domingo, 20 de janeiro de 2019

Da ação transformadora da Igreja no mundo


A Igreja está no mundo pela natureza das coisas, corroborada pela vontade de Cristo, que nos quer no mundo, sem sermos do mundo. Portadora do projeto salvífico de Deus em prol de todos os homens, não pode fechá-lo na arca da memória, mas proclamá-lo, propondo-o sem o impor.
E, para isso, não pode ficar parada e inativa, mas tem de ir pelo mundo inteiro e anunciar a boa nova a toda a criatura (cf Mc 16,15) acreditando que a massa ficará toda fermentada (cf Mt, 13,33), apesar de o fermento ser uma fração minúscula. Esta é uma das imagens do Reino de Deus cujo mistério o Senhor pregou como estando já entre nós, pedindo a conversão e a fé no Evangelho.
Ora, a Igreja tem de estar ao serviço do reino, que já começou, mas está longe da consumação. E, tal como Cristo encarnou para se aproximar do homem, também a Igreja tem de se encarnar no mundo, pondo-se em diálogo com ele, inculturada na realidade histórica, inserida na sociedade, encarnada na vida do povo. Não fica, vai; não se exalta, emparceira; não impera, serve; não dirige, acompanha; não cega nem encandeia, ilumina.
Ela é na sua essência, comunidade missionária, comunhão no amor, sempre fiel a Cristo e aos seres humanos. Como missionária, sabe que é enviada anunciar o Salvador e não a anunciar-se a si mesma. Como comunhão de amor, não pode desferir o látego do anátema. Deve, antes falar com ternura, escutar sem condenar e acolher com misericórdia.
Razão tem o Papa Francisco em querer uma Igreja de portas abertas, mais forte no querigma que no legalismo, Igreja da misericórdia em vez da severidade justiceira, Igreja que “não cresce por proselitismo, mas, por atração”, uma Igreja com a atenção solícita de Maria às necessidades dos homens e aponta que “não têm vinho”, uma Igreja confiante como Maria a pedira quem serve: “Fazei tudo o que Ele vos disser” (cf Jo 2,3.5).
Motivados pelas orientações de Francisco que nos convoca para uma “Igreja em saída”, os cristãos – clérigos ou leigos, cada um na sua condição e função – evangelizarão com ardor, dinamismo, ousadia, criatividade, coragem e alegria. Não terão medo de se sujar com as lamas do caminho. Terão, antes, medo de ficar fechados nas estruturas que tiveram de criar em nome da eficiência. Clamando, como os primeiros discípulos, “Vimos os Messias” (Jo 1,41), têm a força de correr mundo a fazer discípulos (cf Mt, 28,19), porque sabem que Deus por nosso amor não se calará nem repousará até que apareça a aurora da justiça e a salvação brilhe como um facho ardente (cf Is 62,1).
Cada cristão pode dizer: “Eu sou uma missão nesta terra e para isso estou neste mundo” (EG, n. 273). Não podemos ficar tranquilos em espera passiva, em nossos templos. É preciso passar da pastoral de mera conservação para a pastoral decididamente missionária (EG, n. 21). A Igreja missionária vive da esperança e é semeadora de esperança, visto que o mundo pode ser diferente. “Esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé” (1Jo 5,4).
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A ação dos cristãos leigos e cristãs leigas no mundo pode ser vista de vários modos: a ação rotineira feita nas funções diárias na casa, no trabalho e no lazer; a ação dos homens e mulheres a trabalhar na construção do mundo nas mais diversas frentes; e a ação em que os leigos se organizam em nome da fé para influenciar positivamente a construção da sociedade. Em todos os casos, a graça de Deus atua como força primeira que possibilita e leva a bom termo as ações humanas. Vale, pois, rezar como o salmista: “Se o Senhor não construir a casa, é inútil o cansaço dos pedreiros” (Sl 127,1).
Na verdade, como ensina o apóstolo Paulo, na unidade construída pelo Espírito Santo, sobressai a diversidade de dons e serviços distribuída pelo mesmo Espírito para bem de todos (carismas):
Há diversos modos de agir, mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos. A cada um é dada a manifestação do Espírito, para proveito comum. A um é dada, pela ação do Espírito, uma palavra de sabedoria; a outro, uma palavra de ciência, segundo o mesmo Espírito; a outro, a fé, no mesmo Espírito; a outro, o dom das curas, no único Espírito; a outro, o poder de fazer milagres; a outro, a profecia; a outro, o discernimento dos espíritos; a outro, a variedade de línguas; a outro, por fim, a interpretação das línguas. Tudo isto, porém, o realiza o único e o mesmo Espírito, distribuindo a cada um, conforme lhe apraz.(1Cor 12,6-11).
É como no corpo humano, que é um só com muitos membros (cf 1Cor 12,12-31) e sem que se discuta a importância e o papel de cada um. E nem a diversidade prejudica a unidade nem a unidade impede a diversidade.
O Papa quer uma Igreja pobre, ao serviço dos pobres e com os pobres, que vá às periferias geográficas e existenciais e lá se torne presente e atuante. Diz o Pontífice:
Há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre a fé e os pobres. Não os deixemos jamais sozinhos.” (EG, n. 48).
E Dom António Francisco dos Santos, quando era Bispo do Porto, deixou pairar nas consciências o pregão: “Os pobres não podem esperar”.
Mercê da ajuda da graça divina e do entusiasmo evangélico e ousadia missionária do cristão leigo, este porá em prática o repto de Francisco: “nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhum povo sem soberania, nenhuma pessoa sem dignidade”. Por isso, ao olhar o rosto de que sofrem qualquer forma de discriminação em relação à vida, deve comover-se e, sobretudo, motivar-se a abraçar cada vez mais a missão de leigo na sua comunidade.
Como pobre e missionária, a Igreja do serviço, da escuta e do diálogo propõe-se trabalhar na construção da “cultura do encontro”. (EG, n. 220). E o encontro tem de gerar compromissos em ordem ao bem comum, com sabedoria e humildade. Aqui, todos contribuem e recebem. O diálogo, a partir de Jesus Cristo estende-se a todos os níveis: a cultura popular, a política, o mundo das artes, as tradições religiosas, a relação intergeracional, etc.
A Igreja do serviço, da escuta e do diálogo vive uma espiritualidade encarnada caraterizada pelo seguimento de Jesus, pela vida no Espírito, pela comunhão fraterna e pela inserção no mundo. É uma Igreja de pessoas e comunidades que têm a oração e a contemplação como dado fundamental na vida. De facto, a experiência do encontro pessoal com Jesus, gerador do encontro com as pessoas, leva-nos a espiritualidade integral, que postula a escuta de Deus e dos seus sinais presentes no mundo e no tempo, a conversão pessoal, o discipulado, a experiência comunitária, a formação bíblico-teológica e o compromisso missionário. Porém, os cristãos que vivem em circunstâncias adversas, impossibilitados duma atuação mais concreta, não podem sentir-se fora da única missão da Igreja, mas devem ter a consciência de que o sofrimento e o isolamento que forem necessários constituem uma realidade aberta à evangelização, no alinhamento com desabafo paulino: “Completo na minha carne, o que falta às atribulações de Cristo em favor do seu Corpo que é a Igreja” (Cl 1,24). Qualquer das modalidades de espiritualidade no seguimento e às ordens de Cristo constitui-se como uma espiritualidade encarnada que tem o seu fundamento na comunidade trinitária e no mandamento do amor. O outro não é só alguém, mas um irmão, um dom. E o cristão em Igreja é a continuação da encarnação do Senhor. E esta espiritualidade encarnada faz-se espiritualidade de comunhão e missão, pela qual a Igreja está voltada ao mesmo tempo para dentro e para fora: para dentro, porque tem de receber a força do Alto (cf Lc 24,49), ter consciência da presença acompanhante do Senhor (cf Mt 28,20); para fora, porque tem de cultivar o respeito mútuo, o diálogo, a proximidade, a partilha, a benevolência, a beneficência, a bênção e a profecia. Afirma-se discípula e apóstola ao envolver-se no esforço e na prática da misericórdia, do amor, do perdão, da reconciliação e da fraternidade, até ao amor aos inimigos. O discípulo missionário torna-se fonte de paz, de relacionamento, de concórdia, de unidade. É misericordioso, filho de Deus e arrebata o reino.
Na conjuntura atual, emergem na Igreja tendências para o subjetivismo, o sentimentalismo, o devocionismo, o demonismo, as “revelações privadas”. A este respeito, diz o Papa:
Há certo cristianismo feito de devoções, próprio de uma vivência individual e sentimental da fé, que na realidade não corresponde a uma autêntica ‘piedade popular’. A missão precisa do ‘pulmão da oração’, da mística, da espiritualidade, da vida interior. […] Não servem as propostas místicas desprovidas de um vigoroso compromisso social e missionário, nem os discursos e ações sociais e pastorais sem uma espiritualidade que transforme o coração.”.
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Porém, deve assumir-se a piedade popular como força evangelizadora, pois refere a Evangelii gaudium que o povo se evangeliza a si mesmo iluminado pelo Espírito Santo – a espiritualidade dos simples, um modo de viver a fé, de se sentir Igreja e de ser missionário. É toda uma maneira nova de trabalhar o tema do anúncio do Evangelho no respeito profundo pelas diversas culturas e, em particular, pelas múltiplas riquezas expressas na piedade popular. A questão da inculturação ganha um conteúdo concreto nesse respeito singular ao “rosto pluriforme” que ganha o cristianismo em sua dinâmica dialogal com as diversas culturas. Escreve o Papa:
Cada porção do povo de Deus, ao traduzir na vida o dom de Deus segundo a sua própria índole, dá testemunho da fé recebida e enriquece-a com novas expressões que falam por si. Pode-se dizer que o povo se evangeliza continuamente a si mesmo.” (EG 122).
E o Papa emérito chama à religiosidade popular “tesouro precioso da Igreja Católica” na qual “aparece a alma do povo”. Para a compreender, é preciso olhá-la com os olhos do Bom Pastor, não julgar, mas amar. Pensemos nas peregrinações aos santuários, no amor e respeito pelos mortos, nas novenas, na via-sacra, nas procissões, no rosário, nos cânticos, nas orações, etc.  
À espiritualidade popular contrapõe-se um certo “mundanismo espiritual” que invade alguns setores eclesiais e que, segundo o Papa Francisco, consiste em “só confiar nas próprias forças e se sentir superior aos outros por cumprir determinadas normas ou por ser irredutivelmente fiel a um certo estilo católico, próprio do passado”. Oculta-se por trás de fascínio da mostra de conquistas sociais e políticas; exprime-se numa densa vida social cheia de viagens, reuniões, jantares, receções…; desdobra-se num funcionalismo empresarial repleto de estatísticas, planificações e avaliações; e enclaustra-se em grupos de elite. Nesse sentido, multiplicaram-se as irmandades, as confrarias e as associações.
Ora, é preciso articular a lectio biblica com a escuta dos sinais dos tempos e passar do elitismo corporativista aos espaços de espiritualidade, reflexão e ação; das estruturas burocratizadas às estruturas fautoras da liberdade dos filhos de Deus e construtores e acolhedores da fraternidade; do assistencialismo às pastorais sociais com a atuação profético-transformadora; dos espaços eclesiais acessíveis a muito poucos aos espaços de participação de cristãos leigos em comunhão com os pastores. Com efeito, pelo batismo todos nós somos chamados a ser missionários do Reino de Deus, não podendo dizer que não podemos, não conseguimos, não estamos preparados... Antes, devemos ter a coragem de “ir contra a corrente”, ter a coragem de sermos felizes onde quer que estejamos, dizendo ‘sim’ ao projeto de Deus. Para tanto, é preciso estar com atenção aos carismas e seguir os impulsos do Espírito, bem como cuidar da formação e ter a humildade de integrar espaços de solidariedade inspirados no dinamismo evangélico.
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A partir de carismas no seio do Povo de Deus nasceram, como frutos do Vaticano II, novos movimentos, comunidades, associações de leigos, serviços pastorais – dons do Espírito à Igreja e ao mundo. Assim, a Igreja conta com uma variada gama de associações de fiéis que agregam leigos, leigos e clérigos, e leigos e leigas consagrados, cada qual com o seu carisma e com os seus modos próprios de organização e métodos de ação. E, em muitas das novas comunidades, configura-se um espaço misto de vida laical, religiosa e clerical. Mas é necessária a formação!
Na Igreja, cada um é chamado a ser um sujeito eclesial ativo que, segundo a sua capacidade e de acordo com os seus carismas e a sua função, se coloca a serviço dos irmãos.
A comunidade eclesial é responsável pela formação. Os que ocupam funções de direção ou exercem especial responsabilidade no Povo de Deus (bispos, presbíteros, diáconos, consagrados e lideranças leigas) são os primeiros responsáveis pelo processo formativo. E cada organização deve assumir a formação de seus membros como exigência de nossa condição humana e tarefa primordial, o que exige empenho de todos.
A formação – que possui uma vertente sistemática e formal como atividade planeada e executada pela e na comunidade eclesial – requer atualização permanente segundo as diretrizes da Igreja, a pesquisa teológica e a pesquisa científica, relacionando a teoria e a prática.
O processo formativo (cuja base é a formação bíblica, catequética, litúrgica, moral e espiritual) constitui um caminho relativamente longo com itinerários diversificados, respeitando os ritmos individuais e comunitários e com as caraterísticas da gradualidade. O acompanhamento do discípulo segue na perspetiva do diálogo e da transformação social e atende às questões específicas de cada um e da comunidade. A espiritualidade deve transformar a vida de cada discípulo em resposta aos impulsos do Espírito. Todos os sujeitos eclesiais são chamados a ser ramos da videira, a crescer, amadurecer continuamente, a dar cada vez mais fruto. Cada seguidor de Jesus está inserido num processo de identificação contínua com o Mestre. E a formação contribuirá para que os cristãos vivam o seguimento de Jesus Cristo e deem uma resposta do que significa ser cristão hoje.
Todos convivemos com limitações, o que exige de todo Povo de Deus (e de cada um), a busca permanente da compreensão e da vivência dos conteúdos e exigências da fé. Estas exigências espelham-se em grande parte na DSI (Doutrina Social da Igreja), que é um precioso tesouro que oferece critérios e valores, respostas e rumos para colmatar as necessidades, as perguntas e os questionamentos da ordem social, em vista do bem comum.
A formação do laicado, fundamentada na Palavra de Deus e no Magistério da Igreja, deve ser: mistagógica (relacionada com a catequese, a liturgia e a vida integral, responde aos quesitos da fé, razão, emoção e espiritualidade); missionária e inculturada (para se ir ao encontro dos demais e suas realidades); articuladora (superando as dicotomias fé e vida, Igreja e mundo, clero e leigo); prática (para inserir os cristãos na realidade da sociedade); dialogante (na relação sempre mais madura e respeitosa entre os sujeitos eclesiais); específica (que atenda às necessidades dos sujeitos eclesiais envolvidos); permanente e atualizada (capaz de responder aos desafios advindos da realidade global e local, tendo em conta a DSI); e planeada, pedagogicamente organizada a partir de projetos (contras as tentações de amadorismo e ações meramente ocasionais).
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Com o Evangelho na mão, o olhar no mundo e o nome de Jesus nos lábios, far-se-á obra!
2019.01.20 – Louro de Carvalho

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