A Igreja
está no mundo pela natureza das coisas, corroborada pela vontade de Cristo, que
nos quer no mundo, sem sermos do mundo. Portadora do projeto salvífico de Deus
em prol de todos os homens, não pode fechá-lo na arca da memória, mas
proclamá-lo, propondo-o sem o impor.
E, para
isso, não pode ficar parada e inativa, mas tem de ir pelo mundo inteiro e
anunciar a boa nova a toda a criatura (cf Mc 16,15) acreditando que a massa ficará
toda fermentada (cf Mt, 13,33), apesar de o fermento ser uma
fração minúscula. Esta é uma das imagens do Reino de Deus cujo mistério o
Senhor pregou como estando já entre nós, pedindo a conversão e a fé no Evangelho.
Ora, a
Igreja tem de estar ao serviço do reino, que já começou, mas está longe da
consumação. E, tal como Cristo encarnou para se aproximar do homem, também a
Igreja tem de se encarnar no mundo, pondo-se em diálogo com ele, inculturada na
realidade histórica, inserida na sociedade, encarnada na vida do povo. Não
fica, vai; não se exalta, emparceira; não impera, serve; não dirige, acompanha;
não cega nem encandeia, ilumina.
Ela é na
sua essência, comunidade missionária, comunhão no amor, sempre fiel a Cristo e
aos seres humanos. Como missionária, sabe que é enviada anunciar o Salvador e
não a anunciar-se a si mesma. Como comunhão de amor, não pode desferir o látego
do anátema. Deve, antes falar com ternura, escutar sem condenar e acolher com misericórdia.
Razão
tem o Papa Francisco em querer uma Igreja de portas abertas, mais forte no
querigma que no legalismo, Igreja da misericórdia em vez da severidade
justiceira, Igreja que “não cresce por proselitismo, mas, por atração”, uma
Igreja com a atenção solícita de Maria às necessidades dos homens e aponta que “não têm vinho”, uma Igreja confiante
como Maria a pedira quem serve: “Fazei
tudo o que Ele vos disser” (cf Jo 2,3.5).
Motivados
pelas orientações de Francisco que nos convoca para uma “Igreja em saída”, os cristãos
– clérigos ou leigos, cada um na sua condição e função – evangelizarão com
ardor, dinamismo, ousadia, criatividade, coragem e alegria. Não terão medo de
se sujar com as lamas do caminho. Terão, antes, medo de ficar fechados nas
estruturas que tiveram de criar em nome da eficiência. Clamando, como os primeiros
discípulos, “Vimos os Messias” (Jo
1,41), têm a força de
correr mundo a fazer discípulos (cf Mt, 28,19), porque sabem que Deus por
nosso amor não se calará nem repousará até que apareça a aurora da justiça e a salvação brilhe como um facho
ardente (cf Is 62,1).
Cada
cristão pode dizer: “Eu sou uma missão
nesta terra e para isso estou neste mundo” (EG, n. 273). Não podemos ficar tranquilos em
espera passiva, em nossos templos. É preciso passar da pastoral de mera
conservação para a pastoral decididamente missionária (EG,
n. 21). A Igreja
missionária vive da esperança e é semeadora de esperança, visto que o mundo
pode ser diferente. “Esta é a vitória que
vence o mundo: a nossa fé” (1Jo
5,4).
***
A ação
dos cristãos leigos e cristãs leigas no mundo pode ser vista de vários modos: a
ação rotineira feita nas funções diárias na casa, no trabalho e no lazer; a
ação dos homens e mulheres a trabalhar na construção do mundo nas mais diversas
frentes; e a ação em que os leigos se organizam em nome da fé para influenciar
positivamente a construção da sociedade. Em todos os casos, a graça de Deus
atua como força primeira que possibilita e leva a bom termo as ações humanas.
Vale, pois, rezar como o salmista: “Se o
Senhor não construir a casa, é inútil o cansaço dos pedreiros” (Sl
127,1).
Na verdade,
como ensina o apóstolo Paulo, na unidade construída pelo Espírito Santo,
sobressai a diversidade de dons e serviços distribuída pelo mesmo Espírito para
bem de todos (carismas):
“Há diversos modos de
agir, mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos. A cada um é dada a
manifestação do Espírito, para proveito comum. A um é dada, pela ação do
Espírito, uma palavra de sabedoria; a outro, uma palavra de ciência, segundo o
mesmo Espírito; a outro, a fé, no mesmo Espírito; a outro, o dom das curas, no
único Espírito; a outro, o poder de fazer milagres; a outro, a profecia; a
outro, o discernimento dos espíritos; a outro, a variedade de línguas; a outro,
por fim, a interpretação das línguas. Tudo isto, porém, o realiza o único e o
mesmo Espírito, distribuindo a cada um, conforme lhe apraz.” (1Cor
12,6-11).
É como
no corpo humano, que é um só com muitos membros (cf 1Cor 12,12-31) e sem que se discuta a importância
e o papel de cada um. E nem a diversidade prejudica a unidade nem a unidade impede
a diversidade.
O Papa
quer uma
Igreja pobre, ao serviço dos pobres e com os pobres, que vá às
periferias geográficas e existenciais e lá se torne presente e atuante. Diz o
Pontífice:
“Há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre a
fé e os pobres. Não os deixemos jamais sozinhos.” (EG, n. 48).
E Dom
António Francisco dos Santos, quando era Bispo do Porto, deixou pairar nas
consciências o pregão: “Os pobres não
podem esperar”.
Mercê da
ajuda da graça divina e do entusiasmo evangélico e ousadia missionária do
cristão leigo, este porá em prática o repto de Francisco: “nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador
sem direitos, nenhum povo sem soberania, nenhuma pessoa sem dignidade”. Por
isso, ao olhar o rosto de que sofrem qualquer forma de discriminação em relação
à vida, deve comover-se e, sobretudo, motivar-se a abraçar cada vez mais a missão
de leigo na sua comunidade.
Como
pobre e missionária, a Igreja do serviço, da escuta e do diálogo
propõe-se trabalhar na construção da “cultura do encontro”. (EG,
n. 220). E o
encontro tem de gerar compromissos em ordem ao bem comum, com sabedoria e
humildade. Aqui, todos contribuem e recebem. O diálogo, a partir de Jesus
Cristo estende-se a todos os níveis: a cultura popular, a política, o mundo das
artes, as tradições religiosas, a relação intergeracional, etc.
A Igreja do serviço, da escuta e
do diálogo vive uma
espiritualidade encarnada caraterizada pelo seguimento de Jesus, pela
vida no Espírito, pela comunhão fraterna e pela inserção no mundo. É uma Igreja
de pessoas e comunidades que têm a oração e a contemplação como dado
fundamental na vida. De facto, a experiência do encontro pessoal com Jesus,
gerador do encontro com as pessoas, leva-nos a espiritualidade integral,
que postula a escuta de Deus e dos seus sinais presentes no mundo e no tempo, a
conversão pessoal, o discipulado, a experiência comunitária, a formação
bíblico-teológica e o compromisso missionário. Porém, os cristãos que vivem em circunstâncias
adversas, impossibilitados duma atuação mais concreta, não podem sentir-se fora
da única missão da Igreja, mas devem ter a consciência de que o sofrimento e o
isolamento que forem necessários constituem uma realidade aberta à
evangelização, no alinhamento com desabafo paulino: “Completo na minha carne, o que falta às atribulações de Cristo em favor
do seu Corpo que é a Igreja” (Cl 1,24). Qualquer das modalidades de espiritualidade
no seguimento e às ordens de Cristo constitui-se como uma espiritualidade encarnada
que tem o seu fundamento na comunidade trinitária e no mandamento do amor. O
outro não é só alguém, mas um irmão, um dom. E o cristão em Igreja é a continuação
da encarnação do Senhor. E esta espiritualidade encarnada faz-se espiritualidade
de comunhão e missão, pela qual a Igreja está voltada ao mesmo tempo
para dentro e para fora: para dentro, porque tem de receber a força do Alto (cf
Lc 24,49), ter
consciência da presença acompanhante do Senhor (cf Mt 28,20); para fora, porque tem de
cultivar o respeito mútuo, o diálogo, a proximidade, a partilha, a
benevolência, a beneficência, a bênção e a profecia. Afirma-se discípula e
apóstola ao envolver-se no esforço e na prática da misericórdia, do amor, do
perdão, da reconciliação e da fraternidade, até ao amor aos inimigos. O
discípulo missionário torna-se fonte de paz, de relacionamento, de concórdia,
de unidade. É misericordioso, filho de Deus e arrebata o reino.
Na
conjuntura atual, emergem na Igreja tendências para o subjetivismo, o
sentimentalismo, o devocionismo, o demonismo, as “revelações privadas”. A este
respeito, diz o Papa:
“Há certo cristianismo feito de devoções, próprio de uma vivência
individual e sentimental da fé, que na realidade não corresponde a uma
autêntica ‘piedade popular’. A missão precisa do ‘pulmão da oração’, da
mística, da espiritualidade, da vida interior. […] Não servem as propostas
místicas desprovidas de um vigoroso compromisso social e missionário, nem os
discursos e ações sociais e pastorais sem uma espiritualidade que transforme o
coração.”.
***
Porém,
deve assumir-se a piedade popular como força evangelizadora, pois refere a Evangelii gaudium que o povo se evangeliza
a si mesmo iluminado pelo Espírito Santo – a espiritualidade dos simples, um
modo de viver a fé, de se sentir Igreja e de ser missionário. É toda uma maneira nova de trabalhar o tema do anúncio
do Evangelho no respeito profundo pelas diversas culturas e, em particular,
pelas múltiplas riquezas expressas na piedade popular. A questão da
inculturação ganha um conteúdo concreto nesse respeito singular ao “rosto
pluriforme” que ganha o cristianismo em sua dinâmica dialogal com as diversas
culturas. Escreve o Papa:
“Cada porção do povo de Deus, ao traduzir na
vida o dom de Deus segundo a sua própria índole, dá testemunho da fé recebida e
enriquece-a com novas expressões que falam por si. Pode-se dizer que o povo se
evangeliza continuamente a si mesmo.” (EG 122).
E o Papa
emérito chama à religiosidade popular “tesouro
precioso da Igreja Católica” na qual “aparece
a alma do povo”. Para a compreender, é preciso olhá-la com os olhos do Bom
Pastor, não julgar, mas amar. Pensemos nas peregrinações aos santuários, no
amor e respeito pelos mortos, nas novenas, na via-sacra, nas procissões, no
rosário, nos cânticos, nas orações, etc.
À
espiritualidade popular contrapõe-se um certo “mundanismo espiritual” que
invade alguns setores eclesiais e que, segundo o Papa Francisco, consiste em
“só confiar nas próprias forças e se sentir superior aos outros por cumprir
determinadas normas ou por ser irredutivelmente fiel a um certo estilo
católico, próprio do passado”. Oculta-se por trás de fascínio da mostra de conquistas
sociais e políticas; exprime-se numa densa vida social cheia de viagens,
reuniões, jantares, receções…; desdobra-se num funcionalismo empresarial
repleto de estatísticas, planificações e avaliações; e enclaustra-se em grupos
de elite. Nesse sentido, multiplicaram-se as irmandades, as confrarias e as
associações.
Ora, é
preciso articular a lectio biblica com
a escuta dos sinais dos tempos e passar do elitismo corporativista aos espaços de
espiritualidade, reflexão e ação; das estruturas burocratizadas às estruturas fautoras
da liberdade dos filhos de Deus e construtores e acolhedores da fraternidade;
do assistencialismo às pastorais sociais com a atuação profético-transformadora;
dos espaços eclesiais acessíveis a muito poucos aos espaços de participação de
cristãos leigos em comunhão com os pastores. Com efeito, pelo batismo todos nós
somos chamados a ser missionários do Reino de Deus, não podendo dizer que não podemos,
não conseguimos, não estamos preparados... Antes, devemos ter a coragem de “ir
contra a corrente”, ter a coragem de sermos felizes onde quer que estejamos, dizendo
‘sim’ ao projeto de Deus. Para tanto, é preciso estar com atenção aos carismas
e seguir os impulsos do Espírito, bem como cuidar da formação e ter a humildade
de integrar espaços de solidariedade inspirados no dinamismo evangélico.
***
A partir
de carismas no seio do Povo de Deus nasceram, como frutos do Vaticano II, novos
movimentos, comunidades, associações de leigos, serviços pastorais – dons do
Espírito à Igreja e ao mundo. Assim, a Igreja conta com uma variada gama de
associações de fiéis que agregam leigos, leigos e clérigos, e leigos e leigas
consagrados, cada qual com o seu carisma e com os seus modos próprios de
organização e métodos de ação. E, em muitas das novas comunidades, configura-se
um espaço misto de vida laical, religiosa e clerical. Mas é necessária a formação!
Na
Igreja, cada um é chamado a ser um sujeito eclesial ativo que, segundo a sua
capacidade e de acordo com os seus carismas e a sua função, se coloca a serviço
dos irmãos.
A comunidade
eclesial é responsável pela formação. Os que ocupam funções de direção ou
exercem especial responsabilidade no Povo de Deus (bispos,
presbíteros, diáconos, consagrados e lideranças leigas) são os primeiros responsáveis
pelo processo formativo. E cada organização deve assumir a formação de seus
membros como exigência de nossa condição humana e tarefa primordial, o que
exige empenho de todos.
A
formação – que possui uma vertente sistemática e formal como atividade planeada
e executada pela e na comunidade eclesial – requer atualização permanente
segundo as diretrizes da Igreja, a pesquisa teológica e a pesquisa científica, relacionando
a teoria e a prática.
O processo
formativo (cuja base é a formação bíblica, catequética,
litúrgica, moral e espiritual)
constitui um caminho relativamente longo com itinerários diversificados,
respeitando os ritmos individuais e comunitários e com as caraterísticas da gradualidade.
O acompanhamento do discípulo segue na perspetiva do diálogo e da transformação
social e atende às questões específicas de cada um e da comunidade. A espiritualidade
deve transformar a vida de cada discípulo em resposta aos impulsos do Espírito.
Todos os sujeitos eclesiais são chamados a ser ramos da videira, a crescer,
amadurecer continuamente, a dar cada vez mais fruto. Cada seguidor de Jesus
está inserido num processo de identificação contínua com o Mestre. E a formação
contribuirá para que os cristãos vivam o seguimento de Jesus Cristo e deem uma
resposta do que significa ser cristão hoje.
Todos
convivemos com limitações, o que exige de todo Povo de Deus (e
de cada um), a busca
permanente da compreensão e da vivência dos conteúdos e exigências da fé. Estas
exigências espelham-se em grande parte na DSI (Doutrina Social
da Igreja), que é um
precioso tesouro que oferece critérios e valores, respostas e rumos para colmatar
as necessidades, as perguntas e os questionamentos da ordem social, em vista do
bem comum.
A formação
do laicado, fundamentada na Palavra de Deus e no Magistério da Igreja, deve ser:
mistagógica (relacionada com a catequese, a liturgia e a vida integral,
responde aos quesitos da fé, razão, emoção e espiritualidade); missionária e inculturada (para
se ir ao encontro dos demais e suas realidades); articuladora (superando as dicotomias
fé e vida, Igreja e mundo, clero e leigo);
prática (para
inserir os cristãos na realidade da sociedade); dialogante (na relação sempre mais
madura e respeitosa entre os sujeitos eclesiais); específica (que atenda às
necessidades dos sujeitos eclesiais envolvidos); permanente e atualizada (capaz
de responder aos desafios advindos da realidade global e local, tendo em conta
a DSI); e planeada,
pedagogicamente organizada a partir de projetos (contras as tentações
de amadorismo e ações meramente ocasionais).
***
Com o Evangelho na
mão, o olhar no mundo e o nome de Jesus nos lábios, far-se-á obra!
2019.01.20 –
Louro de Carvalho
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