É o que
referem alguns cronistas a propósito de Sebastião, que não teria natural
inclinação para a carreira das armas, mas que se propusera segui-la para melhor
servir os cristãos perseguidos pelo poder que então dominava o mundo, sendo que
os não pertencentes ao Império eram considerados ‘bárbaros’ (palavra
onomatopaica) por alegadamente
não falarem língua de gente.
Já antes do
nascimento de Cristo os romanos chamavam ao Mediterrâneo (mar no meio
da Terra)
Mare Nostrum (nosso mar), visto que
todas as terras por ele banhadas faziam parte do Império romano. Foi numa
região costeira, na província da Gália, correspondente à atual cidade de
Narbonne (França), que Sebastião veio ao mundo. A sua
família, nobre, era de Milão (na atual Itália: por isso, alguns têm-no como natural
de Milão), e não era inclinado à vida
militar, tendo-a seguido pelo desejo de servir os irmãos na fé, que sofriam a
perseguição por mor do Reino de Deus.
Os numerosos
homens que dão pelo nome de Sebastião, Bastião ou simplesmente Tião (e as
mulheres de nome Sebastiana e Tiana), bem como
as inúmeras paróquias que o têm como orago, lhe dedicam uma igreja ou uma
capela ou ainda as que lhe veneram uma imagem – e é o padroeiro principal da
grande cidade e arquidiocese do Rio de Janeiro, no Brasil, e da vetusta diocese
de Lamego, em Portugal e dá o nome a muitos bairros, ruas, vilas e freguesias –
permitem imaginar quanto e como este santo militar é admirado e venerado em inúmeras
nações, especialmente no Ocidente.
É também
assumido como padroeiro dos soldados, arqueiros e atletas, sendo muito invocado
no combate às epidemias ou pestes, às fomes e às guerras.
***
Os registos
oficiais a seu respeito são escassos. Não obstante, há dele muitas informações
que emanam da indissociável combinação entre a história e a piedade popular, complexo
por vezes escorrente da lenda que enforma o espírito da realidade com que este
militar cristão, servindo no exército de Diocleciano, um dos mais sanguinários
imperadores romanos, ajudou numerosas almas a não enfraquecerem na fé, confortando-as
e permitindo-lhes enveredar de cabeça erguida pelo caminho do Paraíso, sem qualquer
laivo de desânimo. E ele próprio não deixou, no momento certo, de se declarar
cristão, dando o testemunho e servindo de exemplo a numerosos outros seguidores
de Jesus que enfrentavam as perseguições da Era
dos Mártires, como foi denominado o período de busca e morte aos fiéis
conforme ordem imperial.
Sebastião
desempenhou corretamente o dever militar, mas por baixo da farda pulsava o
genuíno cristão; e o seu corpo fazia palpitar um coração ardente de desejo de
apoiar os perseguidos e ajudá-los a seguir o Mestre, não só nesta vida, mas
também quando se encontravam prestes a partir para a outra. Mantinha em segredo
a fé, como era comum entre os cristãos em tempo de perseguição, pois assim
podia ajudar os que dele precisavam, mas não tinha receio de perder os bens ou a
própria vida. Uma das suas ações apostólicas refere-se aos gémeos Marcos e
Marceliano, que aprisionados em Roma, eram visitados diariamente por Sebastião.
Depois de serem submetidos a chicotadas, apesar de membros de família de
senadores, foram condenados à decapitação, tendo os seus familiares obtidos do
administrador Cromácio um prazo para que se tentasse demovê-los das suas
convicções. Acorrentados na casa de Nicóstrato, escriba da prefeitura, eram
submetidos a tentativas de convencimento por parte dos amigos, pais, esposas e
filhos ainda pequenos. E, quando estavam em risco de fraquejar, foram as
palavras do oficial Sebastião que os reanimaram, o que impressionou todos aqueles
que as ouviram.
Zoé, esposa
de Nicóstrato, vendo em Sebastião um homem de Deus, atirou-se-lhe aos pés e por
gestos indicou-lhe a doença de que padecia e que lhe fizera perder a fala.
Sebastião fez o sinal da cruz sobre a boca de Zoé e, em voz alta, rogou ao
Senhor a cura. E, de imediato, ela recobrou a dicção e pôs-se a louvar aquele
homem, acrescentando crer em tudo o que ele acabara de dizer. Face à cura da
esposa, Nicóstrato lançou-se aos pés de Sebastião e pediu perdão por ter mantido
os dois cristãos aprisionados e libertou-os declarando-se feliz se fosse aprisionado
e morto em vez deles. E os dois irmãos, ora libertados, recusaram abandonar a
luta para a ela exporem outrem e firmaram-se na fé ao verem a ação de Deus, que
anulou todos os esforços para os fazer abandonar a Igreja, em que ingressaram
os donos da casa em que estiveram aprisionados. E mais pessoas abraçaram a fé
cristã nas horas subsequentes, sendo 68 o número de pessoas convertidas e
batizadas por Policarpo, ali chamado por Sebastião: Nicóstrato, Zoé, toda a
família de Nicóstrato e seu irmão Castor, o carcereiro Cláudio com dois filhos
e sua esposa Sinforosa, Tranquilino, o pai dos gémeos, com a sua esposa Márcia
e 6 amigos, as esposas dos gémeos e 16 outros encarcerados.
O prefeito
Cromácio, que havia concedido aos gémeos o período de espera visando a renúncia
à fé, sentindo-se enganado, chamou o pai de ambos e ordenou que eles oferecessem
incenso aos deuses. Porém, Tranquilino afirmou-se cristão, dizendo que seria
curado da enfermidade de que o prefeito também padecia. Cromácio disponibilizou
dinheiro para a cura, arrancando de Tranquilino risos, tendo este assegurado
que, para ser curado, bastaria recorrer a Cristo.
Após um
instrutivo catecumenado, em que foi explanada a superioridade da fé sobre a
simples cura da doença, Cromácio e o filho tornaram-se cristãos, permitindo que
fossem quebradas mais de 200 estátuas de ídolos expostos à adoração e que
fossem destruídos os instrumentos utilizados para astrologia e outras práticas
divinatórias. Porém não só pai e filho se tornaram cristãos em sua casa, mas um
total de 1.400 pessoas, incluindo escravos a quem deu a liberdade dizendo que
os que passaram a ter Deus como pai não mais podiam ser escravos de homem.
Diocleciano,
tendo assumido o império, conservou Sebastião no curso das armas e deu-lhe o
posto de capitão general da guarda pretoriana em Roma, depositando nele toda a
confiança.
Chegada a
hora de Sebastião se afirmar cristão, após cuidar de que muitos trilhassem o
caminho do Paraíso, o imperador avisado pelo governador Fabiano, inconformado,
condenou-o à morte. Assim, foi preso a um tronco e o corpo perfurado por
flechas. Crendo-o morto, os supliciantes abandonaram-no, mas Irene, uma piedosa
viúva, querendo sepultá-lo cristãmente, encontrando-o vivo, cuidou dele para
que se restabelecesse. Tempo depois, ei-lo a apresentar-se a Diocleciano (surpreendido
ao vê-lo vivo), a quem
censurou pela injustiça com que perseguia os cristãos, pois estes rezavam pelo
império e pelos seus exércitos e, em contrapartida, eram supliciados como se
fossem inimigos do Estado. Mas o imperador, obstinado no erro, ordenou que
Sebastião fosse prestes levado a um local próximo e morto a bordoadas. Foi
sepultado na catacumba que atualmente leva o seu nome, sobre a qual se ergue
uma das sete principais igrejas de Roma, a Basílica de São Sebastião, na Via
Appia. Assim, como refere Santo Ambrósio, São Sebastião, mártir que, oriundo de
Milão, partiu para Roma, onde grassavam violentas perseguições e aí sofreu
martírio, na Urbe romana, aonde tinha acorrido como hóspede, o seu corpo
granjeou domicílio de imortalidade perpétua. No dia 20 de janeiro de 288 ou de 300, foi depositado nas Catacumbas de Roma.
***
O mártir é uma referência que inspira a
viver o Evangelho na identificação com Jesus Cristo, morto e ressuscitado.
Ainda que tenha vivido em contexto social, cultural e religioso muito diferente
do hodierno, é mister conhecer a sua vida, acolher o testemunho, a adesão e
fidelidade a Cristo, a defesa do Evangelho e dos cristãos. Quem O reconhece
como padroeiro, invoca-O como intercessor junto de Deus, como amigo de Jesus,
através de quem se confia à soberania do Senhor Deus do Universo, e procura
imitá-Lo no seguimento aguerrido e apaixonado por Jesus.
Os mártires
ganharam uma enorme projeção nas comunidades cristãs dos primeiros séculos e
pelos seguintes. Nesta ótica, Sebastião, Eufémia, Inês, Luzia, o diácono Vicente
e Bárbara impõem-se por todo o mundo cristão pela fidelidade ao Evangelho e a
Jesus, arriscando a própria vida. E contribuem para catequizar as comunidades
através de exemplos concretos.
A vida de
Sebastião, no que a tradição assimilou e transmitiu, é exemplo de como a fé
ajuda a ultrapassar os obstáculos da vida e como o cristão se pode santificar
em diversas profissões e/ou ocupações, pois, mais forte que tudo é o amor a
Deus. As suas qualidades são amplamente elogiadas: imponente de figura,
prudente, bondoso e bravo, era estimado pela nobreza e respeitado por todos.
De Milão, o
jovem soldado deslocou-se para Roma, onde a perseguição era mais intensa e
feroz, para testemunhar a fé e defender os cristãos. Primeiro cai nas graças do
imperador; depois, a defesa da fé cristã e a intercessão pelos cristãos
perseguidos desencadeiam a sua morte. Cada novo mártir que surgia tornava-se um
alento e um desafio para Sebastião.
A iconografia
é muito plástica a seu respeito, inconfundível. Sebastião é representado com o corpo
praticamente desnudo e pejado com várias setas, e surge preso a um tronco de
árvore.
***
Logo após o
seu martírio começou a ser venerado como santo. Testemunhou a fé com coragem e
alegria, a partir da sua vida, como jovem militar, cristão. Daqui se conclui
que a santidade é possível em qualquer trabalho, em qualquer vocação, em
qualquer compromisso humano – exemplo do que o leigo pode fazer.
O nosso tempo
e ambiente não são, entre nós, de perseguição declarada aos cristãos, sendo-o
infelizmente em muitas partes do mundo e de forma cruciante, mas a nossa tarefa
não é mais fácil. A sua fé confrontou-se com a perseguição, ajudando os que
estavam perto do desânimo; e nós, hipócrita e debilmente, deixamo-nos contagiar
pelo contexto, por valores e leis contrários à fé que professamos,
desperdiçamos muitas oportunidades de nos afirmarmos cristãos, por cobardia,
sufragamos (por medo da
chacota) formas de
perseguição aos valores que dizemos defender; e descuramos os cristãos que precisam
de que os animemos na fé, na sua caminhada espiritual… Vale a pena ler um texto
de Ambrósio sobre o Salmo 118, apresentando Sebastião como testemunha fiel de
Cristo, e que é apresentado na Liturgia das Horas, no Ofício de Leitura:
“É
necessário passar por muitas tribulações para entrar no reino de Deus. As
muitas perseguições correspondem muitas provações: onde há muitas coroas de
vitória tem de ter havido muitos combates. É bom para ti que haja muitos
perseguidores, pois entre tantas perseguições mais facilmente encontrarás o modo
de ser coroado. Consideremos o exemplo do mártir Sebastião, que hoje
celebramos. Nasceu em Milão. Talvez o perseguidor já se tivesse afastado, ou
talvez ainda não tivesse vindo a este lugar, ou seria mais condescendente. De
qualquer modo, Sebastião compreendeu que aqui, ou não haveria luta, ou ela
seria insignificante.
“Partiu
para Roma, onde grassavam severas perseguições por causa da fé; aí foi
martirizado, isto é, aí foi coroado. Deste modo, ali onde tinha chegado como
hóspede, encontrou a morada da imortalidade eterna. Se não houvesse mais que um
perseguidor, talvez este mártir não tivesse sido coroado. Mas o pior é que os
perseguidores não são só os que se veem: há também os que não se veem, e estes
são muito mais numerosos. Assim como um único rei perseguidor emitia muitos
decretos de perseguição, e desse modo havia diversos perseguidores em cada uma
das cidades ou das províncias, também o diabo envia muitos servos seus a mover
perseguições, não apenas no exterior, mas dentro da alma de cada um.
“Destas
perseguições foi dito: ‘Todos os que querem viver piedosamente em Cristo Jesus
sofrem perseguição’. E disse ‘todos’, não excluiu nenhum. Quem poderia na
verdade ser excetuado, quando o próprio Senhor suportou os tormentos das
perseguições? Quantos há que, em segredo, todos os dias são mártires de Cristo
e dão testemunho do Senhor Jesus! Conheceu esse martírio aquele apóstolo e
testemunha fiel de Cristo, que disse: ‘Esta
é a nossa glória e o testemunho da nossa consciência’.”.
***
São Sebastião é invocado pelas gentes de Roma, cerca
do ano de 680, para proteção de uma terrível peste. A partir daquela altura, passa a ser invocado
para a proteção de cidades, vilas e burgos contra as pestes, que na Idade Média
martirizaram as populações europeias. Só as pestes por volta de 1348 provocaram
a morte de um terço da população europeia. Houve lugares que ficaram quase
desabitados e as Terras de Santa Maria, em que a Feira se insere, não foram
exceção. Foi durante uma das pestes que as gentes de Santa Maria invocaram
o Santo e a prece foi atendida. Por isso, foi decidida uma festa de ação de
graças anual com a colaboração dos condes da Feira.
Esta festividade teve início,
provavelmente, por volta de 1505 sob financiamento do 2.º Conde da Feira, Dom
Diogo Pereira. No cumprimento do voto, os ofertantes participavam numa
procissão que saía do Paço dos Condes, a seguir passava pela Igreja do Convento
do Espírito Santo (Loios), onde eram
benzidas as fogaças, partidas e distribuídas pelo povo.
Nos tempos atuais, da parte da manhã,
sai o cortejo cívico dos Paços do Concelho para a Igreja Matriz, onde se
celebra Missa Solene com sermão, se benzem as fogaças que são levadas por
centenas de meninas, as fogaceiras (este
ano, foram 362), e aí permanecem até à tarde. Então, a procissão sai da
Igreja, percorre as ruas da zona histórica da cidade, regressando à Igreja. No
final da procissão, as crianças levam consigo as fogaças que transportaram,
sendo uma das maiores oferecidas a quem preside à festa, muitas vezes o Bispo
do Porto ou um dos Bispos Auxiliares e as outras a autoridades locais.
Durante 4 anos a tradição
quebrou-se e a peste regressou, o que fez reatar a tradição com o aumento da
devoção.
Um guia do concelho feirense afirma que a data de
início do culto é o ano de 1505 e sob o patrocínio do 2.º Conde da Feira, Dom
Diogo Pereira. Porém, este só ascendeu ao título a 2 de janeiro de 1515. Terá
sido o seu patrocínio concedido não sendo ainda o conde? Terá sido no tempo do 1.º
conde da Feira, o conde
de Moncorvo Dom Rui Pereira (não
quis usar deste título, por já ter sido dado por Dom Afonso V a outros fidalgos,
e ordenou aos vassalos que lhe chamassem conde dalguma das suas terras e eles o
intitulavam conde de Santa Maria da Feira), 4.º senhor das
terras de Santa Maria e 2.º senhor do seu castelo.
FONTES: António José Coelho (2003). Santos de cada dia
I, Braga: Apostolado da Oração; CEP (1989), Liturgia das Horas,
vol. III, Gráfica de Coimbra; J. H. BARROS DE OLIVEIRA (2003). Santos de todos os Tempos, Apelação:
Paulus Editora; Padre Rohrbacher (1959). Vida
dos Santos, vol II, Editora das Américas; “Lendas de Santa Maria da Feira”;
http://www.arqnet.pt/dicionario/feiracondes.html https://pt.wikipedia.org/wiki/Conde_da_Feira.
2019.01.21 – Louro
de Carvalho
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