Foi um dos apelos deixados pelo Papa Francisco no discurso que proferiu
no encontro com as autoridades, corpo diplomático e representantes da sociedade
civil, no passado dia 24 de janeiro, no Palácio Bolívar – Ministério das Relações Exteriores (Panamá).
Confesso que me apraz ler os discursos do Pontífice neste tipo de
encontros com as referidas entidades, porque juntamente com a videomensagem que
antecede habitualmente as suas viagens apostólicas, além de deixar explícitos o
objetivo geral e o objetivo circunstancial do evento, tece, fundado na Historia
e Geografia do país respetivo, um conjunto de considerações sobre a boa
construção da sociedade. Por outras palavras, é o momento mais político da sua
estada num país, o que não sucedeu, por exemplo, quando veio a Fátima: vinha
como peregrino, não vinha em visita de Estado.
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O insigne visitante saudou o
povo panamense, que abriu as portas de casa ao Bispo de Roma e a tantos jovens
vindos dos quatro cantos do mundo, esforço incalculável de todos, de Darién até
Chiriqui e Bocas del Toro.
Depois,
evocou o significado simbólico do local histórico onde começou a sua
peregrinação, o mesmo local onde Simon Bolívar “afirmou que, ‘se o mundo tivesse de escolher a sua capital,
para este augusto destino teria assinalado o istmo do Panamá’, e convocou
os líderes coevos a fim de forjar o sonho da unificação da Pátria Grande”.
Considerando
que tal convocação é inspiradora por ajudar a compreender a capacidade destes
povos em “criar, forjar e, sobretudo, sonhar uma pátria grande que saiba e
possa acolher, respeitar e abraçar a riqueza multicultural de cada povo e
cultura”, afirma que se pode olhar o Panamá como uma terra de convocação e de
sonho.
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Para
assinalar o Panamá como terra de
convocação, o Pontífice escuda-se na memória do que pensava o Congresso Anfictiónico
e no facto da “chegada de milhares de jovens” que trazem consigo o desejo e a
vontade do encontro e da celebração.
Com efeito,
“pela sua localização privilegiada”, o país “constitui um ponto estratégico”
para a região e para o mundo inteiro. O país mais estreito do continente
americano, sendo “ponte entre os oceanos e terra natural de encontros” (está sobre
um istmo e tem ao canal), apresenta-se
como sinal e instrumento da “sustentabilidade” nascida da “capacidade de criar
vínculos e alianças” configuradora do “coração do povo panamense”.
Assegurando
que, ocupando cada um dos presentes e dos demais cidadãos “um lugar especial na
construção da nação” e sendo “chamado a assegurar que a mesma cumpra a sua vocação
de terra de convocação e de encontros”, Francisco considera que isto “requer
decisão, empenho e trabalho diário” para que todos os habitantes do território se
sintam” atores do seu próprio destino, das suas famílias e de toda a nação”.
Por isso, requer-se a “participação ativa” de cada membro da nação “para que a
dignidade seja reconhecida e garantida através do acesso a uma instrução de
qualidade e à promoção dum trabalho digno”, realidades que, juntas (instrução e
trabalho), ajudam “a reconhecer e valorizar
a genialidade e o dinamismo criativo deste povo” e compaginam “o melhor
antídoto” contra qualquer tutela limitadora da liberdade, subjugante ou
transcurante “da dignidade dos cidadãos,
especialmente dos mais pobres”.
E Francisco
vê a genialidade do país espelhada na riqueza dos seus povos nativos, que
enumera: Bribri, Buglé, Emberá, Kuna, Nasoteribe, Ngäbe e Waunana – que “muito
nos têm a dizer (…) a partir da sua cultura e visão de mundo” – pois, na ótica
papal, é “um sinal de esperança” o facto de esta Jornada Mundial da Juventude
ter começado, há uma semana, com a “Jornada
dos jovens dos povos indígenas” e a “Jornada dos jovens de descendência
africana”. De facto, assinala o Papa, “ser terra de convocação” postula “celebrar,
reconhecer e escutar” o específico de “cada um destes povos e de todos os
homens e mulheres que compõem a fisionomia panamense”, sabendo “tecer um futuro
aberto à esperança”. Na verdade, só “a firme decisão de partilhar com justiça
os próprios bens” capacita para a defesa do bem comum “acima dos interesses de
poucos” ou evitar que a ação se ponha “ao serviço de poucos”.
E não deixou
de fazer uma substanciosa referência aos jovens, que, na sua “alegria e
entusiasmo”, na sua “liberdade, sensibilidade e capacidade crítica”, exigem aos
adultos, sobretudo àqueles que detêm “um papel de liderança na vida pública”, “uma
conduta conforme à dignidade e autoridade de que estão revestidos e que lhes
foi confiada”, o que implica “viver com austeridade e transparência, na
responsabilidade concreta pelos outros e pelo mundo” e levar uma vida que
demonstre o serviço público como “sinónimo de honestidade e justiça
contrapondo-se a qualquer forma de corrupção”. Efetivamente, “os jovens exigem
um empenhamento, em que todos – a começar por quantos se dizem cristãos –
tenham a ousadia de construir uma vida política verdadeiramente humana
(GS, 73), que coloque a pessoa no centro como coração de tudo”. E o Papa,
mencionando a oração que os panamenses fazem pela Pátria – “Dai-nos o pão de cada dia: que o possamos comer
na nossa casa e com a saúde digna de seres humanos” – sustenta que a
política verdadeiramente humana impele à criação de “uma cultura de maior
transparência entre os governos, o setor privado e toda a população.
***
Assinalando
que o Panamá é terra de sonhos,
Francisco acentua que, nestes dias, o país será efetivamente apontado como
“centro da região ou ponto estratégico para o comércio e para o trânsito de
pessoas”, mas, sobretudo, ”transformar-se-á numa ‘confluência’ de esperança”,
porque é “ponto de encontro” para jovens dos cinco continentes, que, “cheios de
sonhos e esperanças”, celebram, reúnem, rezam e reavivam “o desejo e o
compromisso de criar um mundo mais humano”. Nesta perspetiva, crê o Pontífice:
“Desafiarão as visões míopes de curto
alcance que, seduzidas pela resignação, pela ganância, ou prisioneiras do
paradigma tecnocrático, creem que o único caminho possível passa pelo ‘jogo da
competitividade’, da especulação ‘e da lei do mais forte, onde o poderoso
engole o mais fraco’ (Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 53), fechando o futuro a uma nova perspetiva
para a humanidade”.
Assim,
prossegue o Papa Bergoglio, o Panamá, ao hospedar os sonhos destes jovens, “torna-se
terra de sonhos” a desafiar “muitas certezas do nosso tempo” e a criar “horizontes
vitais que conferem uma nova espessura ao caminhar com uma visão nova,
respeitosa e cheia de compaixão para com os outros”. E fica definido o rumo: “seremos
testemunhas da abertura de novos canais de comunicação e compreensão, de
solidariedade, criatividade e ajuda mútua – canais à medida do homem que deem
impulso ao compromisso e quebrem o anonimato e o isolamento, tendo em vista um
novo modo de construir a história”.
Porque se
vislumbra outro mundo”, “os jovens convidam-nos a envolver-nos na sua
construção”, para que os sonhos não sejam efémeros ou etéreos, mas impulsionem “um
pacto social” em que “todos possam ter a oportunidade de sonhar um amanhã: o
direito ao futuro também é um direito humano”. E, a propósito, Francisco cita Patria
de mis amores, de Ricardo
Miró, quando cantava à sua pátria tão amada: “Porque vendo-te, ó pátria, se
diria / que te formou a vontade divina / para que sob o sol que te ilumina / se
unisse em ti a humanidade inteira”.
Por fim,
releva todo o esforço feito para que este encontro fosse possível, deseja a
todos os mais venturosos votos de renovada esperança e alegria no serviço do
bem comum e roga a Santa Maria La Antigua, de cuja Catedral vai dedicar o
altar, que abençoe e proteja o Panamá.
***
Na videomensagem que Francisco enviou à
pré-jornada mundial, ou seja, ao encontro mundial da juventude indígena de 17 a
21 de janeiro, em Soloy,
Ngäbe-Bugle, Diocese de David, no Panamá, recorda o que dissera aos voluntários após a
JMJ de Cracóvia: “Tomamos a
memória do nosso passado para construir a esperança, com coragem”. E
felicita os participantes por terem escolhido tal apelo como lema daquele
encontro, por ser a primeira vez que se realiza uma pré-jornada específica para
jovens de povos indígenas, de povos indígenas em todo o mundo – uma louvável
iniciativa da Secção Pastoral Indígena
da Conferência Episcopal do Panamá, apoiada pelo CELAM e que proporciona a
reflexão sob a égide do lema selecionado e a celebração da “fé em Jesus Cristo
a partir da riqueza milenar das próprias culturas originais”.
Assim,
exorta aqueles jovens a constituírem “uma oportunidade para responder ao
convite feito aos jovens em outros momentos” a serem “gratos pela história dos
seus povos e corajosos face aos desafios que os cercam para avançarem cheios de
esperança na construção de outro mundo possível”. Enfim, é preciso voltar
às culturas de origem, assumir as raízes, porque delas advém a força que nos
fará “crescer, florescer e dar frutos”. Além disso, é um momento propício
a mostrar “o rosto indígena” da Igreja e “afirmar o nosso empenho em proteger a
Casa Comum e colaborar na construção dum mundo mais justo e mais humano”. Por
outro lado, os temas que são objeto da reflexão juvenil incentivam à busca de
respostas, em leitura evangélica, a tantas “situações escandalosas de
marginalização, exclusão, descarte e empobrecimento a que milhões de jovens,
especialmente jovens dos povos originários, são condenados no mundo”. E a
ação sob a consciência de pertença será o antídoto conta a cultura do descarte e
do esquecimento das raízes rumo a um futuro líquido e volátil, sem base de
sustentabilidade.
E o Papa
recorda-lhes o dito dum poeta “tudo que a
árvore tem de flor, vem do que está enterrado”, para incitar aqueles jovens
à valorização das suas raízes, do seu sentido de pertença e da sua capacidade
de construir o seu futuro.
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Em suma, o
líder da Igreja Católica reconhece a posição estratégica e a função de ponte
deste pequeno país e encara-o como inspiração para convocação das diversidades
e para albergue da capacidade de sonhar; e entende que todos e cada um são
pedras vivas para a construção da nação em prol do bem-estar de todos na lógica
da conceção e prática duma política verdadeiramente humana com vista à construção
dum mundo mais justo, mais harmonioso e mais fraterno. Saúda o encontro mundial
das juventudes indígenas em antecâmara da JMJ; apela à consciência de pertença e
valorização das raízes contra a cultura do empobrecimento, da exploração e do descarte;
e propõe o regresso às raízes, o fortalecimento da capacidade da defesa comum do
planeta, a construção duma sociedade harmoniosa e mais justa e a perspetivação dum
um futuro assente em bases sustentáveis.
***
Porque
Francisco o mencionou quase no início do seu discurso, deixa-se a seguinte
informação sobre o Congresso Anfictiónico do Panamá. Idealizado por Simón Bolívar, que, desde
a Carta da Jamaica, de 1815,
desejava articular uma confederação hispano-americana, realizou-se de 22 junho
a 5 de julho de 1826, com a participação dos representantes
do México, da Federação Centro-Americana, da Grã-Colômbia (Colômbia, Venezuela,
Equador) e
do Peru (incluindo
então, a Bolívia). Enviaram observadores a Grã-Bretanha e os
Países Baixos. Porém, registou-se a ausência dos demais países independentes no
continente: Argentina, Chile, Paraguai, Uruguai, Brasil, Estados Unidos da
América e Haiti. O próprio Bolívar, que propusera o encontro, não
compareceu, por se encontrar como interventor no Peru, à frente duma força
de 6.000 homens da Colômbia, onde ficou até setembro de 1826.
Como
resultado, os delegados estabeleceram: uma confederação das repúblicas
hispânicas, com o objetivo de defesa comum, solução pacífica de conflitos e
preservação da integridade dos territórios dos estados-membros; a abolição do
tráfico de escravos africano; o contingente dos efetivos militares,
no Exército e na Marinha – uma força interamericana –, buscando um
equilíbrio entre as forças dos estados-membros e a defesa comum dos
seus povos;
e a fixação bianual das futuras reuniões do congresso a realizar em tempos de
paz ou de guerra, tendo Símón ajudado na constituição da UNASUL (União de Nações Sul-Americanas).
A
preocupação dos signatários, recém-emancipados à época, era com uma possível
intervenção da Espanha visando a recolonização, considerando as futuras
emancipações de Porto Rico e de Cuba, bem como o fortalecimento conjunto
frente a outras nações, como os EUA e o Brasil.
Devido às rivalidades entre os países e à
oposição dos Estados Unidos, que não desejavam a formação dum sistema de
estados federados na América do Sul, os acordos só foram ratificados pela
Grande Colômbia e não tiveram consequências efetivas.
Ainda hoje assim acontece: boas intenções teóricas
e timidez na aplicação prática. Falta coragem aos decisores para a fraternidade
solidária e tendencialmente universal!
2019.01.28 – Louro de Carvalho
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