O
Presidente da República, na abertura do ano judicial 2019, apelou a que se
espere sempre pela “ponderação e decisão judicial até à última palavra do
último tribunal a intervir”, cabendo a todos “não aceitar como boa a primeira impressão, a primeira notícia, o primeiro
juízo de opinião pública” e não “substituir os tribunais com o nosso julgamento
pessoal ou de grupo”.
Marcelo,
rejeitando a politização da justiça, centrou o discurso na necessidade de afirmação
dos valores do Estado de direito democrático e elencou os princípios que, a seu
ver, a sociedade coletivamente deve promover no plano da justiça e os que deve
rejeitar. E declarou:
“De todos nós depende não criarmos expectativas, pré-compreensões,
preconceitos definitivos antes de ou durante investigações, apresentação de
todas as posições em apreço, sua ponderação e decisão judicial até à última
palavra do último tribunal a intervir”.
Prosseguiu
com um recado direto a potenciais justiceiros e protagonistas pessoais da
justiça:
“De todos depende resistirmos a endeusar ou diabolizar os que assumem a
justiça como missão de vida, confundindo essa missão com uma ou algumas
pessoas, criando amores e desamores, sujeitos a inevitáveis ilusões e desilusões,
euforias e frustrações.”.
E, alertando
para o aproveitamento dos casos da justiça como arma de arremesso político,
laboral ou social, salientando o papel de cada um na promoção duma “democracia melhor
e de melhor qualidade” e contrariando a utilização de estatísticas sobre resultados
na justiça, vincou:
“De todos nós depende evitarmos olhar para a justiça como se olha para a
política partidária, ou para a relação laboral ou o despique social nas mais
variadas áreas. De todos nós depende não contabilizarmos condenações,
absolvições, provimentos de recursos, não acolhimento de pretensões como se de um
ato eleitoral ou de uma pugna ideológica se tratasse.”.
No seu
discurso, o Chefe de Estado pediu o cumprimento das leis, a “recusa da
corrupção”, o “respeito dos outros e dos seus direitos”, lembrou a importância
da independência dos tribunais e a autonomia do Ministério Público (MP) e falou da importância da Justiça, que deve ser considerada
tão relevante como a “Educação, a Saúde, a Segurança Social, a ordem pública, a
situação económica e financeira”.
E, no âmbito dos
40 anos da adesão de Portugal à Convenção dos Direitos do Homem, apelou à
“afirmação dos valores” e à “vontade de os fazer vingar na realidade” para as
quais “este início simbólico” do ano judicial convoca. E declarou:
“Convoca-nos
para a afirmação do valor cimeiro da dignidade da pessoa, de cada uma e de
todas, dos seus direitos fundamentais, para a afirmação do estado
democrático, para a afirmação do respeito da Constituição da República
Portuguesa e das Leis que a aplicam, para a afirmação da separação de poderes,
da independência de tribunais e juízes que são e devem ser titulares
desses órgãos de soberania”.
***
Por sua vez, a Ministra da Justiça
centrou a sua intervenção na trilogia “prudência, equilíbrio e
rigor” face ao barulho dos funcionários judiciais frente ao edifício do STJ (Supremo Tribunal de Justiça), que ganhou
volume quando Francisca Van Dunem subiu ao púlpito.
E, logo no início, a governante
falou do “contexto social contingente” da abertura deste ano judicial, em clara
referência aos protestos das várias organizações profissionais. Van Dunem disse
que, ao confluírem “variáveis políticas e expressões de exasperação de fundo
sócio-profissional”, é preciso manter os valores da justiça: “a prudência, o
equilíbrio e o rigor”, ocupando cada um “o lugar que lhe pertence”.
E vincou, discriminando:
"O
Ministério Público decide ou promove com autonomia no quadro das suas
competências de ação; os juízes fazem escolhas decisórias, com independência.
Ao Parlamento e ao Governo cabem as definições políticas no quadro de
participação de responsabilidades que a Constituição define”.
Mais à frente, voltou ao tema do equilíbrio, garantindo saber das
“necessidades de investimento em infraestruturas na área da justiça, dos
tribunais aos estabelecimentos prisionais, passando pelos serviços de registo e
notariado, pela polícia judiciária e pelos serviços médico-legais”, mas
lembrando que é preciso “articular coerente e responsavelmente essas
necessidades de investimento com as legítimas ambições das classes
profissionais”.
Lembrando o apelo feito pelo Presidente da República, em
2016, “a um novo Pacto para a Justiça”, Van Dunem garantiu que “2018
foi o tempo de conhecermos a resposta a esse apelo”. Como prova disso, apontou
o Acordo
para a Justiça, documento que resultou dos contributos dos
representantes sindicais das magistraturas, Ordem dos Advogados, Ordem dos
Solicitadores e Agentes de Execução e Sindicato dos Funcionários Judiciais, e a
iniciativa do PSD intitulada Compromisso para a Justiça. E, reconhecendo
que nem todas as iniciativas avançaram por não serem exequíveis ou não seguirem
o programa político do Governo, frisou:
“O Governo esteve atento a todas
as iniciativas que apontaram no sentido da necessidade de formação de consensos
alargados e às propostas delas decorrentes”.
Contudo, uma parte substancial das propostas o aludido Pacto traduziam
medidas cuja execução se revelou compatível com o Programa do Governo, sendo
que algumas delas até já se encontravam, em execução. E, após enumerar uma
série de iniciativas e documentos do Governo, Francisca Van Dunem sustentou:
“A
questão do segredo de justiça implica uma reflexão conjunta mais aturada,
expurgada de perceções e fundada na análise do conteúdo e limites do interesse
ou interesses protegidos pelo segredo e no modo de compatibilização desses
interesses com interesses legítimos conflituantes”.
A Ministra defendeu
“o diálogo como via de construção de bases consensuais alargada” e elogiou o
envolvimento dos responsáveis dos conselhos nos trabalhos preparatórios da
revisão dos estatutos das magistraturas judicial e do MP.
Virando a página para o novo ano e fazendo um balanço do que
foi e ainda será possível alcançar nesta legislatura”, a Ministra apontou as
prioridades do programa do Governo para a justiça: a melhoria da gestão do sistema judicial e a modernização dos modelos de
organização de trabalho das secretarias; a atualização dos estatutos das magistraturas; a “capacitação dos recursos destinados à
prevenção e repressão dos fenómenos criminais mais graves”; e o “robustecimento do sistema público de
proteção jurídica aos cidadãos mais frágeis”.
***
Guilherme
Figueiredo, bastonário da Ordem dos Advogados, que fez a primeira intervenção
da sessão, deixou uma crítica aos custos e às taxas judiciais, dizendo
que “a justiça neste Portugal de
Estado de Direito democrático encontra-se e manter-se-á doente,
enquanto não se adequarem as custas e taxas judiciais ao país real”. Para o
bastonário, é claro que existe “uma justiça para ricos e uma justiça para
pobres”.
***
A PGR (Procuradora-Geral da República) deixou uma frase bombástica, mas real: “Estamos longe de vencer a luta contra a
corrupção”. Lucília Gago
disse que, “sob pena de inevitáveis e
dramáticas consequências, designadamente de cariz socioeconómico”, não
se podem ignorar “os resultados de
múltiplos estudos de distintas entidades que invariavelmente apontam dados
reveladores de estarmos longe de obtermos vencimento na luta contra a corrupção”.
Corrupção e
criminalidade económico-financeira foram, pois, dois dos temas abordados na
abertura oficial do ano judicial pela PGR, considerando que necessitam de
particular atenção e exigem a alocação
dos imprescindíveis meios humanos e técnicos.
Para 2019,
Lucília Gago destacou outras duas áreas temáticas: a proteção dos direitos
das vítimas particularmente vulneráveis e a intervenção do Estado, em
particular do MP, no direito da
família e das crianças. A PGR explicou que a justiça tutelar
educativa será ao longo do ano judicial objeto de profunda abordagem pelo MP e
pela Procuradoria-Geral da República,
Em breve,
adiantou, terá início a execução do plano de ação “Crianças e Crimes na Internet
2019-2020”, iniciativa da Procuradoria-Geral da República, que visa
melhorar a capacidade de atuação do MP relativamente a fenómenos
ocorridos com utilização das redes de comunicações, quer tenham natureza criminal,
quer sejam objeto de intervenção tutelar educativa. E, no domínio da promoção
dos direitos e proteção de crianças e jovens, advertiu para a necessidade de
regulamentar os regimes de execução das medidas de acolhimento residencial e familiar,
pois a não regulamentação dessas medidas tem condicionado fortemente a sua aplicação.
Depois,
apontou a “inevitável turbulência”
provocada pelas alterações decorrentes da reforma do EMP (Estatuto do Ministério Público), que lançam desafios a uma
magistratura com falta de meios humanos. Aplaudiu o facto de ter sido aprovada,
na generalidade, a reforma do EMP na Assembleia da República, mesmo sendo
necessários “ajustes finais, designadamente os essenciais à plena consagração
do paralelismo das magistraturas”.
O polémico tema
causou grande desconforto, em dezembro de 2018, depois de Lucília Gago ter
ameaçado demitir-se caso a composição do CSMP fosse alterada, posição de força tomada
ante a alegada intenção do PS e PSD de avançar com mudanças que implicariam uma
maioria de não magistrados naquele órgão. Discursando em Coimbra, a PGR aproveitara
o momento para deixar claro que qualquer alteração relativa à composição do CSMP
que afete o seu atual desenho legal – designadamente apontando para uma maioria
de membros não magistrados – “tem associada grave violação do princípio da
autonomia”.
Explicando que
as previsíveis alterações são de apreciável dimensão, no funcionamento e na
estrutura organizativa, e implicam ajustamentos “cujas repercussões e alcance
prático não são totalmente antecipáveis”, advertiu:
“Colocarão
desafios de relevo numa magistratura em que os meios humanos não se mostram
cabalmente providos e em que à tensão quotidiana acrescerá, por força da
entrada em vigor de tais alterações, inevitável turbulência”.
As
modificações que se perspetivam abarcam relevantes domínios com destaque para a
consagração formal dum Departamento Central de Contencioso do
Estado e Interesses Coletivos e Difusos, cuja criação elogiou e que irá
substituir, “com inegáveis ganhos de eficácia e celeridade, a estrutura
informal hoje existente e que resultou de auto-organização do MP”.
Quanto à
autonomia do MP, Lucília Gago disse que, sendo um princípio basilar do Estado
de Direito Democrático e nela se inscrevendo matérias como a composição e
competências do CSMP (Conselho Superior do Ministério Público), que devem manter-se, será como tal inteiramente preservada,
por ser “absolutamente imprescindível”.
Na sua 1.ª intervenção
na abertura dum ano judicial como PGR, Lucília Gago destacou a importância de
prosseguir e aprofundar a sensibilização e formação específica dos magistrados
para a cibercriminalidade, sobretudo quanto à obtenção de prova digital,
apostando no diálogo com os órgãos de polícia criminal e na interlocução com
entidades públicas responsáveis pela segurança informática. E enunciou outro dos desafios que o
MP enfrenta, traduzindo as prioridades que se repetem de ano para ano: o
crime económico e financeiro, este último, com “tendência de expressivo
aumento” entre 2014 e 2018, defendendo Lucília Gago que não basta identificar e
punir os fenómenos: é preciso evitar o enriquecimento ilícito pela prática do
crime e garantir que é confiscado todo o património que lesou o Estado, com a
recuperação de ativos.
O problema –
diz a PGR – é que, em ambos os tipos de crime, faltam meios para os enfrentar,
não só a nível informático, mas também a nível técnico e humano. E acrescentou:
“Apenas uma resposta qualificada e célere ao
nível das perícias informáticas e contabilístico-financeiras permitirá uma
prossecução eficaz das diligências investigatórias sem quebras na sua cadência
e com significativos ganhos na almejada celeridade dos inquéritos”.
***
E o Presidente do STJ, alegando
estar na altura de debater a gestão do sistema entregue ao Ministério da
Justiça, quer juízes a gerir o sistema informático
da justiça e criticou a insanidade
dos megaprocessos.
António Joaquim Piçarra, a
discursar pela primeira vez na abertura dum ano judicial em nome do STJ (tomou posse em outubro de 2018), dedicou grande parte do discurso à
independência da justiça, fundamento da democracia, e lançou no debate os
problemas com o sistema informático dos processos judiciais, pondo em causa a
gestão “a cargo exclusivo do poder executivo”.
Lembrando
que, há três anos, o Citius teve “um
colapso quase completo, cujas causas não estão completamente esclarecidas”,
pouco depois de ser implementado, e que “são cada vez mais frequentes as referências
noticiosas a intrusões ilícitas no sistema”, lançou o repto à rediscussão do
tema, admitindo que essa gestão seja feita pelos órgãos da justiça. E alertou
para os atropelos à independência do poder judicial nalguns países europeus,
pois, o colapso da Europa será inevitável se houver democracias verdadeiras
e democracias meramente aparentes.
A questão não
é nova. Já em novembro, num encontro de juízes em Coimbra, promovido pelo CSM (Conselho Superior da Magistratura), Piçarra disse que o CSM
estava “totalmente disponível para assumir a gestão do sistema informático”.
No seu discurso, o Presidente do STJ deu conta da evolução
positiva do descongestionamento dos tribunais, que se manteve em 2018, explicando
que, mesmo tendo entrado 437.554 novos processos nos tribunais portugueses,
foram concluídos mais de 500 mil. Mas destacou uma “grande dificuldade”: os
processos mais complexos e especializados, que se tornam impossíveis de tratar
e que são “julgados e decididos
virtualmente sem apoio, em trabalhos insanos que consomem dias, meses e anos,
roubando, não raro, tempos de descanso e férias numa dedicação que poucos
conhecem e quase ninguém reconhece”. Vincando “de modo muito enfático” que
“a falta aqui não é dos juízes”, apontou o dedo à “organização geral do
judiciário, que não tem sido capaz de lhes dar os meios para lidar
adequadamente com realidades que, nalguns casos, quase ultrapassam a capacidade
de tratamento humano”.
Do discurso
ressalta um alerta: a falta de “pessoas, organizadas e preparadas, para
comunicar devidamente as decisões dos tribunais”, deixando que
haja “jornalistas à porta dos tribunais durante dias inteiros, sem um
espaço para os acolher” e “sem uma pessoa da estrutura judicial a prestar uma
declaração ou a dar uma simples informação”, o que não só é mau para o trabalho
da comunicação social, mas também prejudica a imagem da justiça. E concluiu:
“Independentemente
de raça ou sexo, de situação económica ou social. Qualquer que seja o percurso
de vida dos envolvidos, todos terão de ser tratados de forma igual, com
absoluta imparcialidade e com respeito pelos seus direitos individuais.”.
***
São grandes
questões da justiça que não basta serem enunciadas, mas que precisam de ser
assumidas, sem estar cada um a puxar a brasa à sua sardinha!
2019.01.15 – Louro de
Carvalho
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