terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Francisco está preocupado com a Venezuela, mas não toma partido


Como referiu na conversa com os jornalistas no voo de regresso do Panamá a Roma, o Papa está muito preocupado com o que se passa na Venezuela, mas não toma partido. Na verdade, mesmo estando ao lado de quem sofre, seria pastoralmente imprudente tomar posição. E, solidário com o povo que sofre, justifica-se:
É um povo que está a sofrer, de um lado e do outro, todo o povo sofre. Se eu dissesse ‘ouçam estes países, ouçam antes aqueles outros’, metia-me em assuntos que não conheço, seria uma imprudência pastoral da minha parte e causaria dano.”.
E concluiu:
Sofro com o que se está a passar na Venezuela, neste momento. E, por isso, desejo que se ponham de acordo e encontrem uma solução justa e pacífica. O que me assusta é o derramamento de sangue. Eu tenho de ser pastor de todos. E, se necessitam de ajuda, que a peçam de comum acordo.”.
Já durante a Jornada Mundial da Juventude, no Panamá, o Papa, preocupado com aquele povo, pediu uma solução “justa e pacífica” para ultrapassar a crise política, que respeite os direitos humanos, e desejou o bem de todos os habitantes do país.
Francisco formulou o seu pedido depois da Missa de encerramento da JMJ de 2019, no Panamá, já quando visitava o lar do Bom Samaritano – ocasião que aproveitou para assinalar o Dia Internacional da Memória das Vítimas do Holocausto e lembrar a tragédia provocada pela derrocada da barragem no Brasil, o ataque à Igreja católica nas Filipinas e as mortes dos cadetes dos polícias colombianos. E disse:
Tenho pensado muito no povo venezuelano, ao qual me sinto particularmente unido nestes dias; e, perante a situação grave que o país atravessa, peço ao Senhor que se procure uma solução justa e pacífica para ultrapassar a crise, que se respeite os direitos humanos e desejo o bem de todos os habitantes do país”.
Por fim, apelou aos crentes a que rezem pela “ajuda de Nossa Senhora de Coromoto, patrona da Venezuela”.
Até então, o Vaticano apenas tinha divulgado um comunicado breve sobre a Venezuela, no qual indicava que o Papa acompanhava “de perto” a situação e rezava pelas vítimas e por todos os venezuelanos, assinalando que a Santa Sé apoia “todos os esforços que permitam evitar mais sofrimentos à população”.
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A Venezuela enfrenta uma crise política que levou vários países europeus, incluindo Portugal, a lançar um ultimato ao Presidente Maduro para convocar eleições no prazo de uma semana. Caso Maduro não o faça, Portugal, Espanha, Alemanha, França e Reino Unido reconhecerão Juán Guaidó, presidente do parlamento venezuelano, como chefe de Estado interino, com poder para conduzir o processo eleitoral. Mas o Presidente venezuelano já rejeitou o ultimato declarando que o seu país não está “ligado” à Europa.
A crise política arrasta consigo, há vários anos, a vertentes social e a económica e vem-se agravando até que chegou a este ponto: Nicolás Maduro foi recentemente eleito para um novo mandato de seis anos, com a oposição a rejeitar a legitimidade do escrutínio e a promover manifestações para exigir eleições verdadeiramente livres, tendo-se colocado os bispos venezuelanos ao lado da oposição a Maduro.
E, após eleições em que estiveram ausentes as principais forças da oposição, Maduro foi investido, a 10 de janeiro, para um segundo mandato como chefe de Estado e de Governo, cuja legitimidade não foi reconhecida por grande parte da comunidade internacional. Porém, a 23 de janeiro, Juan Guaidó, Presidente do Parlamento, autoproclamou-se Presidente da Venezuela perante uma multidão de opositores de Nicolas Maduro, prometendo um “governo de transição” e “eleições livres”, pois não aceita ir a votos neste ordenamento jurídico eleitoral.
Entretanto, apoiantes do presidente do Parlamento venezuelano, autoproclamado chefe de Estado interino, distribuíram uma lei, assinada por Juan Guaidó, de amnistia aos soldados, tentando convencê-los a mudar de campo, enquanto o Presidente Maduro assistiu pessoalmente a exercícios militares.
A repressão dos protestos antigovernamentais da última semana na Venezuela já provocou 35 mortos e 850 detidos, de acordo com o mais recente balanço divulgado por diversas ONG.
A esta crise política soma-se a uma grave crise económica e social que levou 2,3 milhões de pessoas a fugirem do país desde 2015, segundo dados da ONU.
E, pelo facto de Trump haver reconhecido Guaidó como Presidente interino e pelas declarações concomitantes e/ou subsequentes a esse reconhecimento, Maduro responsabilizou, no dia 28, o seu homólogo norte-americano por “qualquer violência” que venha a ocorrer no país, devido à tentativa de mudança de regime promovida por Washington. Disse, a este respeito, durante um encontro, no palácio presidencial de Miraflores, com diplomatas que regressaram, por sua ordem, de diferentes sedes consulares e da embaixada venezuelana nos EUA:
Será você, senhor Presidente Donald Trump, responsável por esta política de mudança de regime na Venezuela e o sangue que se possa derramar na Venezuela será sangue que estará nas suas mãos, Presidente Donald Trump”.
Ao mesmo tempo, Maduro denunciou a grande manipulação mundial veiculada pelos meios televisivos dos Estados Unidos e da Europa para “apresentar uma Venezuela virtual”, não mostrando a realidade, ou seja, as manifestações de revolucionários que o apoiam.
Por outro lado, anunciou estar pronto para iniciar um diálogo com a oposição para garantir a paz e a estabilidade do país, declarando:
Estou pronto, uma vez mais, para onde for, iniciar uma ronda de conversações, diálogo, negociações, com toda a oposição venezuelana, com um só objetivo: a paz, o entendimento e o reconhecimento mútuo”.
No âmbito do predito encontro, o Presidente Maduro pediu aos venezuelanos que persistam no rumo do trabalho, da educação, do positivo e da expansão do modelo socialista, para a construção de uma estabilidade política, sólida, verdadeira e positiva. E, nesse sentido, anunciou o lançamento do programa estatal “Misión Venezuela Bella” (Missão Venezuela Linda) para o embelezamento de 62 cidades do país.
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Por seu turno, o autoproclamado Presidente interino anunciou, no dia 28, assumir o controlo dos ativos do país no exterior, de modo a evitar que Maduro “continue a roubar” o dinheiro dos venezuelanos. Assim, um comunicado divulgado por Guaidó na rede social Twitter assegura:
A partir deste momento iniciamos a tomada do controlo progressivo e ordenado dos ativos da nossa República no exterior, para impedir que, no seu percurso de saída e não conformado com o que já roubou à Venezuela, o usurpador e o seu grupo continuem a roubar o dinheiro dos venezuelanos, financiando delitos a nível internacional e usando o dinheiro para torturar o povo, privando-o de alimentos e medicamentos e assassinando quem protesta pelos seus direitos”.
Acrescenta que denunciou “junto da comunidade internacional a corrupção na PDVSA” (empresa estatal Petróleos da Venezuela), frisando que foi convertida numa “rede de financiamento de crimes”.
E diz que vai iniciar um processo para nomear uma nova administração para a PDVSA e para a sua filial CITGO, que opera nos Estados Unidos.
A esta medida de Guaidó e para aumentar a pressão sobre Nicolás Maduro, a administração do Presidente dos EUA, Donald Trump, anunciou que vai impor sanções à companhia petrolífera. E, no alinhamento com Trump, o conselheiro de segurança nacional John Bolton e o Secretário do Tesouro Steven Mnuchin anunciaram as medidas contra a companhia, que impede os norte-americanos de fazerem negócios com a empresa estatal e congela todos os seus bens nos Estados Unidos.
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Na sequência do apelo de Maduro às autoridades judiciais a que façam justiça punindo os perturbadores da ordem pública e da ordem constitucional e transgressores da lei, o procurador-geral da Venezuela, Tarek William Saab, pediu hoje, dia 29, ao Supremo Tribunal de Justiça que congele as contas bancárias de Guaidó, que aliene os seus bens e que impeça o autoproclamado Presidente interino de abandonar o país. Consta do requerimento do procurador-geral:
Requerimos al TSJ la imposición de las siguientes medidas cautelares innominadas de prohibición de salida del país; de enajenar y gravar bienes muebles e inmuebles y el bloqueo de sus cuentas bancarias”.
Estas medidas cautelares propostas por Saab não incluem o pedido de detenção, mas marcam o início dum inquérito preliminar à decisão do presidente da Assembleia Nacional de assumir, a 23 de janeiro, a presidência interina do país, com o apoio dos EUA e de outros países.
Em conferência de imprensa, o procurador-geral aduziu que, na sequência da decisão de Juán Guaidó, “ocorreram atos violentos, pronunciamentos de governos estrangeiros e o congelamento de ativos da República, o que implicará crimes graves que atentam contra a ordem constitucional”.
Guaidó não perdeu tempo a responder que tem imunidade parlamentar, que só pode ser anulada por um tribunal superior do país. No Twitter, o Presidente interino deixou uma mensagem aos juízes do Supremo face ao pedido da procuradoria-geral:
A quem está hoje na sede do Supremo Tribunal de Justiça: o regime está na sua etapa final. Isto é imparável e vocês não precisam de se sacrificar com o usurpador e o seu gangue! Pensem em vocês, na vossa carreira, no futuro dos vossos filhos e netos que também são os nossos. A história vai reconhecê-los.”.
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Ao nível do comentário, ressalta hoje o de Francisco Assis e João Taborda da Gama hoje sobre “Índice de Perceção da Corrupção e a crise na Venezuela”.
João Taborda da Gama considera estarem “criadas as condições internacionais” para que o Presidente da Venezuela saia de cena “e traga aos venezuelanos algum alívio do massacre que têm vivido”. E, sustentando que “não é tarde nem cedo” e que “é preciso mudar”, considera que “a Venezuela atravessa um flagelo humanitário provocado diretamente pelas políticas de Maduro e pela ilusão ideológica e económica em que vive”.
A mesma opinião tem o eurodeputado Francisco Assis ao explicitar que “este regime já é criminoso, porque destruiu completamente a democracia na Venezuela, pôs em causa direitos e liberdades fundamentais, conduziu o país a uma crise impressionante”, em que os “sistemas de saúde e educativo não funcionam”, destruiu “completamente a economia” e pôs “em causa a dignidade do povo venezuelano”.
Por isso e por causa da pressão da comunidade internacional (da União Europeia e dos EUA), o mais provável é que o ainda Presidente da Venezuela deixe o cargo.
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Os dados constantes do site da Rádio Renascença, fornecidos hoje por André Rodrigues, levam a traçar um quadro dramático da situação na Venezuela:
Assim, é referido que, em 2017, três em cada cinco venezuelanos perderam em média 11 quilos por inacessibilidade a alimentos. Com efeito, a Venezuela que, em meados do século passado, era o 4.º país mais rico do mundo, mercê da exploração do petróleo tem hoje um salário mínimo de 18 euros e uma inflação estimada de 10 milhões por cento. Por outro lado, terão sido detidas na Venezuela, nos últimos dias, pelo menos 800 pessoas.
Se esta é uma contabilidade normal, atendendo à dimensão das demonstrações de rua, há uma outra contabilidade que é chocante e que não é de agora.
Nestes termos, os números respeitantes a 2017 mostram que 64% da população venezuelana terá perdido, em média, pelo menos 11 quilos por falta de comida – um dado que, de acordo com a agência EFE, ainda não reflete o efeito da hiperinflação, que começou em outubro de 2018.
A amostra desta pesquisa sobre as condições de vida na Venezuela envolveu mais de seis mil famílias, tendo 61% dos inquiridos declarado ter ido para a cama com fome.
E 78% disseram não ter dinheiro para adquirir o cabaz mínimo essencial porque, das duas, uma: ou os alimentos desapareceram das prateleiras dos supermercados ou estão tão caros que ninguém lhes consegue chegar. Daí que 63% dos inquiridos passaram a reduzir os alimentos disponíveis em casa, diminuíram porções nos pratos e, no limite, suprimiram refeições. Um quinto dos venezuelanos não toma o pequeno-almoço. Todos os dias, os pais com mais que um filho se deparam com uma decisão dramática, um dilema – “Qual das crianças come a cada dia?” – porque simplesmente a comida não chega para duas ou mais crianças.
Tudo isto sucede num país onde o salário mínimo é de 18 mil bolívares soberanos, ou 18 euros e 18 cêntimos, que nada valem quando a inflação é de 10 milhões por cento. Dará para comprar duas bananas e pouco mais.
São, como se disse, são números de 2017, mas, atendendo ao quadro de crise humanitária que a Venezuela enfrenta e ao peso da inflação, acentuado nos últimos tempos, serão ainda muito atuais ou, eventualmente, ter-se-ão agravado.
A razão de ser desta situação, além da luta política em que a oposição se encontra muito condicionada, está na excessiva dependência do petróleo. De acordo com a petrolífera britânica BP, a Venezuela detém 18% das reservas comprovadas de petróleo no mundo, à frente da Arábia Saudita ou do Irão. Porém, desde 2016, mais de metade das 70 jazidas de exploração foram encerradas devido aos elevados custos de extração.
Num cenário destes, não é de estranhar que, desde 2015, pelo menos três milhões de pessoas tenham fugido da Venezuela, o país que, repete-se, na década de 50 do século passado era o quarto mais rico do mundo, com um PIB per capita a rondar os 7,5 milhões de dólares.
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Face a tal panorama, dificilmente não seria implausível ver o Papa a posicionar-se dum lado ou do outro. Fizeram-no os Bispos venezuelanos que ousaram arriscar. Do lado do Vaticano seria difícil tomar posição, porquanto, se o povo sofre e a oposição assume as suas dores, também é certo que o poder executivo, que tem a seu lado o poder judiciário e o poder militar, poderia retaliar sobre toda a população, em especial a católica e as suas instituições. Porém, nada impede, antes pelo contrário, que as vozes críticas dos cidadãos, sobretudo dos cristãos, exijam que os que detêm papel de liderança “tenham conduta conforme à dignidade e autoridade de que estão revestidos e que lhes foi confiada” e “a ousadia de construir uma vida política verdadeiramente humana” (cf Discurso de Francisco no “Encontro com as Autoridades, o Corpo Diplomático, e Representantes da sociedade”, no Panamá). 
2019.01.29 – Louro de Carvalho  

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