente mas também como comunidade”.
Com efeito, a imploração “Dá-Me de beber” significa “recuperar a parte mais autêntica dos nossos carismas fundacionais – que não se limitam apenas à vida religiosa, mas se estendem a toda a Igreja – e ver as modalidades em que se podem expressar hoje” (…) e “significa reconhecer-se necessitado de que o Espírito nos transforme em homens e mulheres memoriosos de uma passagem, a passagem salvífica de Deus”. Só assim “a esperança cansada será curada”, pronta para retomar a missão com a força de Jesus – assegura o Papa latino-americano.
Por fim, Francisco falou da reabertura da Catedral depois de longo tempo de restauração: “uma Catedral espanhola, índia e afro-americana torna-se, assim, Catedral panamenha, dos panamenhos de ontem, mas também dos de hoje que a tornaram possível”. E, garantindo que “já não pertence só ao passado, mas é beleza do presente”, o Pontífice apelou a que não deixemos alguma vez “que nos roubem a beleza herdada dos nossos pais” e que “seja ela a raiz viva e fecunda que nos ajuda a continuar a fazer bela e profética a história da salvação” aqui e agora.
Esta Catedral a partir de hoje torna a ser um espelho do modo como age o Senhor: é, de novo, “um regaço que impele a renovar e nutrir a esperança, a descobrir como a beleza de ontem pode tornar-se base para construir a beleza de amanhã”.
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Como o Senhor, também os discípulos experimentaram e experimentam hoje em si próprios o que significa a dedicação e disponibilidade do Senhor para levar a Boa-Nova aos pobres, curar os corações feridos, proclamar a libertação aos cativos e dar a liberdade aos prisioneiros, consolar quem estava de luto e proclamar um ano de graça para todos (cf Is 61,1-3; Lc 4,18-19). Pobreza, cativeiro, feridas luto tanto podem tolher a energia como podem constituir desafios. E, na ótica de desafio, muitos discípulos de hoje (como os de então) presenteiam-nos com tantos momentos importantes na vida do Mestre em que podemos encontrar uma palavra de Vida, porque Ele é a Vida e veio para que tenhamos a vida e a tenhamos em abundância.
Diz o Papa que, “para a nossa imaginação, sempre em movimento”, “é fácil contemplar e entrar em comunhão com a atividade do Senhor”, mas, por vezes, custa-nos não sabermos ou não podermos contemplar e acompanhar as fadigas do Senhor, como se estas não se apropriassem à sua condição divina. Mas, porque o Senhor Se cansou, é-nos lícito sentir o cansaço e procurar lenitivo em quem no-lo pode dar, o próprio Senhor manso e humilde de coração, que nos incita:
Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, que Eu aliviar-vos-ei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração e encontrareis descanso para o vosso espírito. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve.” (Mt 11,28-30).  
Francisco, apesar da impossibilidade de as abranger a todas, especificou muitas situações de fadiga nos sacerdotes, nos consagrados e consagradas, nos membros dos movimentos laicais: as longas horas de trabalho, que deixam pouco tempo para comer, descansar e estar com a família; as ‘tóxicas’ condições laborais e afetivas, que levam ao esgotamento e desgastam o coração; a simples dedicação diária; o peso rotineiro de quem já não sente gosto ou não encontra reconhecimento e apoio para enfrentar as exigências de cada dia; as situações complicadas já habituais e previsíveis até aos momentos urgentes e angustiantes de pressão – um complexo de pesos a suportar. E frisou que todas as situações nos quebrantam a vida fazem emergir “a necessidade urgente de encontrar um poço onde se possa aplacar e saciar a sede e o cansaço do caminho; todas clamam, num “grito silencioso”, por “um poço donde começar de novo”.
Este poço vem obviar ao cansaço e à sede, pois, saciando a nossa sede, retempera-nos as forças.   
Não é só o cansaço “de quem, ao fim do dia, apesar de quebrantado pelo trabalho, consegue mostrar um sorriso sereno e agradecido”, mas também o “que surge quando o sol, no pino – como sugere o Evangelho –, dardeja a pique os seus raios, tornando as horas insuportáveis”, fazendo-o “com tal intensidade que não deixa avançar nem olhar para diante, como se tudo ficasse confuso”, o “cansaço que nasce ao olhar o futuro” ou quando a realidade nos cai em cima “pondo em questão as forças, os recursos e a viabilidade da missão neste mundo, que não cessa de mudar e interpelar”.
Diz o Papa que este cansaço paralisador “nasce de olhar para frente e não saber como reagir face à intensidade e incerteza das mudanças que estamos atravessando como sociedade”, que parecem pôr em causa “as nossas modalidades de expressão e compromisso, os nossos hábitos e atitudes ao enfrentar a realidade” e questionam “a viabilidade da vida religiosa no mundo atual”.
Porém, temos que vigiar e orar para não nos habituarmos “a viver com uma esperança cansada perante o futuro incerto e desconhecido”, porque isso tende a instalar “um pragmatismo cinzento no coração das nossas comunidades”, fazendo com que pareça que tudo continua “dentro da normalidade”, mas induzindo, na verdade, a fé a deteriorar-se e a degenerar. E, dececionados com uma realidade que não compreendemos ou em que pensamos “não haver lugar para a nossa proposta”, podemos dar guarida de cidadania a uma das piores heresias do nosso tempo: o vazio da vida cristã e apostólica, consentindo em que a luz do mundo e o sal da terra que somos chamados a ser possam vir a ter por destino, respetivamente, a extinção ou o lançamento ao lixo.
Como a Samaritana, “não queremos aplacar a sede com uma água qualquer, mas com aquela “fonte de água que dá a vida eterna” (Jo 4,14). Como ela, deveremos, pois, ter a ousadia de pedir: Senhor, dá-me dessa água, para eu não ter sede, nem ter de vir cá tirá-la” (Jo 4,15). E diz o Papa Francisco:
Como bem sabia a Samaritana que, desde há anos, carregava cântaros vazios de amores falidos, também nós sabemos que não é qualquer palavra que pode ajudar a recuperar as forças e a profecia na missão, nem é qualquer novidade, por mais sedutora que pareça, que pode aliviar a sede. Sabemos, como ela bem sabia, que nem mesmo o conhecimento religioso e a justificação de certas opções e tradições, passadas ou presentes, nos tornam sempre fecundos e apaixonados ‘adoradores (…) em espírito e verdade’.” (Jo 4,23).
Depois, entenderemos que a solicitação de Jesus à Samaritana “Dá-Me de beber” ficará a ser para nós a abertura da “porta da nossa esperança cansada para voltar, sem medo, ao poço originário do primeiro amor, quando Jesus passou pelo nosso caminho”, o retorno dos nossos passos a, “na fidelidade criativa, escutar que o Espírito não criou uma obra particular, um plano pastoral ou uma estrutura para ser organizada, mas, através de tantos ‘santos ao pé da porta’ – entre os quais encontramos padres e madres fundadores dos vossos Institutos, bispos e párocos que souberam colocar bases sólidas nas suas comunidades –, deu vida e respiração a um determinado contexto histórico que parecia sufocar e esmagar toda a esperança e dignidade”.
A solicitação “Dá-Me de beber” constituirá para nós a coragem da purificação e da recuperação da “parte mais autêntica dos nossos carismas fundacionais – que não se atingem apenas a vida religiosa, mas toda a Igreja” – e da visão das “modalidades em que se podem expressar hoje”, olhando “com gratidão o passado”, indo “à procura das raízes da sua inspiração” e deixando que ressoem novamente com força entre nós”. Significa aceitar a necessidade de o Espírito nos transformar em pessoas memoriosas da passagem salvífica de Deus, ajudando-nos a viver o presente, a viver a vida com a paixão de nos sentirmos comprometidos com a história, imersos nas coisas. E a esperança cansada será curada e gozará do ‘particular aperto do coração’, quando não tiver medo de, voltando ao primeiro amor, encontrar, nas periferias e desafios de hoje, “o mesmo cântico, o mesmo olhar que suscitou o cântico e o olhar dos nossos pais”.
Grande Papa em espiritualidade sacerdotal, consacral e laical!
2019.01.26 – Louro de Carvalho

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