sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Migrantes e refugiados: problemas velhos e novos e rotas de esperança


A Santa Sé apresentou hoje, dia 17 de janeiro, dois novos documentos do Departamento para o Serviço de Desenvolvimento Humano Integral sobre migrantes e refugiados: “Diretrizes Pastorais sobre o Tráfico de Pessoas” e “Luzes nas Ruas da Esperança” – Ensinamentos do Papa Francisco sobre migrantes, refugiados e tráfico humano”.
Diretrizes Pastorais sobre o Tráfico de Pessoas” é o resultado dum processo de consulta com as conferências episcopais, congregações e organizações religiosas católicas. Compendia uma série de orientações pastorais para compreender, reconhecer, prevenir e erradicar o tráfico de pessoas, além de proteger as vítimas e promover a reabilitação de sobreviventes. E emite um alerta para o crescente contrabando de migrantes, além dum pedido de ação a nível internacional em defesa das vítimas. O texto, direcionado às comunidades católicas e instituições religiosas, adverte ainda para a linha ténue que separa o contrabando de migrantes e o tráfico humano.
A Santa Sé defende, assim, um reforço dos programas humanitários governamentais e não-governamentais, para a erradicação do tráfico humano. Nesse sentido, pode lê-se no documento:  
Os Estados devem estabelecer ou melhorar programas e mecanismos para proteger, reabilitar e reintegrar as vítimas, atribuindo-lhes os recursos económicos apreendidos aos traficantes”.
O segundo documento é uma coleção de ensinamentos do Magistério do Papa Francisco sobre migrantes e refugiados, compilados desde o início do pontificado até ao final de 2017. Ao plano de ação vem acoplada uma versão eletrónica do programa de pesquisa, disponível no site da Santa Sé, a atualizar a cada seis meses, incorporando os novos ensinamentos pontifícios.
Participaram na conferência de imprensa de apresentação dos documentos o Dr. Paolo Ruffini, Prefeito do Dicastério para Comunicação; o Padre Fabio Baggio, CS, Subsecretário da Secção de Migrantes e Refugiados do Dicastério para o Serviço de Desenvolvimento Humano Integral; e o Padre Michael Czerny, SI, Subsecretário da sua Secção de Migrantes e Refugiados.
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Mons. Bruno-Duffé, Secretário do Dicastério para Serviço de Desenvolvimento Humano Integral, interveio numa conferência realizada no passado 8 de janeiro, no Colégio Universitário de Santa Catarina de Siena, em Pavia sobre “Migrações globais e novos nacionalismos. A Igreja, diante da xenofobia, populismo, racismo, recordando que a esperança do Reino de Deus não pode ser identificada com uma nação, mas permanece um horizonte que convida à conversão com vista à construção duma sociedade de justiça na qual é acolhido e protegido cada filho de Deus. E disse:
O acolhimento e a ajuda aos migrantes ‘desestabilizam’ os pensamentos e as referências que temos dentro de nós. Não são tanto os meios a faltar-nos. A ser tocada em nós pela presença daqueles que vêm de longe, que não falam a mesma língua, não têm a mesma religião e carecem das coisas necessárias para a sobrevivência, é a nossa representação da família, da comunidade e da humanidade.”.
Além disso, como explica, trata-se de pontos de referência de construção da nossa segurança imaginária, da nossa casa simbólica, da nossa tranquilidade espiritual. Pelo vincou:
Na verdade, os migrantes, com a sua presença, impulsionam-nos a repensar os limites que construímos com grande dificuldade, ao longo dos anos, de gerações, guerras e crises. Não pertencem à nossa família, à nossa história e nós sofremos ao ouvir a sua própria história que nos parece ainda mais distante, não se expressando necessariamente com nossa própria experiência.”.
E Dom Duffé sublinhou:
A esperança do Reino de Deus não pode ser identificada com uma nação ou com um sistema político. A realização do Reino continua a ser um horizonte que convida à conversão construindo, dia após dia, uma sociedade de justiça e de direito, na qual cada filho de Deus é acolhido, nomeado e protegido.”.
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O L’Osservatore Romano publicou vários trechos do discurso de Mons. Duffé na sua edição de 13 de janeiro.
Aí se pode ler que o orador partiu duma experiência que viveu em França, em 2015. Numa atividade de receção e apoio a migrantes que viviam na rua após o despejo pela polícia duma propriedade inutilizável e insalubre, ocupada ilegalmente, topou acomodação temporária para duas famílias num acampamento rural. Porém, o prefeito convocou-o e disse-lhe que a chegada dessas famílias “desestabilizaria” o município. Obviamente a dita desestabilização não dizia respeito a “uma questão de números, mas à solidariedade, ou seja, “ele não queria o elo de conhecimento e gratidão que unisse os habitantes da comunidade a abrir-se a essas duas famílias. Além disso, havia o problema da escolaridade das crianças, pois, como a lei obriga os municípios a fornecer educação escolar a cada menor, independentemente da situação social dos pais, era a recusa de se encarregar dessas crianças, aduzindo que pesavam no orçamento social do município. Assim se pode concluir que “a recepção e a ajuda dos migrantes ‘desestabilizam’ os pensamentos e referências que temos dentro de nós”, bem como os hábitos instalados.
Depois, a nossa memória coletiva alberga medos e suspeitas em relação ao que desconhecemos e cria incertezas quanto à capacidade de mantermos os nossos haveres e as nossas culturas face à suposta “invasão” alheia concorrente, mesmo que pacífica.     
Porém, como é acentuado recorrentemente, as migrações não são um fenómeno novo. Com efeito, “são há milhares de anos um elemento constitutivo da história humana e talvez da mesma história de vida, pois, para Duffé, trata-se dum “movimento dos seres vivos em busca da terra e da água para sobreviver”. E “as migrações contemporâneas surpreendem as sociedades sedentárias, que realizaram o seu desenvolvimento graças à concentração urbana em torno dos recursos naturais”, e “hoje, muitas famílias tornaram-se famílias ‘internacionais’ ao longo de duas gerações, ao mesmo tempo que esquecemos de que somos fundamentalmente ‘migrantes’. E esse esquecimento faz com que se vejam os migrantes como seres “fora de seu mundo” e do nosso. Assim, o medo dos migrantes, ensinando que o homem pode perder a memória da sua humanidade quando cria raízes num mundo fictício, “é um medo semelhante ao que nos lembra a fragilidade de nossa condição de mortais. 
Por outro lado, não podemos esquecer que as migrações contemporâneas levantam questões específicas do nosso tempo. Uma delas é a da alteridade, pois “o outro que atraca em nossos países ou nos atravessa as fronteiras por caminhos montanhosos nem sempre é outro fascinante e compatível com os critérios de êxito que a sociedade consumista produziu e disseminou”. Ao invés, “tem o rosto dum homem crucificado que arriscou a sua vida para tentar salvá-la e que carrega os estigmas dum ser abandonado, reduzido à nudez daquele que perdeu tudo”. Outra questão prende-se com a mistura de culturas e a fusão de origens, que induz o rejuvenescimento da população, mas em que emerge a diferença como uma desafiante caraterística ambivalente, da possibilidade de enriquecimento ou da ameaça de perda. A pari, significa o desafio ao dar e comporta o risco do receber bem e mal. E essa ambivalência produz em nós comportamentos estranhos que nos fazem desviar o olhar quando encontramos os que estão sem teto ou na rua, inventando razões para o fazer, ou nos arrancam o compromisso para olhar para eles. De facto, o olhar “é o risco pelo qual nos encontramos com o outro”. A reunião com o outro (em particular, o estrangeiro migrante) questiona e redefine de feição necessária a imagem que construímos do devir e do porvir. E a história será diferente porque teremos de a escrever junto com quem veio. É a aventura que nos leva a rotas que não conhecemos e onde pensamos que a nossa generosidade nos fará perder a nós mesmos. Porém, isto é surpreendente numa sociedade e cultura globalizadas que tendem a considerar que o planeta “como uma aldeia”, a supostamente implicar o fim de fronteiras. E o medo de habitar este mundo aberto, em que o mais distante se tornou próximo tenta-nos à retirada e à busca dum lugar fechado onde estaríamos afastados do outro. Ora, o desafio, no centro da experiência das migrações contemporâneas, é o de “viver juntos” numa terra comum, mas que não pertence a ninguém em exclusivo.
No horizonte do problema, cruzam-se a dimensão psicológica, a económica, apolítica, a ética e a espiritual, incluindo o impacto da experiência das relações humanas em si mesmas, na tensão entre proximidade e solidariedade, ou seja, tentarmo-nos a primeiro a lidar com os quem está perto e só depois lidar com a miséria de que vem de longe. Ora, temos de saber que as sociedades se constroem e renovam em hospitalidade mútua, sendo o compartilhar um valor e nunca um enfraquecimento.
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Quanto à xenofobia, populismo e racismo, Duffé vê nos discursos que os sustentam, como nas teorias que supõem uma hierarquia nas culturas e nos grupos humanos (elevando o conceito de ‘raça’), a forma de justificar a exclusão do outro e fechar a porta a qualquer reunião.
A xenofobia é claramente o medo do estrangeiro. Efetivamente a vinda de alguém originário de outro país ou de outro estilo inquieta, por significar subjetivamente “perigo” ou “intrusão”, e induz uma atitude defensiva para proteger o que acreditamos que nos pertence.
A palavra ‘populismo’ pode ter aceções diferentes. Se a entendermos como ‘expressão popular’, daí não vem mal ao mundo. Mas, se a alçarmos a discurso político que realce o medo coletivo para afirmar um poder com solução para todos os problemas, torna-se altamente perigosa. Com efeito, propala a distinção entre cidadãos bons e maus, os que têm direitos e os que não podem tê-los; e, para desviar o medo e aproveitar as aspirações do povo, advoga o benefício de um poder que busca o controlo social e rejeita iniciativas concretas de solidariedade.
E o racismo – diz Duffé – resulta duma “elaboração teórica que introduz uma hierarquia fictícia e imaginária na relação entre indivíduos e entre comunidades humanas”. Nesta ótica, havia seres humanos com vocação à liderança e outros fadados à escravidão. Esta suposta predestinação conduz ao fechamento e ao ódio, pois, a olhos racistas, a cor da pele, a história peculiar, a pertença a uma comunidade étnica ou religiosa “decidem o que temos de fazer”, não sendo possível alterar essa classificação – dita natural – que é resultado duma ideologia justificativa de “uma história de guerra e colonialismo”.
Mas o populismo, apresentado por quem o promove como resposta às preocupações do povo, levanta questões, como: quem são as pessoas de que se fala, o que pensam as pessoas ser a referência dos discursos populistas e quem é o povo?
Para responder é de referir que os elementos constitutivos dum povo “são os eventos fundadores e libertadores, os encontros e alianças, uma memória e um espírito compartilhados”. Não obstante, nesse povo há necessariamente pessoas diferentes, pois “não é apenas uma identidade ancestral que define o povo, mas a sua história” toda, com suas reuniões, descobertas e esperanças. E, nela, o estrangeiro, o migrante, o transeunte, têm a função de abertura e de revelação – com uma mensagem que rompe a solidão e faz descobrir o que ainda não sabemos.
Se as pessoas são definidas como em comunidade histórica e como em experiência de uma esperança compartilhada – um passado comum e um futuro que procura ser escrito –, “o pensamento de um povo não pode ser fixo” ou “definido para sempre”, mas pensamento em processo e na paciência do diálogo, em termos de encontro e complementaridade. E isto “está no centro do pensamento cristão do povo de Deus”, na linha do que diz o Apóstolo Paulo, sendo cada membro comparável a um membro do corpo humano, de modo que “nenhum membro do corpo pode dizer para outro: eu não preciso de ti” (vd 1Cor 12,12). Assim, as “pessoas” estão “a caminho”, graças a essa hospitalidade mútua pela qual nos damos as boas-vindas.
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Duffé abordou também a problemática da missão da Igreja diante do(s) nacionalismo(s).
É pertinente assumir a aceitação dos pequenos e pobres e a abertura ao outro e à universalidade como o centro da missão de Cristo confiada aos seus discípulos, tal como é pertinente lembrar que a Igreja compartilha, em todos os tempos, “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje” (cf Gaudium et Spes, 1). Por isso, a missão da Igreja começa com a escuta e consideração das preocupações e aspirações humanas; e, enviada ao coração desta humanidade (onde transeuntes e migrantes se encontram) oferece e recorda a alegria da fraternidade. 
Também aqui importa invocar os princípios da DSI (Doutrina Social da Igreja), que abrem espaço ao encontro: dignidade inalienável da pessoa humana, materializada no respeito pelos direitos fundamentais de o todo ser vivo; subsidiariedade ou partilha de responsabilidades; solidariedade ou reconhecimento mútuo; bem comum ou bem da comunidade; escolha primária de proximidade dos mais pobres, os amados de Deus. E esses princípios (éticos e espirituais) postulam as seguintes convicções, inspiradas na fé cristã: a pessoa carrega em si o sinal do amor de Deus; a responsabilidade exerce-se em reciprocidade e complementaridade; e a comunidade cresce na humanidade e espera quando os mais frágeis são amados, ao modo de Deus, isto é incondicionalmente.
A Igreja, comunidade de pessoas batizadas, é construída como comunhão entre os membros duma coletividade nacional; constitui-se no elo entre mulheres e homens que participam no desenvolvimento duma unidade nacional; e participa na construção de laços de reconhecimento entre todos os cidadãos duma nação. A pari, lembra, a partir do ensinamento e da ação de Cristo, que o estrangeiro é convidado a participar da vida da comunidade e beneficia do legado da esperança – o que vale para o samaritano (com quem os judeus não falam) e para a mulher siro-fenícia que Jesus mantém à distância antes de reconhecer a sua fé, mas com quem se regozija ao vê-la tornar-se membro da comunidade de crentes. Ora esta evocação da pregação da atitude de Cristo compagina a abertura do espírito, que não justifica o nacionalismo ou a segregação que mantêm fora da comunidade quem pede para entrar. Obviamente a distinção entre nação política e Igreja evidencia-se como componente decisiva da teologia política da Igreja Católica, já que a esperança do Reino de Deus não se identifica com uma nação ou com um sistema político. A realização do Reino é o horizonte que insta à conversão a uma sociedade de justiça e de direito, em que é bem-vindo, nomeado e protegido cada filho de Deus.
E o orador termina com a evocação da mensagem papal para o LII Dia Mundial da Paz. Considerando que este texto do Magistério papal sobre a paz instou à renúncia ao medo e à ameaça, começou por lembrar a virtualidade da assunção da boa política e apontar a dificuldade em a levar à prática:
A autêntica vida política, baseada na lei e no diálogo justo entre os sujeitos, é renovada com a convicção de que toda a mulher, todo o homem e toda a geração contêm em si uma promessa que pode libertar novas possibilidades relacionais, intelectuais, culturais e espirituais. Tal confiança nunca é fácil de viver porque os relacionamentos humanos são complexos. Em particular, vivemos nestes tempos num clima de desconfiança que está enraizado no medo do outro ou do estranho, na ansiedade de perder suas vantagens, e infelizmente também se manifesta no nível político, através de atitudes de fechamento ou nacionalismo que questionam a fraternidade de que o nosso mundo globalizado tanto precisa.”.
Depois, apontou a premência da aflição das pessoas vulneráveis, do discurso político acusatório e do valor da paz e dos seus pressupostos:
O terror das pessoas mais vulneráveis ​​contribui para o exílio de populações inteiras na busca de uma terra de paz. Discursos políticos que tendem a acusar migrantes de todos os males e privar os pobres de esperança não são sustentáveis. Por outro lado, deve-se ressaltar que a paz se baseia no respeito de toda pessoa, qualquer que seja a sua história, pelo respeito da lei e do bem comum, pela criação que nos foi confiada e pela riqueza moral transmitida pelas gerações passadas.”. (cf Mensagem do Papa Francisco para o LII Dia Mundial da Paz, §§ 5-6).
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Enfim, a Igreja e, nela, os cristãos não podem deixar de encarar a migração voluntária como fenómeno legítimo, mas têm de encarar as causas e as consequências das migrações globais contemporâneas e contribuir ativamente para combater as suas causas pecaminosas e os fenómenos nefastos que as acompanham, designadamente o contrabando, a exploração e o tráfico de pessoas, bem como as falsas soluções para os problemas dos povos, como a xenofobia, os populismos e o racismo – nas suas diversas formas –, mas não se coibindo de chamar as coisas pelos seus nomes, com receio de acusações indevidas, nem se pondo a designar com estes nomes tudo e todos, a criar problemas onde eles não existam.
2019.01.17 – Louro de Carvalho

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