A Resolução
do Conselho de Ministros n.º 21/2019, de 29 de Janeiro, hoje (mas
data da publicação na I Série do Diário da República, n.º 20, visto que vem
datada do dia 17 de janeiro),
vem determinar, em termos genéricos, a adoção da
“expressão universalista ‘Direitos Humanos’ por parte do Governo e de todos os
serviços, organismos e entidades sujeitos aos seus poderes de direção,
superintendência ou tutela”.
Em
termos específicos e de acordo com o clausulado, determina: a adoção imediata dessa
expressão universalista em todos os “atos, decisões, normas, orientações,
documentos, edições, publicações, bens culturais ou quaisquer textos e
comunicações, sejam internos ou externos, independentemente do suporte, bem
como todos aqueles que venham a ser objeto de revisão, reedição, reimpressão ou
qualquer outra forma de modificação”; a abrangência, nessa adoção, de “todos os
documentos oficiais emanados pela Administração para os efeitos da alínea a) do
n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 26/2016, de 22 de agosto, bem como todos os
documentos autênticos, para os efeitos do artigo 370.º do Código Civil”; a
adoção dessa expressão universalista na aprovação de diplomas normativos da
competência do Governo; e o desenvolvimento, por cada área governativa, de “iniciativas
de divulgação da presente resolução, com vista à substituição imediata da
expressão ‘Direitos do Homem’ pela expressão ‘Direitos Humanos’.
São de
reproduzir os diplomas invocados no clausulado da resolução. Assim, o n.º 1, alínea
a) do artigo 3.º da Lei n.º 26/2016, de 22 de agosto – que aprova o regime de acesso à informação administrativa
e ambiental e de reutilização dos documentos administrativos, transpondo a
Diretiva 2003/4/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de janeiro, e a
Diretiva 2003/98/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de novembro –
considera:
“Documento
administrativo qualquer
conteúdo, ou parte desse conteúdo, que esteja na posse ou seja detido em nome
dos órgãos e entidades referidas no [artigo 4.º], seja o suporte de informação
sob forma escrita, visual, sonora, eletrónica ou outra forma material, neles se
incluindo, designadamente, aqueles relativos a; i) procedimentos de
emissão de atos e regulamentos administrativos; ii) procedimentos de
contratação pública, incluindo os contratos celebrados; iii) gestão
orçamental e financeira dos órgãos e entidades; iv) gestão de recursos
humanos, nomeadamente os dos procedimentos de recrutamento, avaliação,
exercício do poder disciplinar e quaisquer modificações das respetivas relações
jurídicas”.
E o
artigo 370.º do Código Civil, que trata da autenticidade dos documentos, estabelece:
“1. Presume-se que o documento provém da autoridade ou oficial público a
quem é atribuído, quando estiver subscrito pelo autor com assinatura
reconhecida por notário ou com o selo do respectivo serviço.
“2. A presunção de autenticidade pode ser ilidida mediante prova em
contrário, e pode ser excluída oficiosamente pelo tribunal quando seja
manifesta pelos sinais exteriores do documento a sua falta de autenticidade; em
caso de dúvida, pode ser ouvida a autoridade ou oficial público a quem o documento
é atribuído.
“3. Quando o documento for anterior ao século XVIII, a sua autenticidade
será estabelecida por meio de exame feito na Torre do Tombo, desde que seja
contestada ou posta em dúvida por alguma das partes ou pela entidade a quem o
documento for apresentado.”.
A presente Resolução do Conselho
de Ministros vem, quase seis anos depois, dar seguimento à recomendação
formulada pela Resolução da Assembleia da República n.º 39/2013, de 3 de abril,
que “recomenda a adoção por entidades públicas e
privadas da expressão universalista para referenciar os direitos humanos,
substituindo a expressão «Direitos do Homem» pela expressão «Direitos Humanos»”
ou, mais sinteticamente, formula a “recomendação relativa à adoção por entidades públicas e privadas da expressão
universalista para referenciar os direitos humanos”.
Assim, a 8 de março de 2013 (Dia
Internacional da Mulher), a
Assembleia da República resolve:
“Recomendar ao Governo e apelar, dirigindo-se a
entidades públicas e privadas, a que doravante, sem prejuízo da utilização da
expressão redutora para reportar a documentos do paradigma da exclusão”, que seja
utilizada a expressão «Direitos Humanos» em vez da expressão «Direitos do
Homem»: “na produção de documentos oficiais, bem como em sede de revisão dos mesmos
já em vigor ou futuros”; “no exercício de funções na titularidade de cargos em
órgãos de soberania, das regiões autónomas e das autarquias locais, bem como no
exercício de funções públicas de qualquer natureza e independentemente da
natureza do vínculo; “na produção de documentos particulares, e nomeadamente em
manuais escolares e académicos, bem como nos textos para publicação e divulgação;
e “na oralidade, sobretudo no âmbito de ações de formação e de ensino”.
Enquanto a Assembleia da República faz a recomendação
e o apelo com base na ótica da não exclusão, o Governo invoca praticamente os
grandes pressupostos constitucionais. Tanto assim é que invoca o duplo
princípio fundante da República Portuguesa Soberana: “a dignidade da pessoa humana” e “a vontade
popular e empenhada de construção de uma sociedade livre, justa e solidária,
assente na promoção da igualdade entre homens e mulheres” (cf art.º 1.º da
Constituição).
Depois, ainda à luz desse duplo
princípio, escuda-se na alínea h) do art.º 9.º da Constituição que elege como
uma das tarefas fundamentais do Estado “promover
a igualdade entre homens e mulheres”.
Além disso, estriba a sua
resolução no programa do XXI Governo Constitucional (este), que “reconhece a igualdade e a não discriminação como condição para a
construção de um futuro sustentável para Portugal, enquanto país que realiza
efetivamente os Direitos Humanos e promove o Direito Internacional dos Direitos
Humanos”.
***
Nada
do estipulado nestas doutas resoluções merece qualquer objeção. Porém, não
posso deixar de advertir que estamos perante um preciosismo semântico que em
nada afeta as relações interpessoais nem melhora as condições de coexistência
social, étnica, antropológica, política, intergeracional, sexista, de género,
cultural, ética estética, económica, financeira, antropagógica (prefiro
este adjetivo e o nome
“antropagogia”
ao adjetivo “andragógica” e ao nome “andragogia”) e religiosa.
Todos
nós sabemos que, ao referirmos o “Homem” na ordem dos princípios e dos valores,
dos direitos e dos deveres, da cidadania e da política, da vida religiosa,
cultural, etc., temos em conta o ser humano: homem ou mulher, criança,
adolescente, jovem, adulto ou idoso. Quando digo que “todo o homem é meu irmão”, estou a abranger, nesta onda de
fraternidade, homens e mulheres, independentemente da idade e do sexo. O mesmo
se quer dizer quando se refere Cristo ter dado a vida “por todos os homens” ou que desceu dos Céus “por nós, homens, por nossa salvação”.
Se
formos a ser mais papistas que o Papa, teremos de proibir o enunciado oral ou
escrito da expressão “a ex-mulher” de fulano ou obrigar a dizer e a escrever “o
ex-homem” de beltrana.
A
língua portuguesa também dispõe de palavra própria para designar o homem
enquanto ser masculino – o “varão” –, que poucas vezes é utilizada, tal como no
latim se distinguia a palavra “vir, viri” da palavra “homo, hominis” e o grego
distinguia a palavra “anêr, andrós” da palavra “ánthrôpos, anthrôpou”.
Apesar
do uso generalizado de “homem” para significar ser humano masculino, o contexto
permite distinguir quando “homem” significa ser humano indiferenciado, no
sentido filosófico do termo, a humanidade ou a espécie humana. Seria ridículo
que o discurso filosófico enunciasse “todo
o homem é animal” e viesse o político acrescentar “e a mulher também”.
Não
creio que Francisco Balsemão e Santana Lopes tivessem sido melhores
primeiros-ministros que outros por se dirigirem “aos portugueses e às
portuguesas” em vez utilizarem o eanista e cavaquista “Portugueses!”.
E
arrisco dizer que nem Paulo VI foi bom Papa só por dizer “Veneráveis Irmãos no Episcopado, diletos filhos e filhas” ou
Francisco por distinguir no discurso “irmãos e irmãs”, “homens e mulheres” e
meninos e meninas”, bem como os padres e bispos, que falam em “amados irmãos e
irmãs” ou aqueles oradores que dizem “Minhas
Senhoras e Meus Senhores”.
Acresce
apontar que, no dicionário da Porto Editora (costuma ser
referência), a
entrada “homem” refere que se trata dum nome masculino (questão
de género gramatical, como “pipo” e “carvalho”, por exemplo) e dá-lhe 5 aceções, a saber:
“1. Mamífero primata, bípede, sociável, que se distingue de todos os
outros animais pela faculdade da linguagem e pelo desenvolvimento intelectual.
2. Ser humano, ser vivo composto de matéria e espírito. 3. Pessoa adulta do
sexo masculino, sujeito, indivíduo. 4. (com
maiúscula) espécie humana, humanidade. 5 (popular) marido, companheiro, amante.”.
Ora,
como se pode ver, a reserva para o significado de homem macho só é reportada
pelas aceções 3 e 5. Ademais, o verbete “mulher” não dá a esta palavra “mulher”
o significado específico da humanidade ou da animalidade.
Estamos
entendidos? Estão entendidas? Ou teremos de fazer erratas para todas as publicações
de referência de que dispomos: Bíblia, Corão, enciclopédias, tratados de História,
Filosofia, Geografia, Sociologia, Economia, Antropologia, etc. e emendar a própria
DUDH?
Por
outro lado, o que se tem lido sobre direitos universais não se contrapõe à
questão das expressões linguísticas, mas à sua possível limitação ou ao seu condicionamento
pelo relativismo cultural. Veja-se, por exemplo, o artigo de Catarina Santos
Botelho “Direitos universais?
Quando o relativismo é uma forma de absolutismo.”,
in Observador, 29/03/2017, ou Elis Nobre
Ferreira, “Teorias dos Direitos
Humanos: debate entre universalismo e relativismo cultural”, in Conteúdo Jurídico, 30/04/2016.
***
Deixemo-nos,
pois, de bizantinices. Façamos um pouco mais pelas pessoas e pelas relações
sociais, culturais e económicas e cuidemos mais da estética, da ética e da
educação!
2019.01.29
– Louro de Carvalho
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