domingo, 6 de janeiro de 2019

Se ao menos a montanha tivesse parido um ratito…


Na “Operação Labirinto”, a operação mais mediática antes de surgir a “Operação Marquês”, dos 47 crimes da acusação por parte do MP (Ministério Público), apenas 7 ficaram provados. Entretanto, o juiz foi crítico no discurso e o MP anunciou que vai recorrer da decisão.
O julgamento começou em fevereiro de 2017 e terminou em abril de 2018. Um caso que remonta a novembro de 2014 com as primeiras detenções. O processo envolve ex-altos quadros do Estado, com um total de 21 arguidos – 17 pessoas singulares e 4 empresas – a responder pelos crimes de corrupção ativa e passiva, recebimento indevido de vantagem, prevaricação, peculato, abuso de poder, tráfico de influência e branqueamento de capitais.
Miguel Macedo (ex-Ministro da Administração Interna) demitiu-se do Governo em novembro de 2014, por lhe ser imputado pelo MP o alegado favorecimento dum grupo de pessoas que pretendiam lucrar de forma ilícita com os Vistos Gold, realizando negócios imobiliários lucrativos com empresários chineses que pretendiam obter autorização de residência para investimento.
Macedo foi absolvido de todos os crimes de que estava acusado no âmbito do caso dos Vistos Gold e que o levaram a demitir-se do Governo: três de prevaricação e um de tráfico de influências. Já António Figueiredo, ex-presidente do IRN (Instituto dos Registos e do Notariado), considerado o “cabecilha” duma “rede” de corrupção no Estado,  foi absolvido de 2 dos 4 crimes de corrupção de que estava acusado e considerado culpado de outro dois crimes: um de corrupção ativa e outro de corrupção passiva. Além destes, outros dois empresários chineses foram condenados a penas de multa entre os mais de 20 arguidos.
Os sinais do que estava para vir tinham-se pressentido há quase há um ano, quando Macedo obteve do juiz presidente do coletivo alguns considerandos sobre a defesa que o ex-ministro apresentou em tribunal. No passado dia 4, na leitura da sentença, aquele que foi quase desde o início a peça mais mediática do processo acabou absolvido em toda a linha.
A colocação de um Oficial de Ligação em Pequim, a concessão de Vistos Gold a cidadãos líbios para tratamento médico em Portugal e os alegados benefícios fiscais que uma empresa terá tido no processo ou a entrega do caderno de encargos ao amigo Jaime Gomes em benefício da empresa Everjets no concurso para a gestão dos helicópteros Kamov – nada disto o tribunal considerou provado. No decurso da lista de crimes por que Macedo respondia em tribunal, as expressões sucessivas do juiz Francisco Henriques eram: “não há prevaricação e nem como coautoria devia ser condenado”; “não há censura penal”; “não há prevaricação nenhuma”.
Não será muito honesto, é moralmente condenável, censurável até, mas o direito penal é o último grau de defesa da sociedade, e aqui não é ilícito o que aconteceu. O Dr. ministro fez dois contactos, mas daí não resultou que tenha havido algum vício neste processo em virtude destes contactos.” – frisou o juiz.
Já o ex-presidente do IRN era apontado, na tese do MP, como a mente dum extenso esquema de corrupção no seio do Estado. Nos dois crimes de que foi considerado culpado, não há ligação às suspeitas de irregularidades que ajudaram a rebatizar este caso (nascido como Operação Labirinto antes de passar a Vistos Gold).  Na verdade, estavam em causa dois concursos para a escolha do responsável do IRN, a que Figueiredo se candidatou (quando já desempenhava essas funções).
Acusado de 12 crimes, Figueiredo foi absolvido dos três crimes de tráfico de influências e do crime de prevaricação, do crime de branqueamento de capitais e de recebimento indevido de vantagem. Mas, além dos crimes de corrupção, foi condenado por apenas peculato de uso (“usou e abusou” dos funcionários do IRN em atividades privadas). Os três crimes valeram-lhe uma pena, em cúmulo, de 4 anos e 7 meses de prisão, suspensa na execução, ficando ainda impedido de exercer funções públicas durante 3 anos.
A sua condenação arrastou consigo Maria Antónia Anes, ex-secretária-geral do Ministério da Administração Interna. Na leitura da sentença, o predito juiz anunciou que, em relação a ela, o tribunal considerou provados um crime de corrupção passiva e outro de corrupção ativa, tendo o seu comportamento sido classificado como “inadmissível”, pois “houve interferência no concurso, a interferência foi aceite, nesta matéria houve transação de cargos entre o Dr. António Figueiredo e a Dra. Maria António Anes”, tendo um ajudado “o outro no concurso”.
Manuel Jarmela Palos, ex-diretor do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) era outro dos nomes de maior peso envolvidos no processo. Segundo o tribunal, não pode ser condenado pelo crime de corrupção passiva para ato ilícito e pelos dois crimes de prevaricação (“neste caso, nem dúvidas o tribunal tem, nem foi [uma decisão] pro in dubio); sobre o crime de prevaricação, “a mesma coisa, nada de censurável”; e, “no caso dos vistos, do ILS (empresa de Lalanda e Castro), houve contactos” com outros altos quadros do Estado e do Governo, “mas esses contactos não tiveram influência nenhuma na decisão”, diz o juiz, que declarou serem os contactos lícitos e, “se foram honestos ou não, é uma questão alheia ao tribunal”.
Jaime Gomes, amigo de longa data de Macedo, foi absolvido do crime de corrupção passiva para ato ilícito, do crime de prevaricação e dois crimes de tráfico de influências.
Para os empresários chineses envolvidos no processo, julgados por terem participado em negócios de imóveis e oferecido contrapartidas a Figueiredo por vantagens nesses processos, o tribunal tomou dois tipos de decisão: Zhu Xhiadong e a mulher, Zhu Baoe, foram absolvidos do crime de corrupção, mas condenados por tráfico de influências; e Xia Baoling foi absolvido.
Havia ainda um grupo de 5 arguidos ligados ao IRN e suspeitos de terem aceitado ser uma espécie de testa-de-ferro de Figueiredo ao darem origem a empresas (tituladas na sombra, dizia o MP, pelo homem-forte do IRN) para realizar contratos com as autoridades angolanas na área da Justiça. E o juiz disse:
Em Angola, as coisas fazem-se como se fazem, [mas] não foi provado que tenha havido abuso no exercício do cargo por parte destes funcionários do Estado e, por isso, foram todos absolvidos dos crimes de corrupção passiva e de recebimento indevido de vantagens”.
A sessão já ia com mais de uma hora quando o juiz começou a acelerar o ritmo a que as decisões iam sendo anunciadas. E, no final, ficou no ar uma certeza e uma suspeita: a maioria dos arguidos saiu ilibada das acusações do MP e, mesmo nos casos em que houve lugar a condenações, as defesas devem preparar-se para recorrer da decisão. E garantiu, no fim, que “não houve pressões” e “o tribunal não faz fretes a ninguém”. Não era preciso dizê-lo…
Apesar de Figueiredo ter sido condenado por peculato de uso, pela forma como direcionou os serviços do IRN para atividades privadas com Luanda, Rogério Alves sublinha que “este processo acabou por se tornar um processo da CReSAP (Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública)”. Não ficou provado o branqueamento de capitais nem a corrupção nos Vistos Gold nem relativamente aos negócios com Angola e, por isso, “o processo foi caindo aos bocados, até ficar este bocadinho”. E Rogério Alves distinguiu “aquilo que são erros de apreciação política, erros comportamentais, erros administrativos de infrações criminais”.
A sessão ficou ainda marcada por um momento em que o presidente do coletivo dedicou longos minutos a fazer a desnecessária defesa da integridade da sentença, como acima ficou dito. Mas o juiz explicitou que “este tribunal e este juiz” (insistiu Henriques em nome próprio) podem “afirmar que nunca fomos pressionados de forma nenhuma e não fazemos fretes a ninguém: o que está refletido nesta decisão é a convicção do tribunal do que se passou na verdade, esta decisão é a verdade deste tribunal”, “para que não haja dúvida”.
Aliás, o MP tinha pedido a condenação de Macedo a pena de prisão, eventualmente suspensa e não superior a 5 anos; e, em relação a Figueiredo, pedira a condenação a 8 anos de prisão e o afastamento do exercício de funções públicas num período de dois a três anos.
Jaime Gomes foi outro dos casos em que o MP se focou na pena de prisão efetiva pelos crimes de corrupção passiva, prevaricação de titular de cargo político e tráfico de influências. Manuel Jarmela Palos, antigo homem forte do SEF, estava neste grupo de condenados a penas suspensas, ainda que o MP admitisse a absolvição relativamente aos crimes de prevaricação de que era acusado. E todos os outros arguidos, admitia o procurador, poderiam ser condenados a penas suspensas.
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A 23 de novembro de 2016, Palos estava acusado de corrupção passiva e prevaricação. O antigo diretor do SEF, detido em 2014 no âmbito da operação Labirinto (era o primeiro chefe duma polícia a ser detido em Portugal), que investigou a concessão de Vistos Gold, terá facilitado processos a amigos de Macedo na tentativa de agradar ao ministro e travar a extinção do SEF. Concluía a IGAI que fora um diretor “brilhante”, mas violou vários deveres profissionais.
O antigo diretor do SEF era acusado de corrupção passiva e prevaricação, por ter violado os deveres de prossecução do interesse público, imparcialidade, zelo e lealdade. A prova de que violou estes deveres era “cristalina”, garantia a IGAI. Ainda assim, a inspeção assegurava que Palos “jamais recebeu qualquer quantia monetária”, nem ficou com duas garrafas de vinho Pera Manca, como chegou a ser referido pelo MP.
A IGAI justificava a conduta de Palos com a dedicação ao serviço e o receio de o SEF ser extinto. “A mera possibilidade da extinção do SEF era para o arguido, neste quadro afetivo-funcional, uma preocupação”, já que “podia ser extinto o serviço em que pusera todo o seu empenho pessoal e profissional e em prol do qual prejudicara a sua vida pessoal e familiar”.
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No ECO, Filipa Ambrósio de Sousa refere que os “Vistos Gold” foram um dos primeiros processos, sob a égide da PGR, Joana Marques Vidal, que viria a tomar proporções mediáticas quando ainda nada fazia prever a “Operação Marquês”. Diz que muito se opina sobre a Justiça, embora muitos não saibam do que falam, pois “não estão lá” e “não leem as páginas e páginas de acusações”, nem tentam “descodificar as palavras de um juiz ao ler in loco um acórdão, sem grandes preocupações com o mundo que está à volta”. 
Não obstante, o seu texto não é “um elogio à incansável, mas criticável profissão de jornalista”.
E recuando a novembro de 2014, diz que o caso dos “Vistos Gold” foi um seu momento marcante como jornalista e conta:
Sob a égide da senhora Procuradora-Geral da República, Joana Marques Vidal, este foi um dos primeiros processos que viria a tomar proporções mediáticas quando ainda nada fazia prever o nascimento da “Operação Marquês”, dez dias depois. Dias e dias sem descanso, à procura de manchetes, feitas sem dúvidas, numa sofreguidão incansável. Este processo – que começou por ser chamado de ‘Operação Labirinto’, mas que depressa nos corredores se tornou o dos ‘Vistos Gold’ – era o primeiro em que o Ministério Público de Marques Vidal, sob o aval da magistratura de instrução do costume, ‘ousava’ investigar altos quadros do Estado e até, imaginem, um ministro da Administração Interna: Miguel Macedo, que acabou por pedir a demissão do Governo liderado por Pedro Passos Coelho.
E, sublinhando a espetacularidade dada aos atos, releva:
Tivemos detenções quase em direto, câmaras de televisão em cima da cara de arguidos, carreiras interrompidas, carateres de jornais multiplicados diariamente, abertura de telejornais dia sim, dia sim e até a divulgação de interrogatórios judiciais. Uma moda que até parece que veio a pegar, mais tarde. Em que os momentos de fragilidade de arguidos estavam chapados em plenas câmaras que não se saberia que viriam a ser de televisão, com todos os portugueses a assistirem. E a aplaudirem.”.
E agora, na decisão de primeira instância, de 47 crimes na acusação do MP, distribuídos por 17 arguidos e em que 1/3 deles era, à data, altos quadros do Estado, apuraram-se 7, “sete crimes provados em fase de julgamento”, “crimes que acabaram por ser descobertos nesta teia chamada de ‘labirinto’, mas que nada tinham a ver com corrupção na obtenção de Vistos Gold, mas com os concursos da CRESAP.
E pergunta onde está e como fica o Ministério Público. É claro que insistirá no recurso, aliás aconselhado pelo juiz, “como manda a nossa tradição garantístico penal. E questiona se “o balanço do mandato da ex-titular da investigação criminal não terá sido feito cedo demais”, já que “a coragem de Joana Marques Vidal, que chegou a ser considerada figura do ano por muitos, está na investigação que afinal deu em muito pouco”, como se interroga “onde está o elogio à magistratura de primeira instância quando só se ouve o elogio à magistratura de instrução”.
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Retirei as ideias mais pertinentes do texto da aludida jornalista, tal como inseri uma lauda sobre o caso de Manuel Palos, pelo que representam de maléfico a espetacularidade da ação judiciária e as fugas de informação que induzem a condenação na praça pública, no 1.º caso, e as conclusões precipitadas sobre a clareza e validade das provas em sede de instrução, no 2.º.
A prova de que violou estes deveres era “cristalina”, garantia a IGAI em relação a Palos. Quanto a Macedo e outros (incluindo Palos), a presunção de inocência foi eclipsada face à condenação nos tabloides e através de vídeos em que se exibiam peças de interrogatórios aos arguidos (nervosos, porque alegadamente teriam algo a esconder…), houve medidas de coação (algumas passaram pela prisão preventiva) interromperam-se carreiras politicas e profissionais (demissões…), enlamearam-se figuras presuntivamente decentes – porque alegadamente a justiça passou a funcionar para todos, mesmo para os grandes. Parece que toda a gente se esqueceu de que a prova se produz em tribunal e não na fase de inquérito nem na de instrução.
É admissível que os investigadores e os acusadores cometam erros, mas não se admite que um megaprocesso dê em nada ou quase nada ou resulte em condenação que incida em matéria que não estava no objetivo do processo (talvez por isso em sede de recurso todos possam conhecer a absolvição).
Depois, surgem as dúvidas: “Será que Sócrates, Salgado e outros virão a ser ilibados nos processo em que estão envolvidos, depois de tanta tinta haver sido derramada e se terem enrouquecido tantas vozes condenatórias? E porque têm os juízes de tecer tantos considerandos justificativos das ilibações que decretam e de distinguir à saciedade o aspeto moral e o aspeto penal, chegando a dizer que o tribunal não conhece da eventual desonestidade? Quererão autoproteger-se de suspeitas ou estão a encobrir desígnios escondidos? Serão mesmo os tribunais impermeáveis a pressões e interesses? Há mesmo justiça igual para todos? Como é que alguns processos estão feridos de nulidades e outros não? Têm os advogados a igualdade de oportunidades independentemente da condição dos seus constituintes?
E, se os arguidos procederem contra o Estado e pedirem indemnizações, lá pagará o Zé!
É pena que o cidadão possa pensar que é uma balela apregoar-se que há justiça igual para todos.
2019.01.06 – Louro de Carvalho

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