quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

O poder do Parlamento britânico que se contenha face ao poder de outros


No Reino Unido, a Câmara dos Comuns aprovou, no dia 29, duas das sete emendas ao acordo celebrado com a UE (União Europeia) no âmbito do Brexit: uma dá mandato a Theresa May para renegociar acordo do Brexit com a UE27, sem backstop incluído, procurando “soluções alternativas; outra rejeita, sem força jurídica um cenário de “no deal Brexit” a 29 de março.
Das emendas submetidas e aceites a votação por John Bercow, speaker do Parlamento britânico, as únicas aprovadas foram a de Graham Brady e a de Caroline Spelman. Votaram 317 deputados a favor da emenda de Brady, que preconiza a renegociação do acordo, e votaram contra 301 (diferença de 16 votos) numa sessão que, mais uma vez, ficou marcada pelos gritos de Bercow: ‘Order’, ‘Lock the Doors’, ‘Division’, ‘Clear the Lobby’, ‘The Noes Have it, the noes have it’, ‘Unlock, etc. A outra emenda, a apresentada por Caroline Spelman, deputada conservadora e ex-Ministra do Ambiente, foi aprovada, com o apoio do trabalhista Jack Dromey, para simplesmente impedir um “no deal Brexit”. Votaram a favor 318 deputados e contra 310 (diferença de 8 votos). E o resultado foi lido como derrota da Primeira-Ministra, que sempre disse não poder retirar de cima da mesa o cenário de saída sem acordo.
A emenda Brady contava com o apoio de Theresa May. Entre os deputados que anunciaram antecipadamente o apoio à emenda apresentada pelo deputado conservador, líder do chamado Comité 1922 do Partido Conservador no Parlamento de Westminster, estiveram os rebeldes conservadores eurocéticos. Assim, pouco antes da votação das emendas, Steve Baker, vice-presidente do European Research Group, think tank que representa, pelo menos, meia centena de deputados do Partido Conservador, declarou:
Decidimos de forma coletiva apoiar a emenda Brady com base nas promessas feitas pela Primeira-Ministra, especialmente no que toca ao acordo de retirada e de que o backstop permanece o pior problema. Um voto na emenda Brady é um voto para ver se a Primeira-Ministra consegue um acordo que funcione.”.
Numa primeira reação ao resultado da votação, Theresa May declarou:
Não há apetite para renegociação na UE. A negociação não vai ser fácil. Mas esta câmara deixou claro o que exige para aprovar um acordo de retirada. Este Parlamento disse também que não quer sair sem acordo. Ser contra uma saída sem acordo não é suficiente para impedir uma saída sem acordo.”.
A Chefe do Governo reafirmou o seu convite ao líder do Labour, Jeremy Corbyn, para dialogar e, em conjunto, tentarem chegar a um acordo de saída da UE – ao que o líder trabalhista respondeu, depois de verificar que os deputados rejeitaram a hipótese de um “no deal Brexit”:
Estamos preparados para nos encontrarmos com a senhora e dialogar”.
Por sua vez, Vince Cable, líder dos liberais democratas, reagiu ao resultado da votação, apontando que os deputados votaram em posições que, entre si, são contraditórias. Visivelmente exaltado, Ian Blackford, líder parlamentar do SNP (Partido Nacionalista Escocês), acusou Theresa May de ter agora “rasgado o Acordo de Sexta-Feira Santa”, já que, à luz do mesmo, é necessário o backstop . Nigel Dodds, líder parlamentar do Partido Unionista Democrático da Irlanda do Norte, discordou de que a posição votada no Parlamento e assumida por May vá contra o Acordo de Sexta-Feira Santa e aproveitou para notar a ausência dos deputados do Sinn Féin no Parlamento britânico, que, sendo contra a união da Irlanda do Norte ao Reino Unido, recusam ocupar os lugares em Westminster. Luiz Saville Roberts, do Plaid Cymru, partido galês, anotou que nem May nem Corbyn estão a desemprenhar os seus cargos de forma apropriada.
No debate da tarde do dia 29, Brady disse que, se aprovada, a sua emenda permitiria a May regressar a Bruxelas com maior legitimidade para renegociar com a UE o acordo do Brexit. Mas, segundo o Guardian, em conversa telefónica com a Primeira-Ministra, o Presidente da Comissão Europeia avisou que a UE não mudará de posição de não alterar o acordo.
May, do Partido Conservador, indicou, no início do dia do debate, que iria pedir alterações ao acordo à UE. Porém, isso não significava que o conseguisse. No debate, o líder do Labour defendeu uma extensão ao artigo 50.º durante um prazo máximo de três meses. Outros, como o líder dos rebeldes conservadores eurocéticos, Jacob Rees-Mogg, consideram que o melhor é uma saída sem acordo, o chamado “No Deal Brexit”.
Refira-se que o mecanismo de salvaguarda, conhecido como backstop, pretende evitar o regresso de uma fronteira física entre a República da Irlanda, Estado-membro da União Europeia, e a província britânica da Irlanda do Norte – medida temporária até que seja encontrada uma solução permanente, mas deputados conservadores receiam que seja aplicada por um tempo indeterminado, enquanto o DUP (Partido Democrata Unionista) não aceita que a Irlanda do Norte cumpra regras diferentes das do resto do Reino Unido.
Porem, a Primeira-Ministra reconheceu, após a aprovação da emenda, que “não vai ser fácil” convencer Bruxelas a fazer mudanças no acordo de saída na solução para a Irlanda do Norte.
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À votação na câmara dos Comuns foram ainda mais emendas. Assim, a apresentada pelo líder do Labour, Jeremy Corbyn, que pretendia evitar a possibilidade de Brexit sem acordo e defendia uma espécie de união aduaneira. O resultado da votação foi: 327 votos contra e 296 votos a favor (uma diferença de 31 votos). Corbyn, que falhou em tirar Theresa May do poder com a moção de censura que apresentou – e perdeu – no passado dia 16, contra o Governo conservador, insistiu que, para aceitar qualquer tipo de diálogo com Downing Street sobre um novo acordo do Brexit, primeiro tinha de ser descartado o cenário de “no deal Brexit”. May – e a UE também – lembraram que isso não é simplesmente possível. A emenda apresentada pelo SNP, que pedia a extensão do artigo 50.º do Tratado de Lisboa e exigia que a Escócia não saísse da UE (visto ter votado contra no referendo de 2016), teve 327 votos contra e 39 a favor (uma diferença de 288 votos). E a emenda proposta por Dominique Grieve, de dar 6 dias aos deputados para debater e votar em diferentes alternativas de Brexit, foi rejeitada por 321 votos contra e 301 votos favor (uma diferença de 20 votos).
A seguir, foi considerada a emenda apresentada por Yvette Cooper, deputada do Labour e líder do comité parlamentar para o Brexit, pedia uma extensão do prazo do artigo 50.º até ao final de 2019, em caso de a Chefe do Governo britânico não conseguir garantir um acordo até 26 de fevereiro. Na prática, Yvette Cooper queria evitar uma saída da UE sem acordo a 29 de março. Posta a votação, a proposta foi derrotada por 321 votos contra e 298 a favor (uma diferença de 23 votos), tendo 14 dos votos contra vindo de deputados do próprio Labour.
Depois, chegou a vez da votação de emenda da também trabalhista Rachel Reeves, cuja proposta defendia o adiamento do Brexit se nenhum acordo fosse alcançado até ao final de fevereiro, mas não especificando durante quanto tempo. Foi rejeitada com 322 votos contra e 219 a favor (uma diferença de 103 votos).
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Em termos de reação de titulares de órgãos do poder soberano dos países interessados e das instituições da UE, regista-se o seguinte:
Falando em Nicósia (Chipre), onde decorreu a cimeira dos líderes dos países do Sul da UE, o Presidente de França, Emmanuel Macron, insistiu que o acordo atual (rejeitado pela câmara dos Comuns no dia 15) “é o melhor acordo possível”, não sendo “renegociável”, incluindo o ponto do backstop (mecanismo de salvaguarda destinado a evitar o regresso da fronteira física entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda após a saída do Reino Unido da UE e a respeitar o acordo de paz de Sexta-Feira Santa). Também, em Nicósia, António Costa, Primeiro-Ministro português admitiu, em declarações aos jornalistas, que o “no deal Brexit” é o cenário mais provável, frisando:
Ninguém quer que ele aconteça, mas todos devem preparar-se para que isso aconteça”.
Depois, face à deliberação britânica, Costa, citado pela Lusa, afirmou a partir de Nicósia:
Considero que há uma ilusão que não se deve desenvolver no Reino Unido no sentido de se pretender transferir para a Europa problemas políticos internos. Essa não é uma boa solução. […] Se há quem no Reino Unido pretenda organizar um segundo referendo, então que organize o referendo; se há quem queria fazer eleições, então que se façam eleições. Mas não coloquem sob a União Europeia um ónus que não pode ser o seu. Fizemos um acordo e a senhora May festejou esse acordo.”.
E, para reafirmar que o no deal Brexit seria o pior dos cenários, António Costa, declarou:
Há que evitar uma saída descontrolada do Reino Unido e foi feito um acordo que já tem duas declarações interpretativas para que ninguém tenha dúvidas. Mas não se pode reabrir um processo com base numa suspeição de que se pretende montar uma armadilha, ou atravessar o Reino Unido. Espero que este acordo seja aprovado ou, melhor ainda, que o Reino Unido decida manter-se na União Europeia.”.
Já na semana passada, o negociador chefe da UE para o Brexit, Michel Barnier, tinha deixado um aviso aos deputados britânicos:
Parece haver agora uma maioria nos comuns para travar um no deal [Brexit], mas a oposição a um no deal não impede que um no deal aconteça no [dia 29] de março”.
Antes da votação, a Bloomberg (empresa de tecnologia e dados para o mercado financeiro e agência de notícias operacional em todo o mundo com sede em Nova York) noticiara que a Comissão Europeia preparara um comunicado a reafirmar que o acordo para a saída dos britânicos da UE, prevista para o próximo dia 29 de março, não está aberto a renegociação.
Também, num comunicado oficial, o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, insistiu:
backstop é parte do acordo de retirada e o acordo de retirada não está aberto a renegociação. As conclusões do Conselho Europeu de dezembro são muito claras sobre este ponto.”.
E, verificando “a ambição do Parlamento do Reino Unido em evitar um cenário de no deal”, indicou que se mantêm em curso “as preparações para todos os desfechos, incluindo o de um no deal”, manifestando abertura da UE para avaliar – e aprovar por unanimidade – um eventual pedido de extensão do artigo 50.º por parte do Reino Unido.
Questionado sobre esta declaração, Boris Johnson, ex-Ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, respondeu que as duas partes estão em negociação e que não é surpreendente que a UE esteja a resistir a uma renegociação. O também ex-correspondente em Bruxelas durante vários anos propôs, nesta semana, em artigo no Daily Telegraph, a solução “freedom clause” (“cláusula da liberdade”) – em que ficasse estabelecido que o Reino Unido poderia, a qualquer momento, já depois de ter saído da UE, pôr um ponto final ao backstop. Porém, não aponta os critérios para tal decisão.
O coordenador do Parlamento Europeu para o Brexit insistiu, logo no dia do debate, que a eurocâmara não alterará o acordo de saída do Reino Unido da UE e que permanecerá ao lado da Irlanda. Numa publicação no Twitter, Guy Verhofstadt começou por saudar a decisão do Parlamento britânico de rejeitar uma saída do Reino Unido da UE sem acordo e por se mostrar otimista quanto ao impacto positivo do diálogo entre os partidos para a construção da relação futura, antes de endurecer o tom. Alertou o eurocrata:
Mantemo-nos ao lado da Irlanda e do Acordo de Sexta-feira Santa. Não há uma maioria para reabrir ou diluir o acordo de saída no Parlamento Europeu, incluindo o backstop.”.
Os líderes europeus têm, pois, repetido insistentemente que não vão reabrir as negociações do acordo, que é “o melhor e único possível”, uma posição já reafirmada por um porta-voz do presidente do Conselho Europeu. Assim, lê-se em comunicado do gabinete de Donald Tusk:
O acordo de saída é e continua a ser a melhor forma de assegurar uma saída ordenada do Reino Unido da União Europeia. O backstop integra o acordo de saída e o acordo de saída não é renegociável. As conclusões do Conselho Europeu de novembro são muito claras neste ponto.”.
Ressalta, de forma eminente neste contexto, a posição conjunta dos chefes de Estado e de Governo dos países do sul da UE, que, na cimeira de Nicósia – da esquerda para a direita: o Ministro dos Negócios Estrangeiros de Espanha, Josep Borrell, que representava o Primeiro-Ministro; o Primeiro-Ministro de Portugal, António Costa; o Primeiro-Ministro de Itália, Giuseppe Conte; o Presidente de Chipre, Nicos Anastasiades; o Presidente de França, Emmanuel Macron; o Primeiro-Ministro da Grécia, Alexis Tsipras, e o Primeiro-Ministro de Malta, Joseph Muscat – subscreveram uma declaração conjunta.
Diga-se parenteticamente que, nesta V Cimeira dos Países do Sul da União Europeia, o Governo espanhol se fez representar pelo Ministro das Relações Exteriores, Josep Borrell Fontelles, dado que Pedro Sánchez, se encontrava na reunião da Internacional Socialista em Santo Domingo, na República Dominicana, para discutir a situação na Venezuela. Numa resolução aprovada no dia 29, a Internacional Socialista declarou a apoiar os esforços do Presidente da Assembleia Nacional venezuelana para conduzir o país num processo de “transição para a democracia”.
Quando a Primeira-Ministra britânica fez saber que tenciona renegociar o acordo de saída da UE, os líderes do sul europeu contrapõem que defendem “firmemente” o compromisso já alcançado entre as instituições europeias e o governo de Londres para o Brexit. Depois de manifestarem o seu “empenho” numa saída ordenada do Reino Unido, os líderes deste grupo afirmam que pretendem “proceder à ratificação do acordo”. E referem, por outro lado, que os Estados membros da UE do sul intensificam “o seu trabalho para fazer face às consequências da saída do Reino Unido, tomando em linha de conta todos os cenários possíveis”.
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Em suma, é um tipo de baralhar e tornar a dar: May, impelida pelo seu Parlamento, quer renegociar o Brexit com Bruxelas e a UE27 para conseguir uma saída com acordo aprovado parlamentarmente; a UE, com a França de Emmanuel Macron à cabeça, é contra qualquer reabertura do acordo para renegociação e apoia a Irlanda contra a remoção do backstop. E tem esse direito: não se brinca com as instituições. Mantém-se o impasse, a incerteza e a frustração!
O Parlamento britânico pôs-se em bicos de pés e afirmou o seu poder dentro do Reino Unido. Não se discute a sua legitimidade, mas, se não consegue um consenso interno, que se interrogue como quer granjear um consenso externo em redor das suas pretensões ou que se contenha na sua expressão de poder inquestionável. Na verdade, não se pode tolerar que, do alto das suas ínsuas ebúrneas, os britânicos queiram impor a sua supremacia ao bloco europeu como nos tempos em que lograram dominar o mundo quase todo através dum imperialismo construído à sombra da falência do imperialismo dos reinos que tiveram a veleidade de dar mundos ao mundo. Agora outro galo canta: as nações não abrem mão da sua soberania e esta é uma condição de paz!
2019.01.29 – Louro de Carvalho

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