domingo, 13 de janeiro de 2019

Pelo nosso Batismo, tornamo-nos todos discípulos missionários


Com a Festa do Batismo do Senhor, abre-se em grande, a porta do Tempo Comum, em pleno Ano Missionário (e rumo a outubro de 2019, o mês missionário extraordinário). Jesus não Se manifesta de modo aparatoso e extraordinário. Antes Se manifestou extremamente humilde no Presépio; passou despercebido na família de Nazaré 30 anos; continua igual a Si mesmo, escondido entre o povo, entre a fila dos pecadores; desce às águas do Jordão e deixa-Se batizar por João; e inicia a Sua vida pública. E nós recordamos que, por via do Batismo, nos tornámos todos discípulos missionários no alinhamento com o mote para o Ano Pastoral em curso na diocese do Porto. 
A liturgia desta dominga de festa, que funciona como o domingo I do Tempo Comum, tem como pano de fundo o projeto salvador de Deus. No Batismo de Jesus nas margens do Jordão, o Pai revela-nos com gosto o Seu Filho muito amado, que enviou ao mundo a salvar e libertar os homens e que ungiu como Messias, com o Espírito Santo. E, cumprindo a vontade do Pai, Jesus fez-Se um de nós, partilhou a nossa fragilidade e humanidade, libertou-nos do egoísmo e do pecado e empenhou-Se em promover-nos para chegarmos à vida plena. Se, no presépio, surgiu como criança deitada em palhinhas, no Jordão apresenta-Se ao Batista como um simples penitente. E, quando o Batista se inibe, porque devia ser o Mestre a batizar o precursor, “Jesus respondeu-lhe: ‘Deixa por agora. Convém que cumpramos assim toda a justiça’.” (Mt 3,15). 
***
Na 1.ª leitura (Is 42,1-4.6-7), num trecho pertencente ao Livro da Consolação ou Deuteroisaías (cf Is 40-55) anuncia-se um Servo, eleito por Deus e enviado a instaurar o mundo de justiça e de paz sem fim. Animado pelo Espírito de Deus, concretizará a missão com humildade e simplicidade, sem recurso ao poder, imposição ou prepotência, pois esses não são os critérios de Deus.
As duas partes em que se divide esta passagem de Isaías afirmam – como dois movimentos concêntricos e centrípetos, que partem do mesmo sítio e terminam de modo similar – a eleição do “Servo” e a sua missão.
Na primeira parte (vv 1-4) desenvolvendo-se mais o aspecto da vocação ou chamamento, afirma-se que o Servo é um eleito (behir) de Deus, alguém que Deus escolheu (bahar), entre muitos, para uma missão especial e universal. A ordenação ou configuração do Servo para a missão faz-se através do dom do Espírito (ruah), que lhe dá o alento de Jahwéh e a capacidade para levar a cabo a missão: é o mesmo Espírito que Deus derrama sobre os chefes carismáticos do Povo. Com esse Espírito, o “Servo” levará, sem desânimo, mas com ousadia e coragem, “a justiça (mishpat) a todas as nações”, que será a base duma ordem social consonante com o projeto de Deus e cuja instauração não se dará com o recurso à força, violência, espetáculo, mas através da bondade, mansidão, misericórdia e simplicidade – definidas pela lógica de Deus (cf Mt 5,3-11).
Já na segunda parte (vv 6-7), embora comece por afirmar-se que o Servo foi chamado por Deus, sobressai mais a missão: a instauração da justiça, ou seja, o estabelecimento de uma reta ordem social. Assim, Deus convida o Servo a ser “a luz das nações”, abrindo os olhos aos cegos, tirando do cárcere os prisioneiros e da prisão os que habitam nas trevas – uma missão de libertação e de salvação (cf Is 61,1-3; Lc 4,17-19).
Fica, enfim, claro que o Servo é um instrumento pelo qual Deus age no mundo para levar a salvação aos homens. Escolhido entre muitos para a missão de trazer a justiça e propor a todas as nações uma nova ordem social de que desaparecerão as trevas alienantes e impeditivas de caminhar e de oferecer a todos a liberdade e a paz. Por outro lado, fica evidente que Deus está na origem da missão do Servo e no acompanhamento da sua concretização, a garantir-lhe o pleno êxito.
***
O Evangelho (Lc 3,15-16.21-22) mostra a concretização, em Jesus, da promessa profética de Isaías veiculada pela 1.ª leitura. Porém, Jesus mais que o Servo é o Filho de Deus enviado pelo Pai. Sobre Ele repousa o Espírito para que realize a missão de libertação dos homens. Obediente ao Pai tornou-se uma pessoa humana, identificou-Se com as nossas fragilidades, caminhou ao nosso lado, com vista a levar-nos à reconciliação com Deus, que nos dará a vida em plenitude.
O Batismo de João, um batismo de penitência, não é o Batismo que Jesus instituiu, o da nova economia da Aliança, o que abre o caminho da salvação e da comunhão com Deus:
Eu batizo-vos em água, mas vai chegar alguém mais forte do que eu (…). Ele há de batizar-vos no Espírito Santo e no fogo.” (Lc 3,16).
Todavia, é importante por revelar a teofania da filiação divina de Jesus e da missão messiânica:
Todo o povo tinha sido batizado; tendo Jesus sido batizado também, e estando em oração, o Céu rasgou-se e o Espírito Santo desceu sobre Ele em forma corpórea, como uma pomba. E do Céu veio uma voz: ‘Tu és o meu Filho muito amado; em ti pus todo o meu agrado’.” (Lc 3,21-22).
Fica evidente que o contexto da sagração de Jesus para a missão é a assimilação ao povo, aos irmãos e a oração. Depois, ao invés do fechamento céu para os judeus, que tolhia a comunicação de Deus com os homens (não enviava profetas, estavam sujeitos ao jugo romano: parecia que Deus os tinha abandonado), agora o Céu rasga-se: o Espírito Santo desce em forma corpórea e o Pai fala. E diz de e a Jesus: Tu és o meu Filho muito amado; em ti pus todo o meu agrado’. Que mais queremos para a teofania divina em Jesus e para a sua missão? A sua unção messiânica não é comum: não é unção com o óleo humano, mas unção radical e totalmente divina.
Em efervescência messiânica, a figura e a atividade de João Batista na Palestina criam a suspeita do seu messianismo. Mas João rejeita categoricamente tal suspeita. Ele não é o Messias; a sua missão, mesmo como ministrador do batismo de penitência e de purificação, é a de preparar o Povo para o tempo novo que vai começar com a chegada do Messias, que João define como “aquele que é mais forte do que eu, do qual não sou digno desatar as correias das sandálias”. “Desatar as correias das sandálias” era tarefa de escravo, pelo que a tradição rabínica proibia o discípulo de desatar as correias das sandálias do mestre. Assim, João confessa-se o “escravo” cuja missão é estar ao serviço do Messias que está a chegar e que “batizará com o Espírito e com o fogo”. O batismo no Espírito Santo e a fortaleza são prerrogativas que enformam o Messias que Israel esperava. Por isso, o testemunho de João não oferece dúvidas: chegou o tempo do Messias. Na ótica lucana, esta predição joânica concretizar-se-á no dia de Pentecostes: Do fogo do Messias derramado sobre os discípulos reunidos no cenáculo nascerá um Povo novo e livre, a comunidade da nova Aliança.
O cenário do batismo identificará claramente o Messias anunciado por João com o próprio Jesus (vv 21-22). O Espírito Santo, que desce sobre Jesus “como uma pomba”, remete para a figura do Servo descrito por Isaías, já referido. E a voz celeste apresenta Jesus como o Filho muito amado de Deus (v 22), cuja missão será, como a do Servo: “abrir os olhos aos cegos, tirar do cárcere os prisioneiros e da prisão os que habitam nas trevas” (Is 42,7). E, para concretizar essa missão, Ele batizará no Espírito e inserirá os homens numa dinâmica de vida nova – a vida no Espírito.
No “baptismo” de Jesus, o testemunho de Deus acerca de Jesus é acompanhado por três factos estranhos que, no entanto, devem ser entendidos em referência a factos e símbolos do Antigo Testamento: abertura do céu, que significa a sua união com a terra – imagem inspirada em Is 63,19 (Quem dera que rasgasses os céus e descesses, derretendo os montes com a tua presença), onde o profeta pede a Deus que abra os céus e desça ao encontro do seu Povo, refazendo a relação que o pecado interrompeu (Assim, Lucas anuncia que a atividade de Jesus vai reconciliar o céu e a terra, vai refazer a comunhão entre Deus e os homens); símbolo da pomba, que, podendo ser uma alusão à pomba que Noé libertou e que retornou à arca, com maior probabilidade evocará a pomba que, em certas tradições judaicas, é símbolo do Espírito de Deus que, no início, pairava sobre as águas e agora significará a nova criação que se realizará a partir da atividade que Jesus vai iniciar e que fará aparecer um Homem Novo animado pelo Espírito de Deus; e a voz do céu – forma muito usada pelos rabis para expressar a opinião de Deus acerca duma pessoa ou dum acontecimento –, que declara que Jesus é o Filho de Deus.
Jesus não precisava dum batismo cujo significado estava ligado à penitência, ao perdão dos pecados e à mudança de vida. Contudo, ao receber este batismo de penitência e de perdão dos pecados, Jesus solidarizou-Se com o homem limitado e pecador, assumiu a sua condição, colocou-Se ao lado dos homens para os ajudar a sair desta situação e para percorrer com eles o caminho da libertação rumo à vida plena.
O Batismo de Jesus revela, portanto, que Jesus é o Filho de Deus, que o Pai O envia ao mundo a cumprir um projeto de libertação em prol dos homens. E, como Filho, Jesus obedece ao Pai e concretiza o Seu desígnio salvador: vindo ao encontro dos homens, solidariza-Se com eles, assume as suas fragilidades, caminha com eles, refaz a comunhão entre Deus e os homens que o pecado interrompeu e conduz os homens ao encontro da vida em plenitude. Daqui resultará, pois, uma nova criação, uma nova humanidade.
Por fim, é de reconhecer que Jesus, a partir do Seu Batismo na água, deu um novo sentido ao Batismo: veio o Espírito, que O levará ao deserto, à criação do colégio apostólico, à cruz e nos dará o Pentecostes. E, tal como Jesus, após o batismo, ficou mandatado para a missão, também nós, pelo batismo que recebemos em nome de Cristo, ficamos matriculados como discípulos na escola do mestre com vista à missão que nos entregou aquando da Sua ascensão aos Céus:
E disse-lhes: ‘Assim está escrito que o Messias havia de sofrer e ressuscitar dentre os mortos, ao terceiro dia; que havia de ser anunciada, em seu nome, a conversão para o perdão dos pecados a todos os povos, começando por Jerusalém. Vós sois as testemunhas destas coisas. E Eu vou mandar sobre vós o que meu Pai prometeu. Entretanto, permanecei na cidade até serdes revestidos com a força do Alto’. Depois, levou-os até junto de Betânia e, erguendo as mãos, abençoou-os. Enquanto os abençoava, separou-se deles e elevava-se ao Céu.” (Lc 24,46-51).
 Somos, pois, discípulos missionários a partir do Batismo, com a nossa incorporação em Cristo.
***
A 2.ª leitura (At 10, 34-38) leva-nos a uma leitura pascal e missionária do Batismo de Jesus. à luz da qual também nós somos seres pascais, porque revestidos da luz de Cristo, e missionários porque testemunhas suas e seus mandatados para ir por todo o mundo proclamar o Evangelho a toda a criatura (cf Mc 16,15).
Pedro diz que, depois do batismo de João, Deus ungiu com o Espírito Santo e com o poder a Jesus de Nazaré, que “passou pelo mundo fazendo o bem” e libertando todos os que eram oprimidos. Entretanto, mataram-No, suspendendo-O de um madeiro. Mas Deus ressuscitou-O, ao terceiro dia, e permitiu-Lhe manifestar-Se às testemunhas anteriormente designadas por Deus, “a nós que comemos e bebemos com Ele, depois da sua ressurreição dos mortos”. E mandou-nos pregar ao povo e confirmar que Ele é que foi constituído, por Deus, juiz dos vivos e dos mortos (cf At 10,37-42). Tem, assim, tudo origem no Batismo do Jordão na perspetiva petrina. Com efeito, enquanto os evangelhos sinóticos, após o Batismo O remetem para o deserto, conduzido pelo Espírito para ser tentado e depois se afirmar como o Ungido de Deus e pregar a proximidade do Reino, o 4.º Evangelho apresenta-O, a seguir ao batismo, como o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo e a recrutar e selecionar os discípulos para o colégio apostólico e para a missão. Pedro assim reafirma que Jesus é o Filho amado que o Pai enviou ao mundo para concretizar um projeto de salvação e que é este o testemunho que os discípulos devem dar, para que a salvação que Deus oferece chegue a todos os povos da terra.
O livro dos Atos contém, em modo narrativo e, por vezes, oratório, uma abundante catequese, na etapa inicial da Igreja, sobre a forma como os discípulos, após a partida de Jesus deste mundo, assumiram e continuaram o projeto salvador do Pai e o levaram a todos os homens.
O livro divide-se em duas partes. Na primeira (cf At 1-12), apresenta-se a difusão do Evangelho dentro das fronteiras palestinas, por ação de Pedro e dos Doze; e, na segunda (cf At 13-28) apresenta-se a expansão do Evangelho fora da Palestina (até Roma), sobretudo por ação de Paulo.
O trecho assumido nesta liturgia inere-se na primeira parte, numa perícopa que descreve a atividade missionária de Pedro na planície do Sharon, planície junto da orla mediterrânica palestina. O texto expõe o testemunho de Pedro em Cesareia. Assim, convocado pelo Espírito (cf At 10,19-20), Pedro entra em casa de Cornélio, expõe-lhe o essencial da fé e batiza-o, bem como a toda a família (cf At 10,23b-48).
A relevância do episódio reside no facto de Cornélio ser o primeiro pagão a cem por cento a ser admitido ao cristianismo por um dos Doze, o que significa que se destina a todos os homens, sem exceção, a vida nova que nasce de Jesus.
No seu discurso, Pedro reconhece que a oferta da salvação é universal, ou seja, destina-se a todas e a cada uma das pessoas, sem distinção de qualquer tipo (vv 34-36). Israel foi, na verdade, o primeiro recetor da Palavra de Deus, mas Cristo veio trazer a boa nova a todos os homens. E agora, por intermédio das testemunhas de Jesus, essa proposta de salvação chega “a qualquer nação que o teme e põe em prática a justiça”. Ou seja, todo o homem e mulher, sem distinção de raça, de cor, de estatuto social, que aceita a proposta e adere a Jesus, beneficiam da salvação, porque “Deus não faz aceção de pessoas, mas, em qualquer povo, quem o teme e põe em prática a justiça, é-lhe agradável (cf 34-35).
E definidos os contornos universais da proposta salvadora de Deus, Pedro apresenta um resumo da fé primitiva (vv 37-38), que põe em ato a missão fundamental dos discípulos: anunciar Jesus e testemunhar essa salvação que deve chegar a todos os homens. O trecho de hoje contém apenas a parte inicial do “kérigma” primitivo e resume a atividade de Jesus que “passou pelo mundo fazendo o bem e curando todos os que eram oprimidos pelo demónio, porque Deus estava com Ele” (v 38). No entanto, o anúncio de Pedro continua com a catequese sobre a morte (v 39), sobre a ressurreição (v 40) de Jesus e sobre a dimensão salvífica da Sua vida (v 43).
***
Partindo do Batismo no Jordão, em que o Pai e o Espírito revelam a filiação divina de Jesus e o ungem como Messias, fazendo a caminhada no colégio discipular e apostólico até à cruz, onde Jesus sofreu na carne o Batismo do sangue e do fogo, e ao túmulo vazio, em que se perspetiva a vitória, e apoiando-nos no episódio da Última Ceia, encontramos o segredo do mistério de Jesus Cristo, a relevância do nosso ser de cristãos e filhos de Deus e o imperativo da nossa missão.
2019.01.13 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário