Com a Festa do Batismo do Senhor, abre-se em grande, a porta do Tempo
Comum, em pleno Ano Missionário (e rumo a
outubro de 2019, o mês missionário extraordinário). Jesus não Se manifesta de
modo aparatoso e extraordinário. Antes Se manifestou extremamente humilde no
Presépio; passou despercebido na família de Nazaré 30 anos; continua igual a Si
mesmo, escondido entre o povo, entre a fila dos pecadores; desce às águas do
Jordão e deixa-Se batizar por João; e inicia a Sua vida pública. E nós recordamos
que, por via do Batismo, nos tornámos todos
discípulos missionários no alinhamento com o mote para o Ano Pastoral em
curso na diocese do Porto.
A liturgia desta dominga de festa, que funciona como o
domingo I do Tempo Comum, tem como pano de fundo o projeto salvador de Deus. No
Batismo de Jesus nas margens do Jordão, o Pai revela-nos com gosto o Seu Filho muito
amado, que enviou ao mundo a salvar e libertar os homens e que ungiu como
Messias, com o Espírito Santo. E, cumprindo a vontade do Pai, Jesus fez-Se um
de nós, partilhou a nossa fragilidade e humanidade, libertou-nos do egoísmo e
do pecado e empenhou-Se em promover-nos para chegarmos à vida plena. Se, no
presépio, surgiu como criança deitada em palhinhas, no Jordão apresenta-Se ao
Batista como um simples penitente. E, quando o Batista se inibe, porque devia
ser o Mestre a batizar o precursor, “Jesus respondeu-lhe:
‘Deixa por agora. Convém que cumpramos
assim toda a justiça’.” (Mt 3,15).
***
Na 1.ª leitura (Is 42,1-4.6-7), num trecho pertencente ao Livro
da Consolação ou Deuteroisaías (cf Is 40-55) anuncia-se um Servo, eleito por
Deus e enviado a instaurar o mundo de justiça e de paz sem fim. Animado pelo
Espírito de Deus, concretizará a missão com humildade e simplicidade, sem
recurso ao poder, imposição ou prepotência, pois esses não são os critérios de
Deus.
As duas partes em que se divide esta passagem de Isaías afirmam
– como dois movimentos concêntricos e centrípetos, que partem do mesmo sítio e
terminam de modo similar – a eleição do “Servo” e a sua missão.
Na primeira parte (vv 1-4)
desenvolvendo-se mais o aspecto da vocação ou chamamento, afirma-se que o Servo
é um eleito (behir) de Deus, alguém que Deus escolheu (bahar), entre
muitos, para uma missão especial e universal. A ordenação ou configuração do Servo
para a missão faz-se através do dom do Espírito (ruah), que lhe dá o alento de Jahwéh e a
capacidade para levar a cabo a missão: é o mesmo Espírito que Deus derrama
sobre os chefes carismáticos do Povo. Com esse Espírito, o “Servo” levará, sem
desânimo, mas com ousadia e coragem, “a justiça (mishpat) a todas as nações”, que será a base
duma ordem social consonante com o projeto de Deus e cuja instauração não se
dará com o recurso à força, violência, espetáculo, mas através da bondade,
mansidão, misericórdia e simplicidade – definidas pela lógica de Deus (cf Mt 5,3-11).
Já na segunda parte (vv 6-7),
embora comece por afirmar-se que o Servo foi chamado por Deus, sobressai mais a
missão: a instauração da justiça, ou seja, o estabelecimento de uma reta ordem
social. Assim, Deus convida o Servo a ser “a luz das nações”, abrindo os olhos
aos cegos, tirando do cárcere os prisioneiros e da prisão os que habitam nas
trevas – uma missão de libertação e de salvação (cf Is 61,1-3; Lc 4,17-19).
Fica, enfim, claro que o Servo é um instrumento pelo qual
Deus age no mundo para levar a salvação aos homens. Escolhido entre muitos para
a missão de trazer a justiça e propor a todas as nações uma nova ordem social
de que desaparecerão as trevas alienantes e impeditivas de caminhar e de oferecer
a todos a liberdade e a paz. Por outro lado, fica evidente que Deus está na
origem da missão do Servo e no acompanhamento da sua concretização, a
garantir-lhe o pleno êxito.
***
O Evangelho (Lc 3,15-16.21-22)
mostra a concretização, em Jesus, da promessa profética de Isaías veiculada
pela 1.ª leitura. Porém, Jesus mais que o Servo é o Filho de Deus enviado pelo
Pai. Sobre Ele repousa o Espírito para que realize a missão de libertação dos
homens. Obediente ao Pai tornou-se uma pessoa humana, identificou-Se com as nossas
fragilidades, caminhou ao nosso lado, com vista a levar-nos à reconciliação com
Deus, que nos dará a vida em plenitude.
O Batismo de João, um batismo de penitência, não é o Batismo
que Jesus instituiu, o da nova economia da Aliança, o que abre o caminho da
salvação e da comunhão com Deus:
“Eu
batizo-vos em água, mas vai chegar alguém mais forte do que eu (…). Ele há de
batizar-vos no Espírito Santo e no fogo.” (Lc 3,16).
Todavia, é importante por revelar a teofania da filiação divina
de Jesus e da missão messiânica:
“Todo o povo tinha
sido batizado; tendo Jesus
sido batizado também, e estando em oração, o Céu rasgou-se e o Espírito Santo
desceu sobre Ele em forma corpórea, como uma pomba. E do Céu veio uma
voz: ‘Tu és o meu Filho muito
amado; em ti pus todo o meu agrado’.” (Lc
3,21-22).
Fica evidente que o contexto da sagração de Jesus para a
missão é a assimilação ao povo, aos irmãos e a oração. Depois, ao invés do fechamento
céu para os judeus, que tolhia a comunicação de Deus com os homens (não enviava profetas, estavam sujeitos
ao jugo romano: parecia que Deus os tinha abandonado), agora o Céu rasga-se: o Espírito
Santo desce em forma corpórea e o Pai fala. E diz de e a Jesus: ‘Tu és o meu Filho muito
amado; em ti pus todo o meu agrado’. Que mais queremos para a teofania
divina em Jesus e para a sua missão? A sua unção messiânica não é comum: não é
unção com o óleo humano, mas unção radical e totalmente divina.
Em efervescência messiânica, a figura e a atividade de João Batista
na Palestina criam a suspeita do seu messianismo. Mas João rejeita categoricamente
tal suspeita. Ele não é o Messias; a sua missão, mesmo como ministrador do batismo
de penitência e de purificação, é a de preparar o Povo para o tempo novo que
vai começar com a chegada do Messias, que João define como “aquele que é mais forte do que eu, do qual
não sou digno desatar as correias das sandálias”. “Desatar as correias das
sandálias” era tarefa de escravo, pelo que a tradição rabínica proibia o
discípulo de desatar as correias das sandálias do mestre. Assim, João
confessa-se o “escravo” cuja missão é estar ao serviço do Messias que está a
chegar e que “batizará com o Espírito e com o fogo”. O batismo no Espírito Santo
e a fortaleza são prerrogativas que enformam o Messias que Israel esperava. Por
isso, o testemunho de João não oferece dúvidas: chegou o tempo do Messias. Na
ótica lucana, esta predição joânica concretizar-se-á no dia de Pentecostes: Do
fogo do Messias derramado sobre os discípulos reunidos no cenáculo nascerá um
Povo novo e livre, a comunidade da nova Aliança.
O cenário do batismo identificará claramente o Messias
anunciado por João com o próprio Jesus (vv 21-22). O Espírito Santo, que desce sobre Jesus “como uma pomba”, remete para
a figura do Servo descrito por Isaías, já referido. E a voz celeste apresenta
Jesus como o Filho muito amado de Deus (v 22),
cuja missão será, como a do Servo: “abrir
os olhos aos cegos, tirar do cárcere os prisioneiros e da prisão os que habitam
nas trevas” (Is 42,7). E, para concretizar essa missão,
Ele batizará no Espírito e inserirá os homens numa dinâmica de vida nova – a
vida no Espírito.
No “baptismo” de Jesus, o testemunho de Deus acerca de Jesus
é acompanhado por três factos estranhos que, no entanto, devem ser entendidos
em referência a factos e símbolos do Antigo Testamento: abertura do céu, que
significa a sua união com a terra – imagem inspirada em Is 63,19 (“Quem
dera que rasgasses os céus e descesses, derretendo os montes com a tua presença”), onde o profeta pede a Deus que
abra os céus e desça ao encontro do seu Povo, refazendo a relação que o pecado interrompeu
(Assim, Lucas anuncia que
a atividade de Jesus vai reconciliar o céu e a terra, vai refazer a comunhão
entre Deus e os homens);
símbolo da pomba, que, podendo ser uma alusão à pomba que Noé libertou e que
retornou à arca, com maior probabilidade evocará a pomba que, em certas
tradições judaicas, é símbolo do Espírito de Deus que, no início, pairava sobre
as águas e agora significará a nova criação que se realizará a partir da atividade
que Jesus vai iniciar e que fará aparecer um Homem Novo animado pelo Espírito
de Deus; e a voz do céu – forma muito usada pelos rabis para expressar a
opinião de Deus acerca duma pessoa ou dum acontecimento –, que declara que
Jesus é o Filho de Deus.
Jesus não precisava dum batismo cujo significado estava
ligado à penitência, ao perdão dos pecados e à mudança de vida. Contudo, ao
receber este batismo de penitência e de perdão dos pecados, Jesus
solidarizou-Se com o homem limitado e pecador, assumiu a sua condição,
colocou-Se ao lado dos homens para os ajudar a sair desta situação e para
percorrer com eles o caminho da libertação rumo à vida plena.
O Batismo de Jesus revela, portanto, que Jesus é o Filho de
Deus, que o Pai O envia ao mundo a cumprir um projeto de libertação em prol dos
homens. E, como Filho, Jesus obedece ao Pai e concretiza o Seu desígnio
salvador: vindo ao encontro dos homens, solidariza-Se com eles, assume as suas
fragilidades, caminha com eles, refaz a comunhão entre Deus e os homens que o
pecado interrompeu e conduz os homens ao encontro da vida em plenitude. Daqui resultará,
pois, uma nova criação, uma nova humanidade.
Por fim, é de reconhecer que Jesus, a partir do Seu Batismo
na água, deu um novo sentido ao Batismo: veio o Espírito, que O levará ao
deserto, à criação do colégio apostólico, à cruz e nos dará o Pentecostes. E,
tal como Jesus, após o batismo, ficou mandatado para a missão, também nós, pelo
batismo que recebemos em nome de Cristo, ficamos matriculados como discípulos
na escola do mestre com vista à missão que nos entregou aquando da Sua ascensão
aos Céus:
“E disse-lhes: ‘Assim está escrito que o Messias havia de sofrer e
ressuscitar dentre os mortos, ao terceiro dia; que havia de ser anunciada, em
seu nome, a conversão para o perdão dos pecados a todos os povos, começando por
Jerusalém. Vós sois as testemunhas destas coisas. E Eu vou mandar sobre vós o
que meu Pai prometeu. Entretanto, permanecei na cidade até serdes revestidos
com a força do Alto’. Depois, levou-os até junto de Betânia
e, erguendo as mãos, abençoou-os. Enquanto os abençoava, separou-se deles e
elevava-se ao Céu.”
(Lc 24,46-51).
Somos, pois, discípulos missionários
a partir do Batismo, com a nossa incorporação em Cristo.
***
A 2.ª leitura (At 10, 34-38) leva-nos a uma leitura pascal e missionária do Batismo de Jesus. à luz
da qual também nós somos seres pascais, porque revestidos da luz de Cristo, e missionários
porque testemunhas suas e seus mandatados para ir por todo o mundo proclamar o Evangelho a toda a criatura (cf Mc 16,15).
Pedro diz que, depois do batismo de João, Deus ungiu com o Espírito Santo e com o poder a Jesus
de Nazaré, que “passou pelo mundo fazendo o bem” e libertando todos os
que eram oprimidos. Entretanto, mataram-No,
suspendendo-O de um madeiro. Mas Deus ressuscitou-O, ao terceiro dia, e
permitiu-Lhe manifestar-Se às testemunhas anteriormente designadas por Deus, “a
nós que comemos e bebemos com Ele, depois da sua ressurreição dos mortos”. E
mandou-nos pregar ao povo e confirmar que Ele é que foi constituído, por Deus,
juiz dos vivos e dos mortos (cf At 10,37-42). Tem, assim, tudo origem no Batismo
do Jordão na perspetiva petrina. Com efeito, enquanto os evangelhos sinóticos,
após o Batismo O remetem para o deserto, conduzido pelo Espírito para ser
tentado e depois se afirmar como o Ungido de Deus e pregar a proximidade do
Reino, o 4.º Evangelho apresenta-O, a seguir ao batismo, como o Cordeiro de
Deus que tira o pecado do mundo e a recrutar e selecionar os discípulos para o
colégio apostólico e para a missão. Pedro assim reafirma que Jesus é o Filho amado que o Pai
enviou ao mundo para concretizar um projeto de salvação e que é este o
testemunho que os discípulos devem dar, para que a salvação que Deus oferece
chegue a todos os povos da terra.
O livro dos Atos contém, em modo narrativo e, por vezes,
oratório, uma abundante catequese, na etapa inicial da Igreja, sobre a forma
como os discípulos, após a partida de Jesus deste mundo, assumiram e
continuaram o projeto salvador do Pai e o levaram a todos os homens.
O livro divide-se em duas partes. Na primeira (cf At 1-12), apresenta-se a difusão do
Evangelho dentro das fronteiras palestinas, por ação de Pedro e dos Doze; e, na
segunda (cf At 13-28) apresenta-se a expansão do
Evangelho fora da Palestina (até Roma),
sobretudo por ação de Paulo.
O trecho assumido nesta liturgia inere-se na primeira parte, numa
perícopa que descreve a atividade missionária de Pedro na planície do Sharon, planície
junto da orla mediterrânica palestina. O texto expõe o testemunho de Pedro em
Cesareia. Assim, convocado pelo Espírito (cf At 10,19-20), Pedro entra em casa de Cornélio, expõe-lhe o essencial da
fé e batiza-o, bem como a toda a família (cf At 10,23b-48).
A relevância do episódio reside no facto de Cornélio ser o
primeiro pagão a cem por cento a ser admitido ao cristianismo por um dos Doze,
o que significa que se destina a todos os homens, sem exceção, a vida nova que
nasce de Jesus.
No seu discurso, Pedro reconhece que a oferta da salvação é
universal, ou seja, destina-se a todas e a cada uma das pessoas, sem distinção
de qualquer tipo (vv
34-36). Israel foi, na
verdade, o primeiro recetor da Palavra de Deus, mas Cristo veio trazer a boa
nova a todos os homens. E agora, por intermédio das testemunhas de Jesus, essa
proposta de salvação chega “a qualquer nação que o teme e põe em prática a
justiça”. Ou seja, todo o homem e mulher, sem distinção de raça, de cor, de
estatuto social, que aceita a proposta e adere a Jesus, beneficiam da salvação,
porque “Deus não faz aceção de pessoas, mas, em
qualquer povo, quem o teme e põe em prática a justiça, é-lhe agradável (cf 34-35).
E definidos os contornos universais da proposta salvadora de
Deus, Pedro apresenta um resumo da fé primitiva (vv 37-38), que põe em ato a missão fundamental dos discípulos:
anunciar Jesus e testemunhar essa salvação que deve chegar a todos os homens. O
trecho de hoje contém apenas a parte inicial do “kérigma” primitivo e resume a atividade
de Jesus que “passou pelo mundo fazendo o bem e curando todos os que eram
oprimidos pelo demónio, porque Deus estava com Ele” (v 38). No entanto, o anúncio de Pedro continua com a
catequese sobre a morte (v
39), sobre a
ressurreição (v 40) de Jesus e sobre a dimensão
salvífica da Sua vida (v
43).
***
Partindo do Batismo no Jordão, em que o Pai e o Espírito revelam
a filiação divina de Jesus e o ungem como Messias, fazendo a caminhada no colégio
discipular e apostólico até à cruz, onde Jesus sofreu na carne o Batismo do sangue
e do fogo, e ao túmulo vazio, em que se perspetiva a vitória, e apoiando-nos no
episódio da Última Ceia, encontramos o segredo do mistério de Jesus Cristo, a relevância
do nosso ser de cristãos e filhos de Deus e o imperativo da nossa missão.
2019.01.13
– Louro de Carvalho
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