terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Contra justiceiros e julgamentos na praça pública


O Presidente da República, na abertura do ano judicial 2019, apelou a que se espere sempre pela “ponderação e decisão judicial até à última palavra do último tribunal a intervir”, cabendo a todos “não aceitar como boa a primeira impressão, a primeira notícia, o primeiro juízo de opinião pública” e não “substituir os tribunais com o nosso julgamento pessoal ou de grupo”.
Marcelo, rejeitando a politização da justiça, centrou o discurso na necessidade de afirmação dos valores do Estado de direito democrático e elencou os princípios que, a seu ver, a sociedade coletivamente deve promover no plano da justiça e os que deve rejeitar. E declarou:
De todos nós depende não criarmos expectativas, pré-compreensões, preconceitos definitivos antes de ou durante investigações, apresentação de todas as posições em apreço, sua ponderação e decisão judicial até à última palavra do último tribunal a intervir”.
Prosseguiu com um recado direto a potenciais justiceiros e protagonistas pessoais da justiça:
De todos depende resistirmos a endeusar ou diabolizar os que assumem a justiça como missão de vida, confundindo essa missão com uma ou algumas pessoas, criando amores e desamores, sujeitos a inevitáveis ilusões e desilusões, euforias e frustrações.”.
E, alertando para o aproveitamento dos casos da justiça como arma de arremesso político, laboral ou social, salientando o papel de cada um na promoção duma “democracia melhor e de melhor qualidade” e contrariando a utilização de estatísticas sobre resultados na justiça, vincou:
De todos nós depende evitarmos olhar para a justiça como se olha para a política partidária, ou para a relação laboral ou o despique social nas mais variadas áreas. De todos nós depende não contabilizarmos condenações, absolvições, provimentos de recursos, não acolhimento de pretensões como se de um ato eleitoral ou de uma pugna ideológica se tratasse.”.
No seu discurso, o Chefe de Estado pediu o cumprimento das leis, a “recusa da corrupção”, o “respeito dos outros e dos seus direitos”, lembrou a importância da independência dos tribunais e a autonomia do Ministério Público (MP) e falou da importância da Justiça, que deve ser considerada tão relevante como a “Educação, a Saúde, a Segurança Social, a ordem pública, a situação económica e financeira”.
E, no âmbito dos 40 anos da adesão de Portugal à Convenção dos Direitos do Homem, apelou à “afirmação dos valores” e à “vontade de os fazer vingar na realidade” para as quais “este início simbólico” do ano judicial convoca. E declarou:
Convoca-nos para a afirmação do valor cimeiro da dignidade da pessoa, de cada uma e de todas, dos seus direitos fundamentais, para a afirmação do estado democrático, para a afirmação do respeito da Constituição da República Portuguesa e das Leis que a aplicam, para a afirmação da separação de poderes, da independência de tribunais e juízes que são e devem ser titulares desses órgãos de soberania”.
***
Por sua vez, a Ministra da Justiça centrou a sua intervenção na trilogia “prudência, equilíbrio e rigor” face ao barulho dos funcionários judiciais frente ao edifício do STJ (Supremo Tribunal de Justiça), que ganhou volume quando Francisca Van Dunem subiu ao púlpito.
E, logo no início, a governante falou do “contexto social contingente” da abertura deste ano judicial, em clara referência aos protestos das várias organizações profissionais. Van Dunem disse que, ao confluírem “variáveis políticas e expressões de exasperação de fundo sócio-profissional”, é preciso manter os valores da justiça: “a prudência, o equilíbrio e o rigor”, ocupando cada um “o lugar que lhe pertence”.

E vincou, discriminando:

    "O Ministério Público decide ou promove com autonomia no quadro das suas competências de ação; os juízes fazem escolhas decisórias, com independência. Ao Parlamento e ao Governo cabem as definições políticas no quadro de participação de responsabilidades que a Constituição define”.
Mais à frente, voltou ao tema do equilíbrio, garantindo saber das “necessidades de investimento em infraestruturas na área da justiça, dos tribunais aos estabelecimentos prisionais, passando pelos serviços de registo e notariado, pela polícia judiciária e pelos serviços médico-legais”, mas lembrando que é preciso “articular coerente e responsavelmente essas necessidades de investimento com as legítimas ambições das classes profissionais”.
Lembrando o apelo feito pelo Presidente da República, em 2016, “a um novo Pacto para a Justiça”, Van Dunem garantiu que “2018 foi o tempo de conhecermos a resposta a esse apelo”. Como prova disso, apontou o Acordo para a Justiça, documento que resultou dos contributos dos representantes sindicais das magistraturas, Ordem dos Advogados, Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução e Sindicato dos Funcionários Judiciais, e a iniciativa do PSD intitulada Compromisso para a Justiça. E, reconhecendo que nem todas as iniciativas avançaram por não serem exequíveis ou não seguirem o programa político do Governo, frisou:
   O Governo esteve atento a todas as iniciativas que apontaram no sentido da necessidade de formação de consensos alargados e às propostas delas decorrentes”.
Contudo, uma parte substancial das propostas o aludido Pacto traduziam medidas cuja execução se revelou compatível com o Programa do Governo, sendo que algumas delas até já se encontravam, em execução. E, após enumerar uma série de iniciativas e documentos do Governo, Francisca Van Dunem sustentou:
A questão do segredo de justiça implica uma reflexão conjunta mais aturada, expurgada de perceções e fundada na análise do conteúdo e limites do interesse ou interesses protegidos pelo segredo e no modo de compatibilização desses interesses com interesses legítimos conflituantes”.
A Ministra defendeu “o diálogo como via de construção de bases consensuais alargada” e elogiou o envolvimento dos responsáveis dos conselhos nos trabalhos preparatórios da revisão dos estatutos das magistraturas judicial e do MP.
Virando a página para o novo ano e fazendo um balanço do que foi e ainda será possível alcançar nesta legislatura”, a Ministra apontou as prioridades do programa do Governo para a justiça: a melhoria da gestão do sistema judicial e a modernização dos modelos de organização de trabalho das secretarias; a atualização dos estatutos das magistraturas; a “capacitação dos recursos destinados à prevenção e repressão dos fenómenos criminais mais graves”; e o “robustecimento do sistema público de proteção jurídica aos cidadãos mais frágeis”.

***

Guilherme Figueiredo, bastonário da Ordem dos Advogados, que fez a primeira intervenção da sessão, deixou uma crítica aos custos e às taxas judiciais, dizendo que “a justiça neste Portugal de Estado de Direito democrático encontra-se e manter-se-á doente, enquanto não se adequarem as custas e taxas judiciais ao país real”. Para o bastonário, é claro que existe “uma justiça para ricos e uma justiça para pobres”.
***
A PGR (Procuradora-Geral da República) deixou uma frase bombástica, mas real: “Estamos longe de vencer a luta contra a corrupção”. Lucília Gago disse que, “sob pena de inevitáveis e dramáticas consequências, designadamente de cariz socioeconómico”, não se podem ignorar “os resultados de múltiplos estudos de distintas entidades que invariavelmente apontam dados reveladores de estarmos longe de obtermos vencimento na luta contra a corrupção”.
Corrupção e criminalidade económico-financeira foram, pois, dois dos temas abordados na abertura oficial do ano judicial pela PGR, considerando que necessitam de particular atenção e exigem a alocação dos imprescindíveis meios humanos e técnicos.
Para 2019, Lucília Gago destacou outras duas áreas temáticas: a proteção dos direitos das vítimas particularmente vulneráveis e a intervenção do Estado, em particular do MP, no direito da família e das crianças. A PGR explicou que a justiça tutelar educativa será ao longo do ano judicial objeto de profunda abordagem pelo MP e pela Procuradoria-Geral da República,
Em breve, adiantou, terá início a execução do plano de ação “Crianças e Crimes na Internet 2019-2020”, iniciativa da Procuradoria-Geral da República, que visa melhorar a capacidade de atuação do MP relativamente a fenómenos ocorridos com utilização das redes de comunicações, quer tenham natureza criminal, quer sejam objeto de intervenção tutelar educativa. E, no domínio da promoção dos direitos e proteção de crianças e jovens, advertiu para a necessidade de regulamentar os regimes de execução das medidas de acolhimento residencial e familiar, pois a não regulamentação dessas medidas tem condicionado fortemente a sua aplicação.
Depois, apontou a “inevitável turbulência” provocada pelas alterações decorrentes da reforma do EMP (Estatuto do Ministério Público), que lançam desafios a uma magistratura com falta de meios humanos. Aplaudiu o facto de ter sido aprovada, na generalidade, a reforma do EMP na Assembleia da República, mesmo sendo necessários “ajustes finais, designadamente os essenciais à plena consagração do paralelismo das magistraturas”.
O polémico tema causou grande desconforto, em dezembro de 2018, depois de Lucília Gago ter ameaçado demitir-se caso a composição do CSMP fosse alterada, posição de força tomada ante a alegada intenção do PS e PSD de avançar com mudanças que implicariam uma maioria de não magistrados naquele órgão. Discursando em Coimbra, a PGR aproveitara o momento para deixar claro que qualquer alteração relativa à composição do CSMP que afete o seu atual desenho legal – designadamente apontando para uma maioria de membros não magistrados – “tem associada grave violação do princípio da autonomia”.
Explicando que as previsíveis alterações são de apreciável dimensão, no funcionamento e na estrutura organizativa, e implicam ajustamentos “cujas repercussões e alcance prático não são totalmente antecipáveis”, advertiu:
Colocarão desafios de relevo numa magistratura em que os meios humanos não se mostram cabalmente providos e em que à tensão quotidiana acrescerá, por força da entrada em vigor de tais alterações, inevitável turbulência”.
As modificações que se perspetivam abarcam relevantes domínios com destaque para a consagração formal dum Departamento Central de Contencioso do Estado e Interesses Coletivos e Difusos, cuja criação elogiou e que irá substituir, “com inegáveis ganhos de eficácia e celeridade, a estrutura informal hoje existente e que resultou de auto-organização do MP”.
Quanto à autonomia do MP, Lucília Gago disse que, sendo um princípio basilar do Estado de Direito Democrático e nela se inscrevendo matérias como a composição e competências do CSMP (Conselho Superior do Ministério Público), que devem manter-se, será como tal inteiramente preservada, por ser “absolutamente imprescindível”.
Na sua 1.ª intervenção na abertura dum ano judicial como PGR, Lucília Gago destacou a importância de prosseguir e aprofundar a sensibilização e formação específica dos magistrados para a cibercriminalidade, sobretudo quanto à obtenção de prova digital, apostando no diálogo com os órgãos de polícia criminal e na interlocução com entidades públicas responsáveis pela segurança informática. E enunciou outro dos desafios que o MP enfrenta, traduzindo as prioridades que se repetem de ano para ano: o crime económico e financeiro, este último, com “tendência de expressivo aumento” entre 2014 e 2018, defendendo Lucília Gago que não basta identificar e punir os fenómenos: é preciso evitar o enriquecimento ilícito pela prática do crime e garantir que é confiscado todo o património que lesou o Estado, com a recuperação de ativos.
O problema – diz a PGR – é que, em ambos os tipos de crime, faltam meios para os enfrentar, não só a nível informático, mas também a nível técnico e humano. E acrescentou:
Apenas uma resposta qualificada e célere ao nível das perícias informáticas e contabilístico-financeiras permitirá uma prossecução eficaz das diligências investigatórias sem quebras na sua cadência e com significativos ganhos na almejada celeridade dos inquéritos”.
***
E o Presidente do STJ, alegando estar na altura de debater a gestão do sistema entregue ao Ministério da Justiça, quer juízes a gerir o sistema informático da justiça e criticou a insanidade dos megaprocessos.
António Joaquim Piçarra, a discursar pela primeira vez na abertura dum ano judicial em nome do STJ (tomou posse em outubro de 2018), dedicou grande parte do discurso à independência da justiça, fundamento da democracia, e lançou no debate os problemas com o sistema informático dos processos judiciais, pondo em causa a gestão “a cargo exclusivo do poder executivo”.
Lembrando que, há três anos, o Citius teve “um colapso quase completo, cujas causas não estão completamente esclarecidas”, pouco depois de ser implementado, e que “são cada vez mais frequentes as referências noticiosas a intrusões ilícitas no sistema”, lançou o repto à rediscussão do tema, admitindo que essa gestão seja feita pelos órgãos da justiça. E alertou para os atropelos à independência do poder judicial nalguns países europeus, pois, o colapso da Europa será inevitável se houver democracias verdadeiras e democracias meramente aparentes.
A questão não é nova. Já em novembro, num encontro de juízes em Coimbra, promovido pelo CSM (Conselho Superior da Magistratura), Piçarra disse que o CSM estava “totalmente disponível para assumir a gestão do sistema informático”.
No seu discurso, o Presidente do STJ deu conta da evolução positiva do descongestionamento dos tribunais, que se manteve em 2018, explicando que, mesmo tendo entrado 437.554 novos processos nos tribunais portugueses, foram concluídos mais de 500 mil. Mas destacou uma “grande dificuldade”: os processos mais complexos e especializados, que se tornam impossíveis de tratar e que são “julgados e decididos virtualmente sem apoio, em trabalhos insanos que consomem dias, meses e anos, roubando, não raro, tempos de descanso e férias numa dedicação que poucos conhecem e quase ninguém reconhece”. Vincando “de modo muito enfático” que “a falta aqui não é dos juízes”, apontou o dedo à “organização geral do judiciário, que não tem sido capaz de lhes dar os meios para lidar adequadamente com realidades que, nalguns casos, quase ultrapassam a capacidade de tratamento humano”.
Do discurso ressalta um alerta: a falta de “pessoas, organizadas e preparadas, para comunicar devidamente as decisões dos tribunais”, deixando que haja “jornalistas à porta dos tribunais durante dias inteiros, sem um espaço para os acolher” e “sem uma pessoa da estrutura judicial a prestar uma declaração ou a dar uma simples informação”, o que não só é mau para o trabalho da comunicação social, mas também prejudica a imagem da justiça. E concluiu:
Independentemente de raça ou sexo, de situação económica ou social. Qualquer que seja o percurso de vida dos envolvidos, todos terão de ser tratados de forma igual, com absoluta imparcialidade e com respeito pelos seus direitos individuais.”.
***
São grandes questões da justiça que não basta serem enunciadas, mas que precisam de ser assumidas, sem estar cada um a puxar a brasa à sua sardinha!
2019.01.15 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário