sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Debate sobre a reorganização dos ciclos de ensino



A 2 de janeiro, os 18 deputados do CDS fizeram entrar na Assembleia da República (AR) o Projeto de Resolução n.º 1891/XIII-4.ª, que “recomenda ao Governo a realização de um estudo com vista à viabilidade da reestruturação dos ciclos de ensino, substituindo a atual partição de 4 ciclos, considerando todas as alterações e consequências decorrentes e avaliando os respetivos impactos”. Para tanto, após descrever a organização dos diversos ciclos de ensino e dar conta das estatísticas atinentes à retenção/reprovação, escuda-se na posição do CNE (Conselho Nacional de Educação), na dos dirigentes escolares (nomeadamente a ANDAEP – associação nacional de diretores de agrupamentos e escolas públicas) e no programa do PS.
Na verdade o PS, no programa eleitoral e de Governo, dizia pretender “uma maior, articulação entre os três ciclos do ensino básico, redefinindo progressivamente a sua estrutura de modo a atenuar os efeitos negativos das transições entre ciclos”.
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Também a 11 de janeiro, deu entrada na AR o Projeto de Resolução n.º 1936/XIII/4.ª – subscrito por 13 deputados do PCP –, a recomendar ao Governo que promova um amplo e profundo debate nacional sobre a reorganização dos ciclos de ensino e a realização de profunda reorganização curricular, envolvendo especialistas e agentes educativos, sobre:
a) A organização do 1.º Ciclo do Ensino Básico, abrangendo a reorganização da rede escolar, a organização pedagógica e regime de docência, a avaliação, e a constituição das turmas;
b) A reorganização dos ciclos de ensino, no concernente à sua duração e articulação; e
c) A realização duma profunda reorganização curricular e consequente adequação de programas, horários e objetivos a concretizar, de modo a corresponder às necessidades do desenvolvimento da sociedade e da formação da cultura integral do indivíduo.
Aduz o texto que a diferença entre o 1.º ciclo e os demais “era marcada pela proximidade com a comunidade educativa, pela interdisciplinaridade curricular e pelo regime de monodocência”. Porém, “a criação dos agrupamentos teve por base a estrutura, as dinâmicas e a cultura escolar das escolas dos 2.º e 3.º ciclos e do secundário”, a que o 1.º ciclo teve de se adaptar. E, em vez da continuidade e articulação pedagógica, acompanhamento do percurso do aluno ou partilha de recursos, gerou a descaraterização da escola do 1.º ciclo, induzindo “os mais diversos atropelos aos interesses dos alunos, as mais inexplicáveis opções pedagógicas, os mais diversos ataques aos direitos dos professores”. No atinente a instalações, “as escolas do 1.º ciclo continuam, em grande parte, a ser edifícios apenas com salas de aula e cantinas e refeitórios adaptados” e onde faltam os espaços polivalentes para o desenvolvimento das mais diversas atividades, desde a educação física à pintura, da brincadeira livre ao jogo orientado ou tão simplesmente para recreio em dias de chuva”. O governo de Sócrates agravou as dificuldades com o encerramento de muitas escolas, “acenando com melhores instalações e equipamentos”. Porém, desvalorizava o pendor de escola de proximidade afastando-a da família, que dizia valorizar, e optando por centros escolares centralizados, numa ótica economicista, que, não respondendo a estas necessidades, criaram novos problemas, como: dimensão desadequada deste nível etário, deslocação de alunos, afastamento da comunidade educativa, para lá dos problemas de ordem social, cultural e de desertificação. E o governo da escola, com exigências de articulação e interdependência “entre escolas e sede do agrupamento, entre este e o município”, é exercício cada vez mais desgastante para os professores “a quem não é atribuída nenhuma redução da componente letiva e tantas vezes acumulado com a lecionação de uma turma”. As AEC e a escola a tempo inteiro somam a indefinição de tempo letivo e de tempo de resposta às famílias, trazem problemas de funcionamento, empobrecem o currículo nas expressões artística e físico-motora, acrescentam trabalho aos docentes, sem o reforço de auxiliares e administrativos, alargam o tempo de abertura da escola reduzindo significativamente “as disponibilidades de atendimento às crianças”. E, iludindo a resposta à necessidade social, decorrente dos horários de trabalho cada vez mais desregulados, dos trabalhadores a quem se negam cada vez mais direitos no acompanhamento dos filhos, as AEC não correspondem às necessidades dos alunos.
Também no governo de Sócrates, pela “alteração da carga horária da componente curricular”, o 1.º ciclo, assente no trabalho interdisciplinar, sofreu a disciplinarização “em horários semanais de distribuição disciplinar rígida”, desadequados deste nível etário. E à escola burocratizada, perdida entre o tempo escolar e a rede de apoio social à família, com o governo do PSD/CDS, acrescem medidas de “elitização precoce no sistema educativo”, pela ênfase nas “disciplinas estruturantes” (português e matemática), pela imposição do exame no 4.º ano e pela introdução das metas curriculares nestas disciplinas. Ora, as alterações curriculares do 1.º ciclo, pela sua dificuldade, desadequação e extensão, deixam clara a intenção de “cedo promover a seleção dos alunos” azando as perversas turmas de nível, “quando em simultâneo se aumenta o número de alunos por turma, se diminuem os recursos docentes para as medidas de apoio educativo e se limita o acesso dos alunos com necessidades educativas especiais”. E, no processo de avaliação dos alunos, atribuir menção classificativa exprime o intento de precoce seriação e elitização do sistema, o que desloca a avaliação contínua centrada nos processos de aprendizagem para a avaliação de resultados desvalorizando a formação integral do indivíduo.
Ora o Governo não mostra vontade política de atacar os verdadeiros e importantes problemas do 1.º ciclo. Apesar das críticas, as AEC mantêm-se sem a procura duma real alternativa. Acabado o exame do 4.º ano, criou-se a prova de aferição no 2.º ano com dificuldades de aplicação. Mantém-se o modelo de avaliação, as metas curriculares, a disciplinarização do 1.º ciclo, a intenção de encerrar escolas, a dependência financeira e a falta de pessoal (auxiliar e administrativo). Mantêm-se os problemas na garantia de sucesso escolar ao nível da transição de ciclos e da elevada desarticulação nas opções da política educativa que impactam a vida e o percurso escolar das crianças. E, além destes problemas, a organização dos ciclos de ensino merece atenta reflexão, pois vários estudos apontam no sentido de dever considerar-se a alteração que atenue transições repentinas com impactos na relação dos alunos com a escola a que estão habituados, na organização do trabalho curricular ou na forma de relacionamento com os professores. Por isso, é premente debater as possibilidades e objetivos duma reorganização do 1.º Ciclo, avaliando concretamente o papel e o regime da monodocência e questionando se é de manter o atual modelo ou avançar para a monodocência coadjuvada; e, neste caso, se o professor titular da turma teria de estar todo o tempo com a turma. Ou será preferível, como como aponta a LBSE (Lei de Bases do Sistema Educativo), avançar para as equipas educativas (e como efetivar a sua constituição?)? Quando e como fazer a transição de modelo? Ou será preferível ponderar um regime de pluridocência? E os subscritores perguntam:
Qual a opinião dos especialistas? Da comunidade educativa? Quais seriam as habilitações de quem fosse responsável pelas diversas áreas do currículo? Seria por escolha dos professores? Seriam professores de outros ciclos? E como se articularia tudo isto com o 2.º ciclo? Faria sentido, efetivamente, avançar para a fusão de ambos os ciclos? Que riscos podem estar subjacentes à fusão dos dois primeiros ciclos do ensino básico?”.
A pari, é de refletir sobre a necessidade duma profunda reorganização curricular, que implica a adequação de programas, horários e objetivos às necessidades do desenvolvimento da sociedade e do progresso coletivo, bem como do desenvolvimento e da formação da cultura integral do indivíduo. E, tendo em conta a desconfiguração do 1.º ciclo ao longo do tempo e a necessidade de ponderar a articulação entre os vários ciclos de ensino, os subscritores apresentam o Projeto na continuidade da “luta por uma escola pública, democrática, de qualidade e para todos”.
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A questão vai de novo ser debatida no Parlamento por via dos preditos projetos, onde se recomenda ao Governo que promova o estudo e um “amplo debate nacional” para se avaliar a viabilidade de proceder à reorganização dos atuais ciclos. Tanto o PS como o ME (Ministério da Educação) não estão dispostos a mudar por ora. O PS, após os remendos deitados na organização curricular e matérias conexas, agora faz saber:  
Não será por vontade do atual Governo ou do PS, no Parlamento, que haverá num futuro próximo alguma iniciativa com vista a repensar a organização do ensino básico (1.º, 2.º e 3.º ciclos) e, por consequência, também a do secundário”.
A deputada do PS Susana Amador adiantou:
O PS não avançará com propostas de redefinição de ciclos, uma vez que estas implicam uma revisão da Lei de Bases do Sistema Educativo [LBSE, aprovada em 1986], a qual nos convoca sempre para uma ampla discussão prévia”.
E frisou, refletindo o pensamento do grupo parlamentar do PS:
Parece ser mais correto investir em estratégicas pedagógicas, como o Governo e a equipa da Educação têm vindo a fazer, do que planear uma revisão da lei de bases sem avaliação de impacto e apenas para marcar agenda ao sabor de impulsos mediáticos”.
Por seu turno, o ME especifica:
Dando cumprimento ao programa do Governo, na elaboração do Programa Nacional para a Promoção do Sucesso Escolar, houve uma preocupação particular com os anos de transição de ciclo, já que as dificuldades associadas à transição se verificam também no 7.º e 10.º ano e, por isso, tem sido feita uma aposta na criação de dinâmicas entre ciclos”.
E o ME frisa:
No âmbito da flexibilidade curricular, tem sido promovido um trabalho em equipas pedagógicas que, no 2.º ciclo, tira partido do facto de os grupos de recrutamento permitirem uma redução do número de professores por turma”.
Ora, o número de professores por turma, que no 2.º ciclo (constituído pelos 5.º e 6.º anos) pode chegar a 10, é um dos problemas apontados a este nível de escolaridade por investigadores e responsáveis políticos por três razões: passagem brusca do ensino em regime de monodocência para outro nível com um professor por disciplina e geralmente lecionado noutra escola; segmentação de saberes que daí decorre; e idade precoce (10-11 anos) da mudança.
Joaquim Azevedo, investigador da Universidade Católica, que integrou a comissão constituída pelo CNE para avaliar a LBSE, por ocasião do 30.º aniversário da sua entrada em vigor, destaca um “problema base” que é o “da consideração acerca do que se entende por educação da infância” e lembra:
Na maioria dos países mais desenvolvidos, a educação da infância compreende a educação pré-escolar e o ensino básico até aos 11 anos, havendo uma escolaridade básica de cinco ou seis anos”.
É assim em quase todos os 38 países acompanhados pela rede europeia de informação Eurydice.
E Joaquim Azevedo realça que “as aquisições que se realizam na escolaridade básica são estruturantes e o que não se adquire nestes anos nunca mais se irá adquirir”, para referir que é “a necessidade de aprofundamento” das aprendizagens básicas que justifica a “extensão” deste nível de escolaridade. E sustenta:
É aqui que residem as principais vantagens desta opção, além de que não se fazia o aluno empreender mudanças tão drásticas, tanto de escola, como no número de professores”.
Luís Grosso Correia, professor da Universidade do Porto, especialista em História da Educação, diz que o modo como tem sido desenvolvido o 2.º ciclo contraria o estipulado na LBSE:
A lei de bases afirma que a organização curricular do 2.º ciclo é por áreas interdisciplinares e que o regime de docência é de um professor por área interdisciplinar [quatro], mas as reformas curriculares que lhe sucederam, em 1989, 2001 e 2012, não respeitam este princípio”.
E continua a suceder com a reforma curricular de 2018 este desfasamento entre a prática e o que estipula a LBSE em relação ao 2.º ciclo, o que, aliás, constitui “uma das fragilidades do sistema educativo que urge resolver”, como anota o especialista.   
Por sua vez, Ana Rita Bessa, deputada centrista, lembra que, já em 2016, o CDS apresentou uma proposta de revisão da LBSE onde se propunha a reorganização do ensino básico e secundário em 2 ciclos de 6 anos cada, rejeitada com os votos contra do PS, BE e PCP e a abstenção do PSD. Volta agora à carga com um projeto que apenas recomenda que o Governo realize “um estudo com vista à viabilidade da reestruturação dos ciclos de ensino”. E fê-lo, esclarece, porque as associações de diretores também defenderam a mudança e para responder ao desafio, em novembro, da presidente do CNE, Maria Emília Brederode Santos, que defendeu a necessidade “de repensar" a organização do ensino básico, designadamente a velha questão do 2.º ciclo (um ano para entrar, outro para sair), dadas as dificuldades assinaladas nos anos de transição, sendo nestes anos que geralmente as taxas de retenção são mais elevadas.
Segundo Ana Rita Bessa, o CDS optou agora por privilegiar “o princípio da cautela, dadas as imensas implicações práticas que uma mudança destas acarretaria, a começar pelos edifícios escolares (em muitos casos, o 2.º ciclo é leccionado em escolas diferentes das do 1.º) e passando pelos docentes” no respeitante ao número necessário e à formação inicial. E seja qual for o destino que a questão tenha no Parlamento, este será um dos temas do programa eleitoral do CDS.
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Joana Mortágua, deputada do BE, não revela a posição do partido, mas afirma que será estudada a reestruturação dos ciclos de ensino no âmbito da preparação do próximo programa eleitoral:
Há alterações do sistema educativo que têm de ser pensadas através de um debate alargado. É uma discussão que se terá de fazer com muita tranquilidade e com a garantia de que não seja usada como um cavalo de Troia para mudar a LBSE no que ela tem de fundamental, como é o caso da defesa intransigente da escola pública.”.
Já o PCP considera que a existência ou não do 2.º ciclo “é uma discussão pertinente e que deve ser desenvolvida”. Justifica, a este respeito, a deputada Ana Mesquita:
Por um lado, tem ocorrido uma enorme desconfiguração do 1.º ciclo ao longo dos anos. Por outro, há vários estudos que apontam no sentido de considerar uma alteração que possa atenuar transições repentinas que tenham impactos na relação dos alunos com a escola a que estão habituados, na organização do trabalho curricular ou na forma de relacionamento com os professores.”.
Em 2003, o Governo de Durão Barroso propôs a LBSE (Lei de Bases da Educação) com a organização dos 12 anos de escolaridade obrigatória do sistema educativo em dois níveis: o básico (em 2 ciclos, o 1.º de 4 anos e o 2.º de 2) e o secundário (com 2 ciclos, o 1.º de teor unificado embora com formações vocacionais, e o 2.º diversificado por disciplinas e com áreas curriculares não disciplinares). O Parlamento aprovou-a com os votos do PSD e do CDS, mas Sampaio vetou-a. David Justino, ora vice-presidente do PSD e ao tempo Ministro da Educação, diz que a posição do PSD “tende a ser mesma”. Mas quanto à disponibilidade do PSD para apoiar propostas com este fim, avisa:
Não contem connosco para revisões pontuais. Só estamos disponíveis para abrir um processo de revisão geral da Lei de Bases, de preferência no quadro da Assembleia da República”.
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Em suma, PSD, CDS e PCP concordam; BE hesita; e PS rejeita. Mas o PSD garante que mudanças só terão o seu voto no quadro da revisão de fundo da LBSE. E o ME nega que as retenções se devam à atual configuração do 2.º Ciclo, mas não se ponta a floresta do 3.º ciclo – tantas disciplinas com carga horária tão reduzida!
2019.01.18 – Louro de Carvalho 

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