A liturgia do 3.º domingo do tempo comum, no Ano C, releva a Palavra
de Deus como fulcro da comunidade, em torno do qual gravita a vida toda dos
crentes, comprometidos que estão, pessoalmente e em comunidade, com o desígnio
divino. É a Palavra de Deus o centro da nossa escuta, reflexão, ação e
disponibilidade ao serviço de Deus e do próximo.
Não é uma doutrina abstrata, pasto e deleite da
intelectualidade, mas o conteúdo da fé cujo núcleo essencial é o anúncio
libertador de Deus a todos os homens que incarna em Jesus Cristo e nos cristãos
ao estilo do seu Mestre e Senhor. Eles, constituídos pela Palavra como
discípulos, rapidamente se dão conta da obrigação que lhes é outorgada de testemunhas,
arautos, apóstolos e missionários, para o que necessitam de receber a força do
Alto, sendo também Igreja orante.
***
Os livros de Neemias e de Esdras (inicialmente, formavam uma unidade) são do período subsequente ao
regresso do exílio da Babilónia. A transição do século IV aC para o V era ainda
de miséria e desolação para Jerusalém, cidade agora sem muralhas e sem portas,
sombra negra da cidade bela que fora. E Neemias, alto funcionário do rei
Artaxerxes, sabendo das notícias de Jerusalém, obtém do rei autorização para ali
se instalar. E inicia a sua atividade pela reconstrução da muralha (cf Ne 3-4) e pelo combate às injustiças dos
ricos sobre os pobres (cf
Ne 5), passando, depois,
à restauração do culto (cf
Ne 8-9).
É, pois, no contexto de preocupação cultual que se posiciona
o trecho que serve de 1.ª leitura da Liturgia desta dominga (Ne 8,2-4a.5-6.8-10).
Quem tem a missão da Palavra tem de se preparar e de preparar
tudo; proclamar ou fazer proclamar a Palavra clara e distintamente; refletir a Palavra
e explicá-la de modo acessível, de forma que ela toque a assembleia que escuta (e a cada pessoa) e lhe questione a vida; e, depois,
a Palavra deve acolhida com veneração e respeito e levar à mudança de vida.
Neemias convoca todo o Povo para uma assembleia “na praça
sita diante da Porta das Águas”, para a escuta da leitura da Lei, pois é mister
recordar ao Povo o compromisso fundante que assumiu com o seu Deus, a fim de se
preparar o futuro novo que Neemias antevê para Jerusalém e para o Povo de Deus.
O texto elege como questão essencial a relevância da Palavra de Deus na vida da
comunidade, objetivo para que os diversos pormenores apontam:
- O hagiógrafo destaca a convocação mesmo de toda a
comunidade para a escuta da Palavra: homens, mulheres e crianças em idade “de
compreender”, já que a Palavra de Deus, dirigida a todos sem exceção, a todos
questiona e põe em causa.
- O cenário físico releva o estrado de madeira feito de
propósito que põe o leitor em plano superior; e o cenário dinâmico dá lugar de
desataque à abertura do Livro da Lei de forma solene e ao posicionamento de
todos, que se levantam em atitude de respeito e veneração pela Palavra – modelo
da comunidade cujo fulcro é a Palavra de Deus e onde tudo e todos se dispõem em
função do papel que a Palavra de Deus ocupa na vida da comunidade.
- Depois, vem o guião da “celebração da Palavra”: aclamação
da Palavra pela assembleia; leitura clara e distinta da Lei pelos levitas;
explicação da Lei ao povo pelos levitas, de modo acessível, de maneira que se
possa compreender o que foi lido; e a resposta do Povo: confrontados com a
Palavra, todos choram, o que revela, certamente, uma comunidade que se deixa
pôr em causa pela Palavra, confrontando a vida com a Palavra proclamada e
sentindo a urgência da conversão, porque a Palavra é eficaz e provoca a
transformação da vida.
- E tudo termina em grande festa: o dia “consagrado ao
Senhor” é um dia de alegria e de festa para a comunidade que se alimentou da
Palavra e passa a alimentar-se fisicamente em família partilhando com quem não
tem, pois um dos componentes da festa é a partilha.
Assim se exemplifica como a Palavra deve estar no centro da
vida comunitária e, uma vez proclamada, é geradora de alegria e de festa.
***
O Evangelho (Lc 1,1-4;4,14-21)
apresenta-nos Cristo como a Palavra que Se faz pessoa no meio dos homens para
levar a libertação e a esperança às vítimas da opressão, do sofrimento e da
miséria. E, depois da Ascensão de Jesus, é a comunidade que tem a missão de anunciar
ao mundo essa Palavra libertadora. É a comunidade que, atenta às moções do
Espírito, gera modelos de oração, de testemunhas qualificadas, de apóstolos
destemidos, de arautos eloquentes e de missionários ativos que percorrem todos
os caminhos andados e não andados.
Começamos,
neste 3.º domingo do Tempo Comum, no Ano C, a leitura contínua do evangelho de
Lucas, que nos acompanhará até ao final do ano litúrgico. Depois do ciclo do
Natal e antes do ciclo da Páscoa onde se escutam, de forma descontínua, alguns episódios
do evangelho de Lucas, o Tempo Comum oferece-nos, de forma ininterrupta,
domingo após domingo, episódio após episódio, a vida e a mensagem de Jesus. Tal
leitura contínua, além de nos proporcionar o ensejo de contemplar de perto os mistérios
da vida do Senhor, constitui um convite à entrada na aventura fascinante do
seguimento de Jesus à luz do evangelho lucano.
O Evangelho desta dominga é constituído por duas passagens
evangélicas diferentes.
A primeira (1,1-4) é um
prólogo literário à laia dos escritores helénicos da época em que o evangelista
apresenta a obra: fruto de investigação cuidada (método) dos “factos que se realizaram entre nós” (assunto), a fim de que os crentes de língua grega (a quem o Evangelho de Lucas se dirige) (destinatários) verifiquem “a solidez da doutrina em que foram instruídos”
(finalidade).
Talvez
porque iniciamos a leitura ininterrupta do evangelho de Lucas, a liturgia da
Igreja houve por bem oferecer-nos, na primeira parte do evangelho deste domingo
e antes da narração do início do ministério de Jesus, o prólogo do evangelho lucano.
Na verdade, os quatro primeiros versículos deste trecho são os versículos introdutórios
da obra lucana, em que o evangelista oferece um prólogo com a apresentação da
obra.
O evangelho não é fruto da imaginação mas, como se disse, o
resultado de acurada investigação “dos factos que se realizaram entre nós”.
Assim, o evangelho de Lucas não nos oferece mitos e lendas, mas um
acontecimento histórico concreto: o acontecimento Jesus de Nazaré. E Lucas
dedica a obra ao “ilustre Teófilo”. Porém, não se trata dum tratado de História
como se entende nos tempos hodiernos, mas de um percurso catequético, fundado
nos dados históricos, é certo, porém, centrado em vetores fundantes, como a
ação do Espírito Santo, a premência da oração, a mística do Reino, o relevo da misericórdia,
a universalidade da salvação, a tomada de partido pelos mais fracos, o papel da
mulher, a certeza da entrada no Paraíso…
E pode afirmar-se que, na figura de Teófilo, Lucas dedica a
sua obra a todos os crentes, a todos os amigos de Deus para os ajudar no seu
seguimento do Senhor. Lucas sente-se na necessidade de colocar por escrito o
resultado da investigação para que tenhamos conhecimento seguro do que nos foi
ensinado, ou seja, a grande finalidade do evangelho é fortificar a fé dos
crentes.
Lucas sente que não pode reservar para si aquilo que as
“testemunhas oculares e ministros da Palavra” lhe transmitiram. Por isso, escreve
a Teófilo – que significa “amigo de Deus” e pode ser uma pessoa singular
influente na comunidade ou a antonomásia da mesma comunidade – para que tenha
conhecimento seguro do que lhe foi ensinado. Com Teófilo e sua comunidade
cristã, somos convidados por Lucas e pelos outros evangelistas a crer na
Palavra, esta Palavra que muitos assinaram com o seu sangue. Não basta
conhecê-la; é preciso obedecer-lhe e pô-la em prática para desenvolvimento da
fé pessoal, do incremento da vida comunitária e do testemunho e da ação
missionária fora de portas. Lucas não pergunta que erros tenhamos cometido, mas
interpela-nos como amigos de Deus que dizemos ser e sugere que tiremos
consequências desta força da Salvação oferecida a todos gratuitamente.
Na década de 80, desaparecidas as “testemunhas oculares” de
Cristo, o cristianismo começa a defrontar-se com heresias e desvios doutrinais,
que põem em crise a identidade cristã. Era, por isso, mister recordar aos
crentes as suas raízes e a solidez da doutrina recebida de Jesus pela via do
testemunho legítimo, que é a tradição apostólica.
A segunda passagem evangélica (4,14-21), que é programática, apresenta o início da pregação de Jesus, que Lucas
coloca em Nazaré, tendo como cenário de fundo o do culto sinagogal, no sábado.
A celebração na sinagoga consistia em orações e leituras da Lei e dos Profetas,
com o respetivo comentário. Os leitores eram membros instruídos da comunidade
ou, como no caso de Jesus, visitantes conhecidos pelo competente saber na
explicação da Palavra.
O núcleo do relato em causa está na proclamação dum texto do
Trito-Isaías (cf Is
61,1-2) que descreve
como concretizará o Messias a sua missão. Neste texto, Lucas expõe o programa
que Jesus Se propõe realizar no meio dos homens, como proposta de libertação
dirigida a todos os oprimidos. O ponto de partida é a leitura do texto referenciado,
que apresenta o profeta anónimo que, em Jerusalém, consola os exilados, como um
“ungido de Deus”, possuído do Espírito do Senhor, com a missão de gritar a “boa
notícia” de que a libertação chegou ao coração e à vida de todos os
prisioneiros do medo, do desânimo, do sofrimento, da injustiça e da opressão.
Por outro lado, Jesus faz a atualização da profecia, apresentando-Se como o
“profeta” que Deus ungiu com o seu Espírito para realizar esta missão
libertadora. “Cumpriu-se hoje esta
profecia”!
O projeto de Deus em prol dos prisioneiros do egoísmo, da
injustiça e do pecado começa, portanto, a cumprir-se na ação de Jesus. Na
sequência, Lucas descreve a atividade de Jesus na Galileia como o anúncio (em palavras e em gestos) da “boa notícia” dirigida
preferencialmente aos pobres e marginalizados (leprosos, doentes, publicanos, mulheres…), anunciando a chegada do fim de
todas as escravidões e o tempo novo da vida e da liberdade para todos.
Lucas anuncia ainda, neste texto programático, o futuro caminho
da Igreja e as condições da sua fidelidade a Cristo. A comunidade crente toma
consciência, através deste texto, de que a sua missão é a mesma de Cristo e
consiste em levar a “boa notícia” da libertação aos mais pobres, débeis e
marginalizados do mundo. Ungida pelo Espírito e seguindo Jesus, a Igreja leva a
cabo esta missão.
***
São Jerónimo
interpela-nos com o seguinte comentário:
“Lemos as Sagradas Escrituras. Eu penso que
o Evangelho é o Corpo de Cristo; penso que as santas Escrituras são o seu
ensinamento. E quando Ele fala em ‘comer a minha carne e beber o meu sangue’,
embora estas palavras se possam entender do Mistério [eucarístico], todavia
também a palavra da Escritura, o ensinamento de Deus, é verdadeiramente o corpo
de Cristo e o seu sangue. Quando vamos receber o Mistério [eucarístico], se
cair uma migalha sentimo-nos perdidos. E, quando estamos a escutar a Palavra de
Deus e nos é derramada nos ouvidos a Palavra de Deus que é carne de Cristo e
seu sangue, se nos distrairmos com outra coisa, não incorremos em grande
perigo?”.
Nestes termos,
deveremos interrogar-nos:
Quantas vezes desperdiçamos, por negligência e
distração, a Palavra que Deus dirige a cada um de nós na Liturgia da Palavra, esquecendo
que, ‘quando na Igreja se lê a Sagrada Escritura é Ele [Cristo] quem fala (GS, 7)’?
Para nos
orientarmos na proclamação e escuta da Palavra, a 1.ª leitura deste domingo,
retirada do livro de Neemias, como já foi visto, indica-nos três verbos
representativos de três momentos que marcam o itinerário correto da relação com
a Palavra de Deus: ler, explicar e
compreender.
Antes de
mais, é necessário ler. Mas esta
leitura não é uma leitura qualquer. A leitura da Palavra de Deus não pode improvisar-se;
tem, antes, de ser uma leitura cuidada, programada e didática. Esdras escolheu
com cuidado o local da reunião e da proclamação da Palavra de Deus. O povo
reuniu-se no lugar pré-determinado, longe do ruído da cidade e com uma boa
acústica. Os que liam a Palavra de Deus não a liam de qualquer modo, mas de forma
clara e distinta. Além disso, havia um estrado de madeira, feito de propósito
para essa ocasião a fim de que o leitor pudesse ser visto e ouvido por todos.
A seguir,
vem a explicação. Com efeito, como
reza um provérbio antigo, “toda a palavra
da Bíblia tem setenta rostos”. Por isso, requer-se um trabalho de exegese,
que desenterre todos os tesouros que se encontram em cada página da Escritura.
Assim, a homilia não é algo acessório, dispensável e quanto mais curta melhor. É,
antes, um momento de extrema importância na liturgia da Palavra: “é parte da
liturgia e muito recomendada: é um elemento necessário para alimentar a vida
cristã” (IGMR, 65). É nela que se desenterram os tesouros escondidos
nas leituras proclamadas. Por conseguinte, tem de haver grande cuidado quer do
sacerdote na preparação e execução da homilia quer dos fiéis na sua escuta.
Por fim, vem
a compreensão, não a compreensão
meramente intelectual, mas a compreensão nutrida pela inteligência e pelo
coração. A escuta da Palavra de Deus deve-nos conduzir, como conduziu o povo
sob a direção de Neemias, ao exame de consciência, ao arrependimento e à
conversão. As lágrimas que o povo derramou sinalizam a consciência do não seguimento
da Palavra e exprimem sinceramente o arrependimento. Não é só às lágrimas de
arrependimento que a leitura da Palavra de Deus nos conduz; a Palavra
proclamada é geradora de festa, de alegria e de felicidade: “Hoje é um dia consagrado a nosso Senhor;
portanto, não vos entristeçais, porque a alegria do Senhor é a vossa fortaleza”.
E o facto de Deus hoje nos dirigir a sua palavra salvadora e Se interessar por
nós é fonte de alegria e de festa. Além disso, a Palavra de Deus não é uma
palavra de condenação, mas de salvação.
Com efeito,
a Palavra de Deus encarnada e definitiva é Jesus de Nazaré que a segunda parte
do evangelho, já comentada, nos apresenta ao iniciar do seu ministério público.
Jesus inicia-se publicamente participando no culto da sinagoga. Aí proclama o
texto de Isaías sobre o ungido do Senhor e onde se indica a missão do Messias:
anunciar a boa-nova, proclamar a redenção, dar a vista, restituir a liberdade e
proclamar o ano da graça. Faltou “o dia da vingança do nosso Deus”, o que
irritou os ouvintes viam aqui a truncação do texto profético, que Jesus omitiu deliberadamente,
pois não veio para condenar, mas para recuperar o que estava perdido.
Depois da
leitura, Jesus, como verdadeiro mestre, senta-se e faz a sua homilia sobre a
Palavra que acabara de proclamar. Porém, não comenta o texto do profeta; reinterpreta-o
e proclama o seu cumprimento. Na verdade, em Jesus de Nazaré cumprem-se as
promessas da salvação, com Ele começa o eterno ‘hoje’ da salvação, continuado
pela oração e ação da Igreja.
Por isso,
façamos festa e alegremo-nos, partilhando a alegria e os haveres!
2019.01.27 –
Louro de Carvalho
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