quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Um discurso de Francisco em nome da paz entre os povos


No passado dia 7 de janeiro, o Papa discursou perante Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé em que analisou alguns acontecimentos atuais da vida política internacional e teceu considerações sobre eles, refletindo sobre “os desafios que nos esperam no futuro próximo” e deixando claro “o propósito de se colocar ao serviço do bem de todo o ser humano”.
Depois de fazer votos por que o ano, há pouco iniciado, traga paz e bem-estar a cada um dos membros da família humana, manifestou apreço a cada um dos diplomatas “pela colaboração que prestam diariamente para consolidar as relações” entre o seu respetivo país ou organização e a Santa Sé, “fortalecidas ainda mais pela assinatura ou ratificação de novos acordos”.
E, entre estes, mencionou, em termos bilaterais, a ratificação do Acordo-Quadro entre a Santa Sé e a República do Benim sobre o Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Benim, a assinatura do Acordo entre a Santa Sé e a República de São Marino para o Ensino da Religião Católica nas escolas públicas, a assinatura dAcordo Provisório entre a Santa Sé e a República Popular da China sobre a nomeação dos Bispos na China e a perspetivação do estabelecimento da relações entre a Santa Sé e o Vietname; e, no âmbito multilateral, a ratificação, pela Santa Sé, da Convenção Regional da UNESCO sobre o Reconhecimento das Qualificações do Ensino Superior na Ásia e no Pacífico, a adesão ao Acordo Parcial alargado sobre as Rotas Culturais do Conselho da Europa e a admissão do Estado da Cidade do Vaticano na SEPA (Área Única de Pagamentos em Euros).
Tudo isto se inscreve no quadro da obediência à missão espiritual ao ditame dado por Jesus a Pedro de apascentar os seus cordeiros, que impele o Papa a preocupar-se com toda a família humana e as suas necessidades (mesmo de ordem material e social), apesar de a Santa Sé não pretender imiscuir-se na vida dos Estados. No entanto, quer ser “ouvinte solícita e sensível das problemáticas que dizem respeito à humanidade”, com o propósito de se colocar ao serviço do bem de todo o ser humano. E é no âmbito desta solicitude que o Papa tem estes encontros com diplomatas, chefes de Estado e de Governo, com os inúmeros peregrinos que vêm ao Vaticano de todas as partes do mundo e com os povos e as comunidades que tem a alegria de visitar através das viagens apostólicas. E mencionou as efetuadas, no ano passado, ao Chile, Peru, Suíça, Irlanda, Lituânia, Letónia e Estónia.
Depois, referiu que 2019 possibilitará a celebração de diversos aniversários, como o 70.º aniversário da criação do Conselho da Europa e o centenário da criação da Sociedade das Nações. Sobre este centenário, apontou a razão de lembrar uma organização que já não existe:
Ela constitui o início da diplomacia multilateral moderna, através da qual os Estados procuram preservar as relações mútuas da lógica da vexação que leva à guerra. Aquele prelúdio que foi a Sociedade das Nações depressa embateu nas dificuldades conhecidas de todos que, vinte anos exatos depois do seu nascimento, levaram a um novo conflito ainda mais dilacerante: a II Guerra Mundial. Apesar disso, ela abriu uma estrada, que será percorrida mais decididamente com a instituição, em 1945, da Organização das Nações Unidas: uma estrada certamente cheia de dificuldades e contrastes; nem sempre eficaz, porque conflitos, infelizmente, há-os ainda hoje; mas sempre uma oportunidade inegável para as nações se encontrarem e buscarem soluções comuns.”. 
Considerando “premissa indispensável” para a diplomacia multilateral “a boa vontade e a boa-fé dos interlocutores, a disponibilidade para um confronto leal e sincero e a vontade de aceitar os compromissos inevitáveis que nascem do confronto entre as Partes”, vincou:
“Sempre que falta um só destes elementos, prevalece a busca de soluções unilaterais e, em última análise, a vexação do mais fraco pelo mais forte. A Sociedade das Nações entrou em crise precisamente por estes motivos e ainda hoje se nota, infelizmente, que as mesmas atitudes estão a insidiar a estabilidade das principais organizações internacionais.”.
Por isso, apelou a que “não esmoreça a vontade dum confronto sereno e construtivo entre os Estados, pois é evidente que as relações dentro da comunidade internacional e o próprio sistema multilateral no seu conjunto estão atravessando momentos difíceis com o ressurgimento de tendências nacionalistas, que minam a vocação de as organizações internacionais serem espaço de diálogo e encontro para todos os países”. E explicou:
Isto fica-se a dever, por um lado, a uma certa incapacidade do sistema multilateral em oferecer soluções eficazes para várias situações já há muito não resolvidas, como alguns conflitos ‘congelados’, e enfrentar os desafios atuais de forma satisfatória para todos. Por outro lado, é o resultado da evolução das políticas nacionais, determinadas com frequência cada vez maior pela busca dum consenso imediato e partidário, em vez da paciente prossecução do bem comum com respostas a longo prazo. Por outro lado ainda, deve-se à maior preponderância nas organizações internacionais de poderes e grupos de interesses que impõem as suas perspetivas e ideias, desencadeando novas formas de colonização ideológica, não raro desrespeitadoras da identidade, dignidade e sensibilidade dos povos.”.
Depois, apontou como uma das fortes causas da falência da cooperação multilateral a reação, em determinadas áreas do mundo, à globalização desenvolvida rápida e desordenadamente, de modo que entre globalização e situação local se gera tensão, quando era preciso “prestar atenção à dimensão global sem perder de vista o que é local”. E aos nacionalismos contrapôs:
À vista duma ‘globalização esférica’, em que se nivelam as diferenças e as particularidades parecem desaparecer, é fácil ressurgirem os nacionalismos; mas a globalização pode ser também uma oportunidade, se for ‘poliédrica’, ou seja, se favorecer uma tensão positiva entre a identidade de cada povo e país e a própria globalização, de acordo com o princípio de que o todo é superior à parte”.
E referiu que algumas atitudes em voga (nacionalistas, populistas e xenófobas) lembram o período entre as duas Grandes Guerras, quando as tendências populistas e nacionalistas prevaleceram sobre a Sociedade das Nações, estando o reaparecimento de tais impulsos a enfraquecer o sistema multilateral, resultando daí a geral falta de confiança, a crise de credibilidade da política internacional e a marginalização dos membros mais vulneráveis da família das nações.
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Passou, a seguir, estribado no memorável discurso de Paulo VI à Assembleia Geral das Nações Unidas, a recordar e reassumir os objetivos da diplomacia multilateral, delineados por aquele seu predecessor, com as suas caraterísticas e responsabilidades no contexto atual, destacando também os seus elementos de contacto com a missão espiritual do Papa e da Santa Sé.
E sintetizou tudo nos seguintes itens: a primazia da justiça e do direito; a defesa dos mais fracos; ser ponte entre os povos e construtores da paz; e repensar o nosso destino comum.
A primazia da justiça e do direito. Tendo sido à luz deste postulado que enunciou a Mensagem para o LII Dia Mundial da Paz sob o tema “A boa política está ao serviço da paz”, precisou:
Convém que as personalidades políticas escutem as vozes dos seus povos e busquem soluções concretas para promover o maior bem possível deles. Isso, porém, requer o respeito do direito e da justiça, tanto dentro das comunidades nacionais como na comunidade internacional, porque reações emocionais e precipitadas poderão aumentar consensos a curto prazo, mas de certeza não contribuirão para a solução dos problemas mais radicais, antes agravá-los-ão.”.
Fundado na dimensão transcendente da pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus, salientou que “o respeito pela dignidade de cada ser humano é a premissa indispensável para toda a convivência realmente pacífica e o direito constitui o instrumento essencial para a consecução da justiça social e para alimentar os vínculos fraternos entre os povos”. E, neste contexto, colocou o papel fundamental desempenhado pelos direitos humanos, enunciados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, “cujo caráter universal, objetivo e racional seria oportuno redescobrir, para não prevalecerem visões parciais e subjetivas do homem, que correm o risco de abrir caminho a novas desigualdades, injustiças, discriminação e, em última instância, a novas violências e abusos”.
A defesa dos mais fracos. É outro elemento que recordou e para o que citou o Papa Montini:
Fazemos também Nossa a voz dos pobres, dos deserdados, dos infelizes, dos que aspiram à justiça, à dignidade de viver, à liberdade, ao bem-estar e ao progresso”.
E reforçou que “desde sempre a Igreja se empenhou em acudir a quem está necessitado e, no decurso destes anos, a própria Santa Sé se fez promotora de vários projetos de sustentáculo aos mais vulneráveis, tendo recebido apoio também de distintos sujeitos a nível internacional”. E vem o fazendo por si e em articulação com as demais confissões religiosas e outras instituições com preocupação social, considerando ser este um dos misteres a que é chamada hoje toda a comunidade internacional.
Foi nesta perspetiva que a Santa Sé adotou os Pactos Globais sobre Refugiados e sobre a Migração segura, ordenada e regular.
Salientou ainda a necessidade de atender de modo particular a determinados grupos fragilizáveis da sociedade, como os jovens, que tiveram lugar relevante na XV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos e que serão os protagonistas da viagem apostólica ao Panamá por ocasião da XXXIV Jornada Mundial da Juventude; as crianças, sobretudo neste ano em que tem lugar o 30.º aniversário da adoção da Convenção sobre os Direitos da Criança, com enunciados pertinentes a ter em conta todos os dias; as mulheres, frequentemente cercadas por contextos familiares e sociais de exploração e violência, mas cuja dignidade está no centro da Carta apostólica  Mulieris dignitatem, publicada há 30 anos por São João Paulo II; e os trabalhadores, sendo de pedir à OIT (Organização Internacional do Trabalho) que prossiga, livre de interesses parciais, a ser exemplo de diálogo e concertação para alcançar os seus altos objetivos, entre os quais se conta o combate ao flagelo do trabalho infantil e às novas formas de escravidão, bem como à diminuição progressiva do valor dos salários, à falta e a precariedade do emprego e à persistente discriminação das mulheres nos ambientes laborais.
Ser ponte entre os povos e construtores da paz. É a grande tarefa das Nações Unidas, na ótica de São Paulo VI, como é a tarefa de todos os decisores, apoiada pela educação para um estilo de vida pacífico. E, aqui, o Papa mencionou alguns sinais de paz significativos, plasmados em importantes acordos internacionais em busca da paz e retomou, em certa medida as preocupações elencadas na Mensagem Urbi et Orbi no fim da manhã do dia de Natal de 2018.
Repensar o nosso destino comum. Lembrou que São Paulo VI afirmou:
Devemos habituar-nos a pensar (...) de uma maneira nova também a vida comunitária dos homens, de uma maneira nova enfim os caminhos da história e os destinos do mundo (…). Eis chegada a hora em que se impõe (…) pensar de novo na nossa comum origem, na nossa história, no nosso destino comum. Nunca como hoje, numa época marcada por tal progresso humano, foi tão necessário o apelo à consciência moral do homem. Porque o perigo não vem nem do progresso nem da ciência (…). O verdadeiro perigo está no homem, que dispõe de instrumentos sempre mais poderosos, aptos tanto para a ruína como para as mais elevadas conquistas.”.
Repensar o nosso destino comum, no contexto atual, diz o Papa Francisco, significa parar com a corrida ao armamento (nuclear e convencional) e repensar a relação com o nosso Planeta.
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Também o Papa evocou outras efemérides a celebrar no ano já iniciado. Entre elas, destacam-se: a queda do Muro de Berlim, a 9 de novembro de 1989, e, passados uns meses, o termo da última herança da II Guerra Mundial: a lacerante divisão da Europa decidida em Ialta e a guerra fria, levando os países a leste da cortina de ferro a reencontrar a liberdade depois de decénios de opressão; e o nascimento do Estado da Cidade do Vaticano, na sequência da assinatura dos Pactos Lateranenses entre a Santa Sé e a Itália, a 11 de fevereiro de 1929.
Sobre o primeiro, de que celebraremos os 30 anos, observou:
No contexto atual, em que prevalecem novos ímpetos centrífugos e a tentação de erguer novas cortinas, não se perca na Europa a consciência dos benefícios – sendo o primeiro deles a paz – trazidos pelo caminho de amizade e aproximação entre os povos empreendido depois da II Guerra Mundial”.
Em relação ao segundo, cujo 90.º aniversário se celebrará, considerou:
Encerrava-se, assim, o longo período da ‘Questão Romana’ na sequência da tomada de Roma e do fim do Estado Pontifício. Com o Tratado de Latrão, a Santa Sé podia – como fez questão de afirmar Pio XI – dispor daquele ‘mínimo de território material que é indispensável para o exercício dum poder espiritual confiado  homens em benefício de homens' e, com a Concordata, a Igreja pôde de novo contribuir plenamente para o crescimento espiritual e material de Roma e de toda a Itália, uma terra rica de história, arte e cultura, que o cristianismo contribuiu para forjar”.
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Deste poderoso discurso fez ressonância, em entrevista ao Vatican News, o Padre Antonio Spadaro, diretor da revista italiana ‘La Civiltà Cattolica’, a acentuar que o Papa, mencionando a tensão entre globalismo e localismo, indicou, de forma pujante, “a via da diplomacia multilateral, para que as nações voltem a colaborar na solução dos desafios globais”.
Segundo Spadaro, a diplomacia multilateral é “um ponto central” no discurso de Francisco, já que “o problema nos nossos dias é justamente o facto de que as nações tendem a resolver as questões individualmente”, sobretudo com o reaparecimento dos nacionalismos. E o Papa diz que devem ser resolvidas questões relevantes, como a tensão entre globalismo e localismo, alertando para o pouco respeito pelas situações locais e para a não audição dos povos.
Depois, Spadaro sublinha a insistente referência às mulheres (três vezes, em três lugares diferentes), com o Pontífice a apontar o dedo em três direções específicas: o abuso físico e psicológico das mulheres; a necessidade de descobrir formas de relações justas e equilibradas, baseadas no respeito mútuo e reconhecimento entre homens e mulheres; e a relevância da cessação das violações dos direitos humanos, que são causa de sofrimento especialmente para as mulheres “frequentemente em situação de fraqueza”. Nesse sentido, o Papa recordou e relevou o papel das mulheres na sociedade.
E, comentando a evocação do drama das guerras, o diretor de ‘La Civiltà Cattolica’ confessou-se “impressionado quando o Papa frisou que a política constrói a história, uma frase que de alguma forma mostra a vocação da política e articula os pontos de contacto entre o trabalho das Nações Unidas e o da Santa Sé”. Em três pontos de que falou (defesa dos fracos, construção de pontes entre os povos e repensar o destino comum), Francisco “quase reconstruiu o Atlas ao fazer uma lista de países onde há sérios problemas que devem ser enfrentados e abriu as janelas de algumas situações, como o acordo histórico entre a Etiópia e a Eritreia”. E Spadaro prosseguiu:
Ele quis, de alguma forma, indicar as situações que precisam de ser enfrentadas com maior coragem e, ao mesmo tempo, mostrar como, quando há coragem, podem ser encontradas soluções”.  
Mais: o Pontífice referiu-se “à situação dos migrantes e refugiados, mas olhando para essa situação de um ponto de vista verdadeiramente global”; ao problema sempre na pauta, o dos abusos, lembrando o 30.º aniversário da Convenção sobre os Direitos da Criança; e ao relacionamento com o planeta. E no âmbito deste último ponto, vincou:
Ele [o Papa] está ciente dos riscos do aquecimento global, que não são apenas riscos ecológicos, mas sociais. Isso porque a deterioração das condições climáticas leva muitas pessoas a emigrar. Para Francisco, a dimensão ecológica está profundamente ligada à dimensão social.”.
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São questões a que é urgente darem todos – governos, religiões, associações e sociedades, escolas e grupos de cidadãos – a devida atenção e fazerem tudo para a mudança eficaz!
2019.01.09 – Louro de Carvalho

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