Como referiu
na conversa com os jornalistas no voo de regresso do Panamá a Roma, o Papa está
muito preocupado com o que se passa na Venezuela, mas não toma partido. Na
verdade, mesmo estando ao lado de quem sofre, seria pastoralmente imprudente
tomar posição. E, solidário com o povo que sofre, justifica-se:
“É um povo que está a sofrer, de um lado e do outro, todo o povo sofre.
Se eu dissesse ‘ouçam estes países, ouçam antes aqueles outros’, metia-me em
assuntos que não conheço, seria uma imprudência pastoral da minha parte e
causaria dano.”.
E concluiu:
“Sofro com o que se está a passar na Venezuela, neste momento. E, por
isso, desejo que se ponham de acordo e encontrem uma solução justa e pacífica.
O que me assusta é o derramamento de sangue. Eu tenho de ser pastor de todos. E,
se necessitam de ajuda, que a peçam de comum acordo.”.
Já durante a
Jornada Mundial da Juventude, no Panamá, o Papa, preocupado com aquele povo,
pediu uma solução “justa e pacífica” para ultrapassar a crise política, que
respeite os direitos humanos, e desejou o bem de todos os habitantes do país.
Francisco
formulou o seu pedido depois da Missa de encerramento da JMJ de 2019,
no Panamá, já quando visitava o lar do Bom Samaritano – ocasião que
aproveitou para assinalar o Dia
Internacional da Memória das Vítimas do Holocausto e lembrar a tragédia provocada
pela derrocada da barragem no Brasil, o ataque à Igreja católica nas Filipinas
e as mortes dos cadetes dos polícias colombianos. E disse:
“Tenho pensado muito no povo venezuelano, ao qual me sinto
particularmente unido nestes dias; e, perante a situação grave que o país
atravessa, peço ao Senhor que se procure uma solução justa e pacífica para
ultrapassar a crise, que se respeite os direitos humanos e desejo o bem de
todos os habitantes do país”.
Por fim, apelou
aos crentes a que rezem pela “ajuda de Nossa Senhora de Coromoto, patrona da
Venezuela”.
Até então, o
Vaticano apenas tinha divulgado um comunicado breve sobre a Venezuela, no qual
indicava que o Papa acompanhava “de perto” a situação e rezava pelas vítimas e
por todos os venezuelanos, assinalando que a Santa Sé apoia “todos os esforços que permitam evitar mais
sofrimentos à população”.
***
A Venezuela
enfrenta uma crise política que levou vários países europeus, incluindo Portugal,
a lançar um ultimato ao Presidente Maduro para convocar eleições no prazo de
uma semana. Caso Maduro não o faça, Portugal, Espanha, Alemanha, França e Reino
Unido reconhecerão Juán Guaidó, presidente do parlamento venezuelano, como
chefe de Estado interino, com poder para conduzir o processo eleitoral. Mas o
Presidente venezuelano já rejeitou o ultimato declarando que o seu
país não está “ligado” à Europa.
A crise
política arrasta consigo, há vários anos, a vertentes social e a económica e
vem-se agravando até que chegou a este ponto: Nicolás Maduro foi recentemente eleito
para um novo mandato de seis anos, com a oposição a rejeitar a legitimidade do
escrutínio e a promover manifestações para exigir eleições verdadeiramente
livres, tendo-se colocado os bispos venezuelanos ao lado da oposição a Maduro.
E, após
eleições em que estiveram ausentes as principais forças da oposição, Maduro foi
investido, a 10 de janeiro, para um segundo mandato como chefe de Estado e de
Governo, cuja legitimidade não foi reconhecida por grande parte da comunidade
internacional. Porém, a 23 de janeiro, Juan Guaidó, Presidente do Parlamento,
autoproclamou-se Presidente da Venezuela perante uma multidão de opositores de
Nicolas Maduro, prometendo um “governo de transição” e “eleições livres”, pois
não aceita ir a votos neste ordenamento jurídico eleitoral.
Entretanto,
apoiantes do presidente do Parlamento venezuelano, autoproclamado chefe de
Estado interino, distribuíram uma lei, assinada por Juan Guaidó, de amnistia
aos soldados, tentando convencê-los a mudar de campo, enquanto o Presidente
Maduro assistiu pessoalmente a exercícios militares.
A repressão
dos protestos antigovernamentais da última semana na Venezuela já provocou 35
mortos e 850 detidos, de acordo com o mais recente balanço divulgado por
diversas ONG.
A esta crise
política soma-se a uma grave crise económica e social que levou 2,3 milhões de
pessoas a fugirem do país desde 2015, segundo dados da ONU.
E, pelo facto de Trump haver reconhecido Guaidó
como Presidente interino e pelas declarações concomitantes e/ou subsequentes a
esse reconhecimento, Maduro responsabilizou,
no dia 28, o seu homólogo norte-americano por “qualquer violência” que venha a
ocorrer no país, devido à tentativa de mudança de regime promovida por
Washington. Disse, a este respeito, durante um encontro, no palácio
presidencial de Miraflores, com diplomatas que regressaram, por sua ordem, de
diferentes sedes consulares e da embaixada venezuelana nos EUA:
“Será você, senhor Presidente Donald Trump, responsável por esta
política de mudança de regime na Venezuela e o sangue que se possa
derramar na Venezuela será sangue que estará nas suas mãos, Presidente Donald
Trump”.
Ao mesmo tempo, Maduro denunciou a grande manipulação mundial
veiculada pelos meios televisivos dos Estados Unidos e da Europa para “apresentar
uma Venezuela virtual”, não mostrando a realidade, ou seja, as manifestações de
revolucionários que o apoiam.
Por outro lado,
anunciou estar pronto para iniciar um diálogo com a oposição para garantir
a paz e a estabilidade do país, declarando:
“Estou pronto, uma vez mais, para onde for, iniciar uma ronda de
conversações, diálogo, negociações, com toda a oposição venezuelana, com um só
objetivo: a paz, o entendimento e o reconhecimento mútuo”.
No âmbito do
predito encontro, o Presidente Maduro pediu aos venezuelanos que persistam no
rumo do trabalho, da educação, do positivo e da expansão do modelo socialista,
para a construção de uma estabilidade política, sólida, verdadeira e positiva. E,
nesse sentido, anunciou o lançamento do programa estatal “Misión Venezuela Bella” (Missão
Venezuela Linda) para o
embelezamento de 62 cidades do país.
***
Por seu
turno, o autoproclamado Presidente interino anunciou, no dia 28, assumir o
controlo dos ativos do país no exterior, de modo a evitar que Maduro “continue
a roubar” o dinheiro dos venezuelanos. Assim, um comunicado divulgado por
Guaidó na rede social Twitter assegura:
“A partir deste momento iniciamos a tomada do controlo progressivo e
ordenado dos ativos da nossa República no exterior, para impedir que, no seu
percurso de saída e não conformado com o que já roubou à Venezuela, o usurpador
e o seu grupo continuem a roubar o dinheiro dos venezuelanos, financiando
delitos a nível internacional e usando o dinheiro para torturar o povo,
privando-o de alimentos e medicamentos e assassinando quem protesta pelos seus
direitos”.
Acrescenta
que denunciou “junto da comunidade internacional a corrupção na PDVSA” (empresa
estatal Petróleos da Venezuela), frisando
que foi convertida numa “rede de financiamento de crimes”.
E diz que
vai iniciar um processo para nomear uma nova administração para a PDVSA e para
a sua filial CITGO, que opera nos Estados Unidos.
A esta medida de Guaidó e para aumentar a pressão sobre Nicolás Maduro, a administração do Presidente dos EUA,
Donald Trump, anunciou que vai impor sanções à companhia petrolífera. E, no alinhamento
com Trump, o conselheiro de segurança nacional John Bolton e o Secretário do
Tesouro Steven Mnuchin anunciaram as medidas contra a companhia, que impede os
norte-americanos de fazerem negócios com a empresa estatal e congela todos os
seus bens nos Estados Unidos.
***
Na sequência do apelo de Maduro às autoridades
judiciais a que façam justiça punindo os perturbadores da ordem pública e da
ordem constitucional e transgressores da lei, o procurador-geral da Venezuela, Tarek William Saab, pediu hoje, dia 29, ao
Supremo Tribunal de Justiça que congele as contas bancárias de Guaidó, que
aliene os seus bens e que impeça o autoproclamado Presidente interino de
abandonar o país. Consta do requerimento do procurador-geral:
“Requerimos al TSJ la imposición de las
siguientes medidas cautelares innominadas de prohibición de salida del país; de
enajenar y gravar bienes muebles e inmuebles y el bloqueo de sus cuentas
bancarias”.
Estas medidas
cautelares propostas por Saab não incluem o pedido de detenção, mas marcam o
início dum inquérito preliminar à decisão do presidente da Assembleia Nacional de
assumir, a 23 de janeiro, a presidência interina do país, com o apoio dos EUA e
de outros países.
Em
conferência de imprensa, o procurador-geral aduziu que, na sequência da decisão
de Juán Guaidó, “ocorreram atos
violentos, pronunciamentos de governos estrangeiros e o congelamento de ativos
da República, o que implicará crimes graves que atentam contra a ordem constitucional”.
Guaidó não
perdeu tempo a responder que tem imunidade parlamentar, que só pode ser anulada
por um tribunal superior do país. No Twitter, o Presidente interino deixou uma
mensagem aos juízes do Supremo face ao pedido da procuradoria-geral:
“A quem está hoje na sede do Supremo Tribunal de Justiça: o regime está
na sua etapa final. Isto é imparável e vocês não precisam de se sacrificar com
o usurpador e o seu gangue! Pensem em vocês, na vossa carreira, no futuro dos
vossos filhos e netos que também são os nossos. A história vai reconhecê-los.”.
***
Ao nível do
comentário, ressalta hoje o de Francisco Assis e João Taborda da Gama hoje sobre
“Índice de Perceção da Corrupção e a
crise na Venezuela”.
João Taborda
da Gama considera estarem “criadas as condições internacionais” para que o
Presidente da Venezuela saia de cena “e traga aos venezuelanos algum alívio do
massacre que têm vivido”. E, sustentando que “não é tarde nem cedo” e que “é preciso mudar”, considera que “a Venezuela atravessa um flagelo humanitário
provocado diretamente pelas políticas de Maduro e pela ilusão ideológica e
económica em que vive”.
A mesma
opinião tem o eurodeputado Francisco Assis ao explicitar que “este regime já é criminoso, porque destruiu
completamente a democracia na Venezuela, pôs em causa direitos e liberdades
fundamentais, conduziu o país a uma crise impressionante”, em que os “sistemas de saúde e educativo não funcionam”,
destruiu “completamente a economia” e
pôs “em causa a dignidade do povo
venezuelano”.
Por isso e
por causa da pressão da comunidade internacional (da União
Europeia e dos EUA), o mais
provável é que o ainda Presidente da Venezuela deixe o cargo.
***
Os dados
constantes do site da Rádio
Renascença, fornecidos hoje por André Rodrigues, levam a traçar um quadro
dramático da situação na Venezuela:
Assim, é
referido que, em 2017, três em cada cinco venezuelanos perderam em média 11
quilos por inacessibilidade a alimentos. Com efeito, a Venezuela que, em meados
do século passado, era o 4.º país mais rico do mundo, mercê da exploração do
petróleo tem hoje um salário mínimo de 18 euros e uma inflação estimada de 10
milhões por cento. Por outro lado, terão sido detidas na Venezuela, nos últimos
dias, pelo menos 800 pessoas.
Se esta é
uma contabilidade normal, atendendo à dimensão das demonstrações de rua, há uma
outra contabilidade que é chocante e que não é de agora.
Nestes
termos, os números respeitantes a 2017 mostram que 64% da população venezuelana
terá perdido, em média, pelo menos 11 quilos por falta de comida – um dado que,
de acordo com a agência EFE, ainda não reflete o efeito da hiperinflação, que
começou em outubro de 2018.
A amostra
desta pesquisa sobre as condições de vida na Venezuela envolveu mais de seis
mil famílias, tendo 61% dos inquiridos declarado ter ido para a cama com fome.
E 78%
disseram não ter dinheiro para adquirir o cabaz mínimo essencial porque, das
duas, uma: ou os alimentos desapareceram das prateleiras dos supermercados ou
estão tão caros que ninguém lhes consegue chegar. Daí que 63% dos inquiridos
passaram a reduzir os alimentos disponíveis em casa, diminuíram porções nos
pratos e, no limite, suprimiram refeições. Um quinto dos venezuelanos não toma
o pequeno-almoço. Todos os dias, os pais com mais que um filho se deparam com
uma decisão dramática, um dilema – “Qual
das crianças come a cada dia?” – porque simplesmente a comida não chega
para duas ou mais crianças.
Tudo isto
sucede num país onde o salário mínimo é de 18 mil bolívares soberanos, ou 18
euros e 18 cêntimos, que nada valem quando a inflação é de 10 milhões por
cento. Dará para comprar duas bananas e pouco mais.
São, como se
disse, são números de 2017, mas, atendendo ao quadro de crise humanitária que a
Venezuela enfrenta e ao peso da inflação, acentuado nos últimos tempos, serão
ainda muito atuais ou, eventualmente, ter-se-ão agravado.
A razão de
ser desta situação, além da luta política em que a oposição se encontra muito
condicionada, está na excessiva dependência do petróleo. De acordo com a
petrolífera britânica BP, a Venezuela detém 18% das reservas comprovadas de
petróleo no mundo, à frente da Arábia Saudita ou do Irão. Porém, desde 2016,
mais de metade das 70 jazidas de exploração foram encerradas devido aos
elevados custos de extração.
Num cenário
destes, não é de estranhar que, desde 2015, pelo menos três milhões de pessoas tenham
fugido da Venezuela, o país que, repete-se, na década de 50 do século passado
era o quarto mais rico do mundo, com um PIB per
capita a rondar os 7,5 milhões de dólares.
***
Face a tal
panorama, dificilmente não seria implausível ver o Papa a posicionar-se dum
lado ou do outro. Fizeram-no os Bispos venezuelanos que ousaram arriscar. Do
lado do Vaticano seria difícil tomar posição, porquanto, se o povo sofre e a
oposição assume as suas dores, também é certo que o poder executivo, que tem a
seu lado o poder judiciário e o poder militar, poderia retaliar sobre toda a
população, em especial a católica e as suas instituições. Porém, nada impede,
antes pelo contrário, que as vozes críticas dos cidadãos, sobretudo dos
cristãos, exijam que os que detêm papel de liderança “tenham conduta conforme à
dignidade e autoridade de que estão revestidos e que lhes foi confiada” e “a ousadia de construir uma vida política verdadeiramente
humana” (cf Discurso de Francisco no “Encontro com as Autoridades, o Corpo
Diplomático, e Representantes da sociedade”, no Panamá).
2019.01.29 – Louro de Carvalho
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