É o caso de
um juiz desembargador do Tribunal da Relação do Porto (TRP) sobre quem, pelo alarme espoletado por justificações
inseridas num acórdão, recaiu a pena de advertência registada após o respetivo
processo disciplinar que lhe moveu o CSM (Conselho Superior da Magistratura). Esse juiz advertido por ter insultado vítimas de
violência doméstica vituperando, em novo acórdão, “maniqueísmos” e “ideias
preconcebidas” na justiça, garante que agora “qualquer banal discussão é considerada
violência doméstica”.
***
O par de
desembargadores do TRP (só se fala de um, mas o acórdão é subscrito por dois) retirou, em outubro passado, a pulseira eletrónica a
um homem que, entre outras agressões, rebentou a soco um tímpano à mulher – medida
acessória que o tribunal de 1.ª instância tinha aplicado para evitar que o indivíduo
se aproximasse da mulher.
O juiz,
relator do polémico acórdão sobre “o apedrejamento de mulheres adúlteras”, voltou
a pronunciar-se sobre um “crime de violência doméstica” reduzindo e suavizando
a pena do condenado em 1.ª instância. Para tanto, aduz que os juízes não pediram autorização ao próprio
para lhe aplicar a predita medida, nem justificaram por que razão era
imprescindível recorrer a este meio de controlo à distância para proteger a
mulher, pelo que julga excessiva a pena imposta ao recorrente, devendo
ser “reduzida para os seus limites mínimos atenta a factualidade dada como
provada”. Porém, o desembargador – a quem foi aplicada a sanção
de advertência registada, por causa do acórdão em que minimizou um caso de
violência doméstica pelo facto de a mulher agredida ter alegadamente cometido
adultério – não está sozinho: há mais decisões no mesmo sentido de tribunais
superiores.
Agora, a vítima “vive escondida, aterrorizada” e teve de trocar de casa”, como explicou ao Público
o seu advogado oficioso, já que o agressor, um eletricista, continua a proferir
ameaças de morte contra a ex-esposa já depois de ter sido condenado, por intermédio
do filho do casal, já adulto, e de um irmão da vítima. E diz o referido
advogado:
“Quando os
técnicos dos serviços prisionais lhe bateram à porta para lhe retirarem a
pulseira que ela também usava para prevenir as autoridades em caso de
aproximação do ex-marido ficou em choque. Disse-me: ‘Estou outra vez à mercê
dele’.”.
O casal
morava num bairro camarário de São Mamede de Infesta e o agressor nunca se
coibiu de maltratar a companheira.
No verão passado, foi condenado pelo Tribunal de Matosinhos a 3
anos de pena suspensa por violência doméstica agravada, a pagar 2500 euros à
vítima por danos morais e a frequentar um programa de controlo de agressores. E ficou proibido de se aproximar da
ex-esposa ou de a contactar de qualquer forma, pelo que a fiscalização seria
feita por meios técnicos de controlo à distância, dispensando-se o
consentimento do arguido para o efeito.
O desembargador entende que a pena é severa, “atenta a factualidade
considerada”, que o tribunal não fundamentou, na ótica da defesa, “a culpa do
arguido”, descurou “a determinação das exigências de prevenção, nomeadamente, as exigências de
prevenção especial”, estando a ofendida e o arguido separados e “a refazer as
suas vidas”. E adianta:
“Tal como resulta da douta sentença
proferida, o arguido não mais contactou com a ofendida, até mesmo antes de ter
sido aplicadas as medidas de coação, apresentou uma postura correta no
Tribunal, não registando o arguido antecedentes criminais”.
Ao Público declarou que o regime
de proteção das vítimas deve ser melhorado. Com efeito, julga ser
consensual neste momento que “o regime jurídico de prevenção da violência
doméstica e de proteção das suas vítimas pode (deve) ser
melhorado”, não importando “as proclamações demagógicas que se vão sucedendo” sobre
o problema. E, sobre o caso em
concreto, recordou que a aplicação de pulseira eletrónica – como medida de
coação ou de fiscalização do cumprimento de pena – é um instrumento de cariz intrusivo, “que afeta a liberdade e a
privacidade” do condenado e da vítima, bem como “das pessoas que com eles têm
uma relação de proximidade”.
Se, “em abstrato ou em tese, pode dizer-se que a
fiscalização do cumprimento da pena acessória de proibição de contacto por
meios de controlo à distância é desejada pela vítima porque, assim, sentir-se-á
mais segura”, sustenta que tem
de ser vista caso a caso “a fundamentação do juízo de imprescindibilidade”.
***
Fernanda
Câncio, no DN de hoje, 26 de fevereiro, pormenoriza o caso, o que sigo em parte, mas
abstendo-me de nomear.
A vítima de
49 anos viveu com o agressor desde há 34 anos, quando nasceu o filho de ambos e
casaram há cerca de 25. E, cerca
de 6 anos, o agressor terá começado a insultar reiteradamente a vítima com
termos obscenos, a acusá-la de ter amantes, a agredi-la (chegou a perfurar-lhe um tímpano) e a ameaça-la de morte várias vezes, numa das quais com um objeto que
parecia uma pistola, e noutra com uma catana. Foi após o
episódio da catana, em julho de 2017, em que disse que a matava e ao filho, que
ela decidiu fugir e fazer queixa. Acima de tudo tem medo
A mulher,
descrita pelo advogado oficioso como “uma pessoa muito simples e humilde”,
nunca tinha ido à polícia e não tinha recorrido ao hospital em resultado das
agressões. E, apesar de, desde a fuga (abandonou a casa de família e o
café, que explorava e com o fruto de cuja exploração se sustentava e ao marido) estar, por medo do que este lhe possa fazer,
escondida do agora ex-marido, quando foi ouvida no tribunal que o condenou, em
junho de 2018, por violência doméstica agravada, a três anos de prisão com pena
suspensa, repetiu várias vezes tratar-se de “um bom homem”, mas que “se
descontrolava completamente com o álcool” e que era diferente quando não bebia.
O agressor aproveita
essas considerações no recurso que interpôs, inconformado com a extensão da
pena e da proibição no horizonte temporal equivalente, de contactos com a
vítima e de imposição de vigilância eletrónica. E a 1.ª secção criminal do TRP,
pela pena de Neto de Moura e Luís Coimbra, sendo o primeiro, que ficou
conhecido como “o do acórdão da mulher adúltera”, o relator da decisão sobre o
caso, mandou retirar a vigilância eletrónica.
O magistrado
que julgou em primeira instância fundamentara, no “receio intenso” que a
ofendida “demonstrava sentir pelo arguido”, a decisão da proibição de contactos
(telefónicos,
presenciais, por redes sociais ou epistolares) por três anos (determinando por igual tempo a fiscalização por meios
de controlo à distância). E fundamentara
em parte a decisão de suspender a pena no seguinte:
“Entende-se que ao arguido, a simples ameaça de prisão, conjuntamente
com as penas acessórias que se irão decretar, irá obstar a que repita
comportamentos semelhantes e irá impeli-lo a não voltar a maltratar terceiros,
designadamente em relacionamentos”.
Por outro
lado, argumentava que o arguido estava sujeito já a medidas de coação antes do
julgamento, nomeadamente as de proibição de contacto e vigilância eletrónica (VE), e deixara de “causar qualquer problema”. Porém os dois juízes do TRP decidiram em outubro de 2018 dar provimento
parcial ao recurso por considerarem não existir “elevada carga de ilicitude”,
escudados na doutrina adotada pelos constitucionalistas Vital Moreira e Gomes
Canotilho, sobre os “efeitos estigmatizantes, impossibilitadores da readaptação
social do delinquente”, que possam, “sem se atender aos princípios da culpa, da
necessidade e da jurisdicionalidade” decretar “a morte civil, profissional ou
política do cidadão”. Por conseguinte, reduzem a pena de três para dois anos e
oito meses (suspensa), a duração
da proibição de contactos de três para um ano e revogam a vigilância
eletrónica, considerando que o arguido não dera autorização para a mesma, nem o
decisor fundamentou tal necessidade.
***
A penalista
Inês Ferreira Leite, da direção da associação feminista Capazes (que fez uma participação ao CSM sobre o juiz Neto de
Moura) e professora de Direito Penal da
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, discorda e, a meu ver, com toda
a razão:
“Há
fundamentação na sentença da primeira instância. Aliás a Relação reconhece que
há fundamentação suficiente, mas não para tanto tempo de vigilância eletrónica,
não para três anos. E, ao analisar em detalhe os fundamentos possíveis para se
aplicar a vigilância eletrónica, admite que a mesma poderia até ter fundamento
para um ano, mas decide, em vez de a aplicar por um ano, revogá-la. Ou seja, dá
muita volta para chegar aonde parece claro que o coletivo da Relação queria
chegar desde o início – anular a VE.”.
A ilustre jurista
frisa que, em caso de ausência de
fundamentação, a Relação poderia fazer uma de duas coisas: substituir-se à 1.ª
instância na fundamentação caso tivesse os dados suficientes; ou fazer baixar o
processo de novo à 1.ª instância para nova fundamentação e decidir em recurso (se houvesse novo recurso). E, reputando a decisão de “tecnicamente incorreta”, sublinha
que a situação da vítima nunca é abordada no acórdão e discorre:
“Esta mulher vivia a sua vida descansada na sua casa e café com o seu
filho e netos. E está escondida até hoje. O agressor é condenado mas ela
continua totalmente desprotegida e condicionada. É um caso claro em que a
vítima é punida pelo crime e pela forma como o Estado resolve. E o agressor,
nem sequer pode ser incomodado com um ano de pulseira eletrónica. Pergunto:
quem é que foi punido/a por este crime? Eu só vejo uma vítima, mas também só
vejo uma reclusa e uma pessoa punida neste caso: são uma e a mesma pessoa, a
mulher. Não há ninguém no sistema judicial que pense no que se pode fazer para
proteger esta mulher?”.
E o advogado
oficioso, a quem a vítima telefonou, incrédula e em pânico, pergunta: “Para
que é que isto tudo serviu?”
Como salienta F. Câncio, não é a 1.ª vez que o desembargador demonstra total
desconsideração pelo sofrimento de vítimas. Contudo, apesar do suspeitado adultério
da queixosa, o termo não consta na decisão em que o badalado juiz e o colega
Luís Coimbra atenderam em parte aos argumentos do arguido. Provavelmente, em
virtude de estar, em outubro, sob processo disciplinar, o relator teceu considerações
interpretáveis como um mea culpa, ao escrever:
“Na apreciação da prova, o juiz deve, antes de mais, evitar o
convencimento apriorístico. O juiz não pode deixar-se fascinar por uma tese,
uma versão, deve evitar ideias preconcebidas que levam a visões lacunares,
unilaterais ou distorcidas dos acontecimentos.”.
Porém, a contrario, anotou que a 1.ª instância conferiu
“irrestrito crédito” à assistente e cujas declarações em audiência foram, praticamente,
o único meio de prova em que assentou a convicção para dar como provados os
factos ‘centrais’ do processo. Pois, na sentença, lê-se:
“A
assistente foi totalmente credível pela forma sentida como prestou as
declarações, sendo declarações sentidas e amarguradas nas palavras. (...) De
salientar a postura corporal da própria assistente, em sofrimento por ter de
relatar os factos que, visivelmente, tanto a magoavam (corpo defensivo e
retraído na cadeira). (...) O Tribunal não tem nenhuma dúvida de que os factos
ocorreram mesmo.”.
E adita que o “filho diz recordar-se de ver a mãe marcada no corpo”
e que “a nora conta que a assistente lhe relatou episódios e os escondia do
filho para não ser acusada de os tentar afastar.
Mas, para os
juízes da Relação, essas duas testemunhas “nada presenciaram”. E, apesar de
assegurarem que ter o colega de Matosinhos usado as declarações da queixosa
como único meio de prova “não é, por si só, merecedor de qualquer reparo ou
crítica”, e que “não é essa visão maniqueísta que se surpreende na decisão
recorrida”, fazem, de seguida, algumas observações genéricas como as que
seguem:
“Se, durante muito tempo e até há uns anos, a vítima de violência
doméstica sentia que o mais provável [era] que a sua denúncia acabasse em nada
por não ter quem atestasse as agressões e às suas declarações não era dado o devido
relevo probatório, a verdade é que, nos últimos tempos, têm-se acentuado os
sinais de uma tendência de sentido contrário, em que a mais banal discussão ou
desavença entre marido/companheiro/ namorado e mulher/companheira/namorada é
logo considerada violência doméstica e o suposto agressor (geralmente, o marido
ou companheiro) é diabolizado e nenhum crédito pode ser-lhe reconhecido.”.
***
Ora,
valha-lhes um burro aos coices. Como é que os ilustres dizem coisas destas num
texto que vincula a República? E não referem que o arguido, que a sentença de
1.ª instância anota que se remeteu ao silêncio, não refutou os factos imputados
e não apresentam qualquer referência factual para a opinião (opinião
pessoal) que emitem sobre o modo como o
sistema de justiça lida com a violência doméstica, sendo certo que os dados
existentes apontam no sentido contrário.
De facto,
são recorrentes os casos de violência doméstica e até de homicídio nesse
contexto (como atestam os relatórios da Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio
em Violência Doméstica) em que se
constata que o sistema judicial desvalorizou a versão das vítimas, a violência
de que foram alvo e o nível de risco que corriam e não pugnou pela sua
proteção, chegando mesmo a insultá-las em decisões judiciais. Até a frequência
com que é usado o instituto da suspensão da pena nos casos de violência
doméstica (e outros crimes em que mulheres são vítimas) é considerada um sinal da desvalorização conferida pelo nosso sistema judicial
a esse crime, quando a linha sustentada pelo TEDH (Tribunal
Europeu dos Direitos Humanos) é outra à luz dos valores da Convenção Europeia dos
direitos humanos e da jurisprudência do tribunal de Estrasburgo, que Portugal
ratificou.
Os magistrados
do TR até concordam com o TEDH, mas não enquadram o caso neste horizonte, pois
esquecem ou negam a perfuração do tímpano
esquerdo, os edemas, os hematomas, as escoriações, a catana e a arma de fogo. Só
veem as ofensas verbais e as ameaças. E violência psíquica, nem pensar. Até consideram
o arguido um “cidadão fiel ao Direito”.
Embora reconheçam
que, “várias vezes, ameaçada de morte pelo arguido, é compreensível que a
ofendida se sinta, ainda, intimidada e insegura, com receio de que ele concretize
as ameaças e a proibição de contactos pode ajudá-la a superar esse medo”, contudo
prosseguem considerando:
“O arguido está, agora, divorciado da
assistente e a tendência natural será que cada um siga o seu caminho, refaça a
sua vida e não voltem a contactar um com o outro, pois não há motivo para tanto
(o único filho de ambos há muito que se autonomizou).”.
O advogado da queixosa garante que o ex-marido lhe fez ameaças veladas após
a condenação, por via de outras pessoas, tendo mesmo ligado repetidamente para
uma padaria em que ela trabalhou e onde foi vista por vizinhos dele, o que a
levou a abandonar esse emprego. E acrescenta que “não voltou a contactá-la
diretamente porque não sabe onde ela vive”.
Por sua vez,
a mencionada jurista Inês Ferreira Leite vê, na decisão do TRP, uma
desvalorização do risco real para a vítima e para outras mulheres e exclama:
“Pergunto
como é possível qualificar como um homem fiel ao Direito alguém que durante
pelo menos cinco anos tem o comportamento descrito no acórdão. Pergunto se
podemos qualificar como um homem fiel ao Direito um homem que inventa amantes
da mulher e ameaça matá-los, ameaça matar a mulher, o filho. É socialmente normal,
insultar, ameaçar de morte?”.
A este
respeito, aponta:
“[Essa] é a tendência da nossa jurisprudência:
independentemente da gravidade dos factos, da duração das agressões, a
tendência é a de concluir que, apesar de tudo (e fingindo que as agressões não
existiram) o arguido até é um bom homem: é um bom amigo, um bom vizinho, um bom
colega (e, às vezes, até um bom pai, o que não é possível, este homem não foi,
nem é, um bom pai). Sem que a jurisprudência reflita sobre a real relevância
disto.”.
E conclui que
há incapacidade em perceber que estes homens só são agressores em casa, para as
mulheres, os filhos, o que não retira nem gravidade nem necessidade de
intervenção no caso.
Condenado a
pagar a indemnização de 2500 euros à ex-esposa, o homem fiel ao Direito ainda não o fez e é duvidoso que o faça,
pois vive do RSI, como a queixosa, tendo dito ao tribunal que não consegue
arranjar trabalho devido à idade.
A decisão do
TRP não é passível de recurso. A única via judicial que resta é uma queixa ao
TEDH, que já condenou vários Estados europeus em casos de violência doméstica,
por falha do dever de proteção. Em alguns desses casos o tribunal invocou, como
o juiz Paulo Pinto de Albuquerque preconiza, a violação do artigo 3.º da
Convenção, fazendo equivaler a violência doméstica a tortura, tratamento
desumanos e degradantes.
O prazo para
apresentação da queixa, que ainda não se esgotou, é de 6 meses, mas o efeito
útil duma decisão, ainda que revogasse o acórdão, levaria demasiado tempo. E
nem a possibilidade duma indemnização deverá convencer a vítima a avançar,
porque tem medo.
***
Enfim, se é
a lei que está mal, que a mudem (Para que serve o Parlamento?); se é a jurisprudência, que haja mais e melhor
estudo; e, se é a justiça que está mal, que se fustigue, para que se confie
nela. Mas Deus nos livre de certos juízes que exaram sentenças e acórdãos como
se fossem expressão de opinião pessoal e não como produtos da República!
2019.02.26 – Louro de Carvalho
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