quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Redefinição dos crimes contra a liberdade sexual e sua moldura penal


A Assembleia da República procedeu hoje, dia 10 de janeiro, ao debate na generalidade dos projetos de lei do PAN e do BE, Projeto de Lei n.º 1047/XIII/4.ª e Projeto de Lei n.º 1058/XIII/4.ª, respetivamente, que introduz a 47.ª alteração do Código Penal (CP), alterando a definição dos crimes de coação sexual e de violação, no âmbito dos crimes contra a liberdade sexual, bem como a sua natureza e a moldura penal, adaptando a legislação portuguesa ao conteúdo da Convenção de Istambul, que Portugal ratificou.
Ambos os projetos querem tornar claro que sexo sem consentimento é crime e transformá-lo em crime público; e o PAN quer acabar com a suspensão de pena para a violação.
A redefinição dos crimes contra a liberdade sexual implica acabar com os dois tipos de violação hoje existentes – violação ‘com violência’; e ‘sem violência’ – e aumentar a pena para este crime e, no caso do PAN, impossibilitar a aplicação da suspensão de pena, ao colocar o limite mínimo nos 6 anos (só podem ser suspensas penas até 5), como escreve Fernanda Câncio no DN.
Por outro lado, integra-se o crime de abuso sexual de pessoa inconsciente ou incapaz de resistência nos crimes de coação e de violação (consoante o tipo de ato sexual em causa) e de pessoa internada, acabando com aqueles tipos penais, pelo que os projetos em referência advogam a revogação dos artigos 165.º e 166.º do CP.
Depois, os crimes de coação e de violação são tornados públicos (ou seja, não dependentes de queixa) e acrescentam-se agravantes para eles.
Porém, estes projetos dificilmente teriam condições para serem viabilizados em votação na generalidade, até porque o PS terá recusado mexer nas penas, apesar de, em outubro passado, o Governo ter, de acordo com uma notícia do Expresso, anunciado querer aumentá-las.
Enquanto o deputado do PAN admitia que o seu projeto “não tem condições para passar tal como está”, Sandra Cunha, do BE, dizia não ter ainda percebido o que podia esperar dos outros grupos parlamentares. No entanto, esperavam ambos que os seus projetos baixassem à comissão da especialidade (Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, a 1.ª) sem votação, o que realmente aconteceu por proposta do PS, encontrando-se aí terreno comum para alterar o CP de forma a melhorar a definição destes crimes e, como sustentam, “transpor de forma correta para o ordenamento jurídico português a Convenção de Istambul”, em vigor desde 2014, que impõe aos Estados signatários, Portugal incluído, “a definição dos crimes sexuais com base na não existência do consentimento”.
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Vejamos o que estabelece o CP na atual redação relativamente à coação e à violação:
Artigo 163.º (coação sexual)
1 – Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, ato sexual de relevo é punido com pena de prisão de um a oito anos. 
2 – Quem, por meio não compreendido no número anterior, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar ato sexual de relevo, consigo ou com outrem, é punido com pena de prisão até 5 anos.
Artigo 164.º (violação)
1 – Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa: 
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou 
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos;
é punido com pena de prisão de três a dez anos.
2 – Quem, por meio não compreendido no número anterior, constranger outra pessoa: 
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou 
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos; 
é punido com pena de prisão de 1 a 6 anos.
E o que defendem os preditos projetos:
O Projeto de Lei n.º 1047/XIII/4.ª, do PAN, estabelece:
“Artigo 163.º […] 1 – Quem, sem o consentimento da outra pessoa, praticar com ela ou levá-la a praticar com outrem, ato sexual de relevo é punido com pena de prisão de um a oito anos. 2 – Se os factos compreendidos no número anterior forem praticados por quem, aproveitando-se das funções ou do lugar que, a qualquer título, exerce ou detém em: a) estabelecimento onde se executem reações criminais privativas da liberdade; b) hospital, hospício, asilo, clínica de convalescença ou de saúde, ou outro estabelecimento destinado a assistência ou tratamento; ou c) estabelecimento de educação ou correção; o agente é punido com pena de prisão de três a nove anos. 3 – Se os factos compreendidos nos números anteriores: a) tiverem sido precedidos ou acompanhados de violência de considerável gravidade; ou b) tiverem sido praticados em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade; ou c) tiverem resultado em danos físicos ou psíquicos graves para a vítima; o agente é punido com pena de prisão de cinco a dez anos.
Artigo 164.º […] 1 – Quem sem o consentimento de outra pessoa: a) praticar com ela ou levá-la a praticar com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou b) proceder à introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos; é punido com pena de prisão de seis a doze anos. 2 – Se os factos compreendidos no número anterior forem praticados por quem, aproveitando-se das funções ou do lugar que, a qualquer título, exerce ou detém em: a) estabelecimento onde se executem reações criminais privativas da liberdade; b) hospital, hospício, asilo, clínica de convalescença ou de saúde, ou outro estabelecimento destinado a assistência ou tratamento; ou c) estabelecimento de educação ou correção; o agente é punido com pena de prisão de seis a catorze anos 3 – Se os factos compreendidos nos números anteriores: a) tiverem sido precedidos ou acompanhados de violência de considerável gravidade; ou b) tiverem sido praticados em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade; ou c) tiverem resultado em danos físicos ou psíquicos graves para a vítima; ou d) tiverem resultado no suicídio ou morte da vítima; o agente é punido com pena de prisão de seis a dezasseis anos.
O Projeto de Lei n.º 1058/XIII/4.ª, do BE, estabelece:
«Artigo 163.º (…) 1 – Quem constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, ato sexual de relevo é punido com pena de prisão de um a oito anos. 2 – A tentativa é punível.
 Artigo 164.º (…) 1 – Quem constranger outra pessoa, nomeadamente: a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou b) A sofrer introdução vaginal, anal ou oral de partes do corpo ou objetos; é punido com pena de prisão de cinco a dez anos. 2 – A tentativa é punível.
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Ambos os projetos mantêm a moldura penal prevista no n.º 1 do art.º 163.º. O projeto do BE, em relação ao n.º 2, aponta a punibilidade da tentativa de coação, ao passo que o PAN, em vez do n.º 2, prevê dois números com penas mais gravosas que a da redação atual do CP. Quanto ao art.º 164.º, o BE prevê uma pena mais gravosa, no caso do n.º 1, e a punibilidade da tentativa no n.º 2, enquanto o PAN prevê penas muito mais gravosas, embora diversificadas, no teor de todo o artigo.
Os dois projetos têm o objetivo comum de clarificar a lei, mas só no caso do PAN a expressão “sem o consentimento” é usada na tipificação dos crimes de coação e de violação (“Quem, sem o consentimento da outra pessoa ...”), pois  o BE mantém o termo “constranger” usada nas atuais definições dos crimes de coação e de violação, mas com uma gradação. Assim, no atual art.º 164.º, que tipifica o crime de violação, lê-se, no respetivo n.º 1: “Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa…)”; e, no n.º 2: “Quem, por meio não compreendido no número anterior” (ou seja, sem usar violência, ameaça grave, ou não a tendo posto inconsciente ou na impossibilidade de resistir), constranger outra pessoa aos mesmos atos, sendo punido com pena de 1 a 6 anos. Os dois números definem assim dois tipos de violação: uma mais grave, que inclui violência – aparentemente definida como violência física – e outra menos grave.
O crime de coação sexual, tipificado no atual art.º 163.º, que se distingue da violação pela inexistência de penetração, falando em “ato sexual de relevo”, usa o mesmo verbo “constranger” e o mesmo tipo de condições e pena de 1 a 8 anos (no caso do n.º 1), e pena até 5 anos (no caso do n.º 2).
O BE só mantém o verbo constranger e, no caso do n.º 1 do art.º 163.º, a pena.
A redação destes projetos resulta dos trabalhos, efetuados em 2015, de transposição da Convenção de Istambul. Na altura, o BE queria que a expressão “não consentimento” figurasse explicitamente no art.º 164.º, indicando, em sucessivas alíneas, várias formas de agravação, incluindo as referidas no atual n.º 1. Agora, deixou cair a expressão e mantém limite máximo das penas, mas no caso da violação o mínimo fica nos 5 anos (mais dois anos que atualmente).
O que antes constituía o tipo do crime era o uso de violência, mas agora agrava a pena num terço dos limites máximo e mínimo, por força da alteração do art.º 177.º, que significa aumento das penas e, nas condenações por violação com violência física, será impossível suspender a pena.
Já o PAN sobe e muito a pena para violação: o limite mínimo é de 6 anos e o máximo passa para 12; e, em determinadas circunstâncias, por exemplo quando se verifique “violência de especial gravidade”, para 16. Um limite máximo mais elevado que o existente neste momento para este crime, mesmo tendo em conta as agravantes tipificadas no art.º 177.º: este não ultrapassa 15 anos, mesmo quando da violação resulte o suicídio ou morte da vítima – o que contrasta com o limite máximo da pena para um roubo do qual resulte a morte do roubado, e que é de 16 anos de prisão (sendo o limite mínimo de 8, ou seja, ainda assim mais elevado que na proposta do PAN).
Uma outra novidade no projeto do PAN é a de acrescentar nas agravantes o facto de a vítima estar inconsciente, o que aumenta a pena em um terço no limite mínimo e máximo. Ou seja, o que antes era a tipificação do crime 165.º (abuso sexual de pessoa inconsciente ou incapaz de resistência) passa a ser agravante nos crimes de coação e violação. Neste último, a pena passaria a ser de 9 a 16 anos. O que mais uma vez compara com as penas do crime de roubo quando se verificam circunstâncias agravantes como o bem roubado estar num local fechado à chave ou a vítima se encontrar em situação de especial debilidade (“desastre”, “acidente” ou “calamidade pública), em que  o limite máximo é de 15 anos.
Quanto à passagem do crime de violação para crime público, comum aos dois projetos, o BE diz querer “retirar o ónus que a lei e a sociedade persistentemente impõem às vítimas”, explicitando:
É, pois, de inteira justiça que se proceda também a uma alteração da natureza destes crimes, passando de semipúblicos para crimes públicos. Num juízo análogo ao que se levou a cabo para a violência doméstica, temos de reforçar a ideia de que a violação e a coação sexual são assuntos que não podem ficar por investigar.”.
Na mesma perspetiva diz o PAN:
A importância atribuída à natureza do crime é manifestada, a título de exemplo, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2 de maio de 2012, o qual estabelece que ‘o legislador quando confere natureza pública a determinado tipo de crimes, nomeadamente quando são qualificados, tem precisamente em vista acautelar interesses públicos que se prendem nomeadamente com a segurança da sociedade e com a paz pública (interesses esses que não podem depender da vontade de particulares apresentarem ou não queixa)’. O facto de o nosso ordenamento jurídico atribuir natureza semipública a crimes com esta dimensão de gravidade espelha bem a desconsideração com requintes de anacronismo legislativo face à realidade.”.
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A necessidade de alterar a tipificação dos crimes sexuais decorre há algum tempo em Portugal e noutros países, tendo alterado vários já os respetivos códigos penais, por via da Convenção de Istambul, “destinada a combater a violência contra mulheres e a violência doméstica através da prevenção da violência, proteção das vítimas e eliminação da impunidade dos agressores”, sendo que, por força do seu art.º 36.º, “para efeitos do elemento objectivo dos crimes sexuais, mormente do crime de violação, o que releva não é a existência ou não de violência, mas sim a existência ou não de consentimento por parte do sujeito passivo/vítima”.
Por outro lado, a nossa jurisprudência evidencia uma conjuntura em que se descortina uma constante diminuição da importância atribuída aos crimes de âmbito sexual. E há disparates a justificar a atribuição de penas suaves (ou a suspensão de pena). Assim, o PAN refere:
- Um violador de menor de 14 anos foi absolvido por ela não ter gritado durante as relações sexuais e por não ter agido “de forma séria e resoluta” com vista a “evitar os avanços do vizinho” (Tribunal do círculo de Santa Maria da Feira, 1997).
- Uma rapariga foi violada, mas anotou a matrícula do caro do violador, o que mostra não ter ficado traumatizada (Tribunal da Relação do Porto, 2007).
- Um psiquiatra foi absolvido do crime de violação sobre grávida de 8 meses, pois a resistência foi expressa apenas por palavras (Tribunal da Relação do Porto, 2011).
Porém, o debate intensificou-se em setembro, depois de tornado público o acórdão dito da “sedução mútua”. O Tribunal da Relação do Porto, aduzindo o “clima de sedução mútua” e o facto de “não ter havido violência”, suspendeu a pena de 4 anos de prisão aplicada a dois homens que violaram uma jovem, inconsciente, na casa de banho duma discoteca de Vila Nova de Gaia.
A esse propósito, Carla Oliveira, da ASJP (Associação Sindical dos Juízes Portugueses), afirmou na SIC-Notícias que “não basta não haver consentimento para haver violação” e que, para existir violação no sentido jurídico, é preciso que o arguido tenha posto a vítima na impossibilidade de resistir – por exemplo, pôr droga numa bebida ou usar violência. Isto em termos gerais.
É o entendimento que também o juiz desembargador e anterior presidente da ASJP, José Mouraz Lopes, partilha, ao considerar: 
O legislador não assumiu, ainda e apenas, no não consentimento da vítima a fronteira entre o lícito e o ilícito”.
E o insigne penalista Jorge de Figueiredo Dias, cuja visão informou a geração mais idosa dos juristas – e juízes – portugueses, escrevia ainda em 2012, já após a Convenção de Istambul:
Atua sem culpa o agente convencido de que a objeção da vítima não é séria, quando ela se exprime apenas por palavras, mas não por qualquer resistência corporal”.
Parece, pois, haver por parte de parte dos juízes e mesmo de penalistas renitência em assumir a Convenção de Istambul apesar de ela ter “aplicação direta”, como tem frisado a presidente da Associação das Mulheres Juristas, a juíza desembargadora Teresa Féria.
Haverá, como refere o BE, a “desculpabilização e naturalização destes crimes, bem como a responsabilização e objetificação das mulheres”, que aninham e justificam a cultura de tolerância e desvalorização dos crimes sexuais sobre as mulheres que persiste na nossa sociedade.
E o PAN vai nesta linha, ao dar exemplos de decisões judiciais, como as apontadas, que vê como desculpabilizadoras, e ao pugnar pela pertinência de fomentar a “crescente consciencialização social (onde se incluem magistrados, políticos e penalistas) da gravidade deste tipo de crimes”.
Nestes termos, a clarificação da lei servirá para que a sociedade, os académicos, os políticos e os magistrados “atualizem” a sua visão dos crimes sexuais e não possam mais continuar a defini-los, mesmo contra a letra da atual lei, a partir do uso de violência física e da alegada maior ou menor “resistência” da vítima e, sobretudo, a limitar quer o conceito de violação quer o de resistência. Tem de bastar que o não consentimento tenha sido expresso de forma unívoca e não sujeito a leituras dramaticamente irrisórias.
2019.01.10 – Louro de Carvalho

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