domingo, 27 de janeiro de 2019

A Palavra de Deus, fulcro da comunidade, é geradora de alegria e festa


A liturgia do 3.º domingo do tempo comum, no Ano C, releva a Palavra de Deus como fulcro da comunidade, em torno do qual gravita a vida toda dos crentes, comprometidos que estão, pessoalmente e em comunidade, com o desígnio divino. É a Palavra de Deus o centro da nossa escuta, reflexão, ação e disponibilidade ao serviço de Deus e do próximo.
Não é uma doutrina abstrata, pasto e deleite da intelectualidade, mas o conteúdo da fé cujo núcleo essencial é o anúncio libertador de Deus a todos os homens que incarna em Jesus Cristo e nos cristãos ao estilo do seu Mestre e Senhor. Eles, constituídos pela Palavra como discípulos, rapidamente se dão conta da obrigação que lhes é outorgada de testemunhas, arautos, apóstolos e missionários, para o que necessitam de receber a força do Alto, sendo também Igreja orante.
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Os livros de Neemias e de Esdras (inicialmente, formavam uma unidade) são do período subsequente ao regresso do exílio da Babilónia. A transição do século IV aC para o V era ainda de miséria e desolação para Jerusalém, cidade agora sem muralhas e sem portas, sombra negra da cidade bela que fora. E Neemias, alto funcionário do rei Artaxerxes, sabendo das notícias de Jerusalém, obtém do rei autorização para ali se instalar. E inicia a sua atividade pela reconstrução da muralha (cf Ne 3-4) e pelo combate às injustiças dos ricos sobre os pobres (cf Ne 5), passando, depois, à restauração do culto (cf Ne 8-9).
É, pois, no contexto de preocupação cultual que se posiciona o trecho que serve de 1.ª leitura da Liturgia desta dominga (Ne 8,2-4a.5-6.8-10).
Quem tem a missão da Palavra tem de se preparar e de preparar tudo; proclamar ou fazer proclamar a Palavra clara e distintamente; refletir a Palavra e explicá-la de modo acessível, de forma que ela toque a assembleia que escuta (e a cada pessoa) e lhe questione a vida; e, depois, a Palavra deve acolhida com veneração e respeito e levar à mudança de vida.
Neemias convoca todo o Povo para uma assembleia “na praça sita diante da Porta das Águas”, para a escuta da leitura da Lei, pois é mister recordar ao Povo o compromisso fundante que assumiu com o seu Deus, a fim de se preparar o futuro novo que Neemias antevê para Jerusalém e para o Povo de Deus. O texto elege como questão essencial a relevância da Palavra de Deus na vida da comunidade, objetivo para que os diversos pormenores apontam:
- O hagiógrafo destaca a convocação mesmo de toda a comunidade para a escuta da Palavra: homens, mulheres e crianças em idade “de compreender”, já que a Palavra de Deus, dirigida a todos sem exceção, a todos questiona e põe em causa.
- O cenário físico releva o estrado de madeira feito de propósito que põe o leitor em plano superior; e o cenário dinâmico dá lugar de desataque à abertura do Livro da Lei de forma solene e ao posicionamento de todos, que se levantam em atitude de respeito e veneração pela Palavra – modelo da comunidade cujo fulcro é a Palavra de Deus e onde tudo e todos se dispõem em função do papel que a Palavra de Deus ocupa na vida da comunidade.
- Depois, vem o guião da “celebração da Palavra”: aclamação da Palavra pela assembleia; leitura clara e distinta da Lei pelos levitas; explicação da Lei ao povo pelos levitas, de modo acessível, de maneira que se possa compreender o que foi lido; e a resposta do Povo: confrontados com a Palavra, todos choram, o que revela, certamente, uma comunidade que se deixa pôr em causa pela Palavra, confrontando a vida com a Palavra proclamada e sentindo a urgência da conversão, porque a Palavra é eficaz e provoca a transformação da vida.
- E tudo termina em grande festa: o dia “consagrado ao Senhor” é um dia de alegria e de festa para a comunidade que se alimentou da Palavra e passa a alimentar-se fisicamente em família partilhando com quem não tem, pois um dos componentes da festa é a partilha.
Assim se exemplifica como a Palavra deve estar no centro da vida comunitária e, uma vez proclamada, é geradora de alegria e de festa.
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O Evangelho (Lc 1,1-4;4,14-21) apresenta-nos Cristo como a Palavra que Se faz pessoa no meio dos homens para levar a libertação e a esperança às vítimas da opressão, do sofrimento e da miséria. E, depois da Ascensão de Jesus, é a comunidade que tem a missão de anunciar ao mundo essa Palavra libertadora. É a comunidade que, atenta às moções do Espírito, gera modelos de oração, de testemunhas qualificadas, de apóstolos destemidos, de arautos eloquentes e de missionários ativos que percorrem todos os caminhos andados e não andados.   
Começamos, neste 3.º domingo do Tempo Comum, no Ano C, a leitura contínua do evangelho de Lucas, que nos acompanhará até ao final do ano litúrgico. Depois do ciclo do Natal e antes do ciclo da Páscoa onde se escutam, de forma descontínua, alguns episódios do evangelho de Lucas, o Tempo Comum oferece-nos, de forma ininterrupta, domingo após domingo, episódio após episódio, a vida e a mensagem de Jesus. Tal leitura contínua, além de nos proporcionar o ensejo de contemplar de perto os mistérios da vida do Senhor, constitui um convite à entrada na aventura fascinante do seguimento de Jesus à luz do evangelho lucano.
O Evangelho desta dominga é constituído por duas passagens evangélicas diferentes.
A primeira (1,1-4) é um prólogo literário à laia dos escritores helénicos da época em que o evangelista apresenta a obra: fruto de investigação cuidada (método) dos “factos que se realizaram entre nós” (assunto), a fim de que os crentes de língua grega (a quem o Evangelho de Lucas se dirige) (destinatários) verifiquem “a solidez da doutrina em que foram instruídos” (finalidade).
Talvez porque iniciamos a leitura ininterrupta do evangelho de Lucas, a liturgia da Igreja houve por bem oferecer-nos, na primeira parte do evangelho deste domingo e antes da narração do início do ministério de Jesus, o prólogo do evangelho lucano. Na verdade, os quatro primeiros versículos deste trecho são os versículos introdutórios da obra lucana, em que o evangelista oferece um prólogo com a apresentação da obra.
O evangelho não é fruto da imaginação mas, como se disse, o resultado de acurada investigação “dos factos que se realizaram entre nós”. Assim, o evangelho de Lucas não nos oferece mitos e lendas, mas um acontecimento histórico concreto: o acontecimento Jesus de Nazaré. E Lucas dedica a obra ao “ilustre Teófilo”. Porém, não se trata dum tratado de História como se entende nos tempos hodiernos, mas de um percurso catequético, fundado nos dados históricos, é certo, porém, centrado em vetores fundantes, como a ação do Espírito Santo, a premência da oração, a mística do Reino, o relevo da misericórdia, a universalidade da salvação, a tomada de partido pelos mais fracos, o papel da mulher, a certeza da entrada no Paraíso…  
E pode afirmar-se que, na figura de Teófilo, Lucas dedica a sua obra a todos os crentes, a todos os amigos de Deus para os ajudar no seu seguimento do Senhor. Lucas sente-se na necessidade de colocar por escrito o resultado da investigação para que tenhamos conhecimento seguro do que nos foi ensinado, ou seja, a grande finalidade do evangelho é fortificar a fé dos crentes.
Lucas sente que não pode reservar para si aquilo que as “testemunhas oculares e ministros da Palavra” lhe transmitiram. Por isso, escreve a Teófilo – que significa “amigo de Deus” e pode ser uma pessoa singular influente na comunidade ou a antonomásia da mesma comunidade – para que tenha conhecimento seguro do que lhe foi ensinado. Com Teófilo e sua comunidade cristã, somos convidados por Lucas e pelos outros evangelistas a crer na Palavra, esta Palavra que muitos assinaram com o seu sangue. Não basta conhecê-la; é preciso obedecer-lhe e pô-la em prática para desenvolvimento da fé pessoal, do incremento da vida comunitária e do testemunho e da ação missionária fora de portas. Lucas não pergunta que erros tenhamos cometido, mas interpela-nos como amigos de Deus que dizemos ser e sugere que tiremos consequências desta força da Salvação oferecida a todos gratuitamente.
Na década de 80, desaparecidas as “testemunhas oculares” de Cristo, o cristianismo começa a defrontar-se com heresias e desvios doutrinais, que põem em crise a identidade cristã. Era, por isso, mister recordar aos crentes as suas raízes e a solidez da doutrina recebida de Jesus pela via do testemunho legítimo, que é a tradição apostólica.  
A segunda passagem evangélica (4,14-21), que é programática, apresenta o início da pregação de Jesus, que Lucas coloca em Nazaré, tendo como cenário de fundo o do culto sinagogal, no sábado. A celebração na sinagoga consistia em orações e leituras da Lei e dos Profetas, com o respetivo comentário. Os leitores eram membros instruídos da comunidade ou, como no caso de Jesus, visitantes conhecidos pelo competente saber na explicação da Palavra.
O núcleo do relato em causa está na proclamação dum texto do Trito-Isaías (cf Is 61,1-2) que descreve como concretizará o Messias a sua missão. Neste texto, Lucas expõe o programa que Jesus Se propõe realizar no meio dos homens, como proposta de libertação dirigida a todos os oprimidos. O ponto de partida é a leitura do texto referenciado, que apresenta o profeta anónimo que, em Jerusalém, consola os exilados, como um “ungido de Deus”, possuído do Espírito do Senhor, com a missão de gritar a “boa notícia” de que a libertação chegou ao coração e à vida de todos os prisioneiros do medo, do desânimo, do sofrimento, da injustiça e da opressão. Por outro lado, Jesus faz a atualização da profecia, apresentando-Se como o “profeta” que Deus ungiu com o seu Espírito para realizar esta missão libertadora. “Cumpriu-se hoje esta profecia”!
O projeto de Deus em prol dos prisioneiros do egoísmo, da injustiça e do pecado começa, portanto, a cumprir-se na ação de Jesus. Na sequência, Lucas descreve a atividade de Jesus na Galileia como o anúncio (em palavras e em gestos) da “boa notícia” dirigida preferencialmente aos pobres e marginalizados (leprosos, doentes, publicanos, mulheres…), anunciando a chegada do fim de todas as escravidões e o tempo novo da vida e da liberdade para todos.
Lucas anuncia ainda, neste texto programático, o futuro caminho da Igreja e as condições da sua fidelidade a Cristo. A comunidade crente toma consciência, através deste texto, de que a sua missão é a mesma de Cristo e consiste em levar a “boa notícia” da libertação aos mais pobres, débeis e marginalizados do mundo. Ungida pelo Espírito e seguindo Jesus, a Igreja leva a cabo esta missão.
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São Jerónimo interpela-nos com o seguinte comentário:
Lemos as Sagradas Escrituras. Eu penso que o Evangelho é o Corpo de Cristo; penso que as santas Escrituras são o seu ensinamento. E quando Ele fala em ‘comer a minha carne e beber o meu sangue’, embora estas palavras se possam entender do Mistério [eucarístico], todavia também a palavra da Escritura, o ensinamento de Deus, é verdadeiramente o corpo de Cristo e o seu sangue. Quando vamos receber o Mistério [eucarístico], se cair uma migalha sentimo-nos perdidos. E, quando estamos a escutar a Palavra de Deus e nos é derramada nos ouvidos a Palavra de Deus que é carne de Cristo e seu sangue, se nos distrairmos com outra coisa, não incorremos em grande perigo?”.
Nestes termos, deveremos interrogar-nos:
Quantas vezes desperdiçamos, por negligência e distração, a Palavra que Deus dirige a cada um de nós na Liturgia da Palavra, esquecendo que, ‘quando na Igreja se lê a Sagrada Escritura é Ele [Cristo] quem fala (GS, 7)’?
Para nos orientarmos na proclamação e escuta da Palavra, a 1.ª leitura deste domingo, retirada do livro de Neemias, como já foi visto, indica-nos três verbos representativos de três momentos que marcam o itinerário correto da relação com a Palavra de Deus: ler, explicar e compreender
Antes de mais, é necessário ler. Mas esta leitura não é uma leitura qualquer. A leitura da Palavra de Deus não pode improvisar-se; tem, antes, de ser uma leitura cuidada, programada e didática. Esdras escolheu com cuidado o local da reunião e da proclamação da Palavra de Deus. O povo reuniu-se no lugar pré-determinado, longe do ruído da cidade e com uma boa acústica. Os que liam a Palavra de Deus não a liam de qualquer modo, mas de forma clara e distinta. Além disso, havia um estrado de madeira, feito de propósito para essa ocasião a fim de que o leitor pudesse ser visto e ouvido por todos.
A seguir, vem a explicação. Com efeito, como reza um provérbio antigo, “toda a palavra da Bíblia tem setenta rostos”. Por isso, requer-se um trabalho de exegese, que desenterre todos os tesouros que se encontram em cada página da Escritura. Assim, a homilia não é algo acessório, dispensável e quanto mais curta melhor. É, antes, um momento de extrema importância na liturgia da Palavra: “é parte da liturgia e muito recomendada: é um elemento necessário para alimentar a vida cristã” (IGMR, 65). É nela que se desenterram os tesouros escondidos nas leituras proclamadas. Por conseguinte, tem de haver grande cuidado quer do sacerdote na preparação e execução da homilia quer dos fiéis na sua escuta.
Por fim, vem a compreensão, não a compreensão meramente intelectual, mas a compreensão nutrida pela inteligência e pelo coração. A escuta da Palavra de Deus deve-nos conduzir, como conduziu o povo sob a direção de Neemias, ao exame de consciência, ao arrependimento e à conversão. As lágrimas que o povo derramou sinalizam a consciência do não seguimento da Palavra e exprimem sinceramente o arrependimento. Não é só às lágrimas de arrependimento que a leitura da Palavra de Deus nos conduz; a Palavra proclamada é geradora de festa, de alegria e de felicidade: “Hoje é um dia consagrado a nosso Senhor; portanto, não vos entristeçais, porque a alegria do Senhor é a vossa fortaleza”. E o facto de Deus hoje nos dirigir a sua palavra salvadora e Se interessar por nós é fonte de alegria e de festa. Além disso, a Palavra de Deus não é uma palavra de condenação, mas de salvação.
Com efeito, a Palavra de Deus encarnada e definitiva é Jesus de Nazaré que a segunda parte do evangelho, já comentada, nos apresenta ao iniciar do seu ministério público. Jesus inicia-se publicamente participando no culto da sinagoga. Aí proclama o texto de Isaías sobre o ungido do Senhor e onde se indica a missão do Messias: anunciar a boa-nova, proclamar a redenção, dar a vista, restituir a liberdade e proclamar o ano da graça. Faltou “o dia da vingança do nosso Deus”, o que irritou os ouvintes viam aqui a truncação do texto profético, que Jesus omitiu deliberadamente, pois não veio para condenar, mas para recuperar o que estava perdido.
Depois da leitura, Jesus, como verdadeiro mestre, senta-se e faz a sua homilia sobre a Palavra que acabara de proclamar. Porém, não comenta o texto do profeta; reinterpreta-o e proclama o seu cumprimento. Na verdade, em Jesus de Nazaré cumprem-se as promessas da salvação, com Ele começa o eterno ‘hoje’ da salvação, continuado pela oração e ação da Igreja.
Por isso, façamos festa e alegremo-nos, partilhando a alegria e os haveres! 
2019.01.27 – Louro de Carvalho

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