Marcelo Rebelo de Sousa lançou uma pedrada no
charco para esclarecimento do que se passa no atinente à greve dos enfermeiros
e ao seu fundo de financiamento colaborativo. E penso que é pena ter sido o
Presidente a fazê-lo (porque mais uma vez se
adiantou em matéria que não é da esfera do Chefe de Estado) ou ter de ser ele a fazê-lo,
dado o silêncio dos peritos independentes ou da Direção-Geral de Saúde ou da
PGR (esta deu hoje parecer através do seu conselho consultivo).
Sabe-se agora que o fundo de greve resulta duma
candidatura à PPL apresentada pelo Movimento
Greve Cirúrgica, quando isso deveria ter surgido de verbas recolhidas no
âmbito de quem tem competências para decretar greves, os sindicatos. É o que
sucede nalguns países em que os grevistas se aproximam dos serviços, sem
invadirem as instalações, e passa o controlo sindical para avaliar as presenças
e informar o futuro processamento da remuneração.
***
O Chefe de Estado, na estreia do
programa “Circulatura do Quadrado” na
TVI24, frisou que “um movimento cívico
não pode declarar greve”, não se podendo substituir aos sindicatos, e disse
que “é intolerável” enfermeiros não cumprirem a requisição civil, que é
inteiramente justificada, caso se
prove que os serviços mínimos não estão a ser cumpridos.
No
entanto, os sindicatos dos enfermeiros não baixaram os braços e contaram com o
advogado Garcia Pereira para os representar na questão da requisição civil. Em
declarações à Lusa, o especialista em
direito do trabalho afirmou que a requisição civil “é um procedimento abusivo desde o início, numa circunstância em que uma
operação de manipulação da opinião pública originou que se deixasse de falar do
que levou os enfermeiros a encetarem esta forma de luta”.
O
Chefe de Estado vincou, no aludido programa televisivo, que não há dúvidas e
que “os enfermeiros têm causas que são justas e que defendem pelo exercício à
greve”. Porém, considerando que “a democracia é feita de conteúdo e de
processo”, vincou:
“Não basta defender boas causas.
É preciso que o processo utilizado seja política e constitucionalmente,
legalmente, condizente com o que se defende.”.
Sublinhando
que, à partida, não ia “discutir a substância do que está em causa”, recordou
que, “em termos de processo”, houve “duas questões” merecedoras de atenção”.
Uma
delas é o crowdfunding”. Está em causa uma plataforma de financiamento colaborativo
usada pelos enfermeiros para o crowdfunding da
sua segunda greve, em que foram angariados mais de 423.000 euros. Na primeira
greve, entre 22 de novembro e o final de dezembro, tinham angariado mais de
360.000 euros. E o PS anunciou que vai iniciar um processo de diálogo com
outras forças políticas para a apresentação de um projeto que proíba
contribuições monetárias anónimas no crowdfunding.
O crowdfunding é legalmente previsto para alguém
reunir fundos para desenvolver uma certa atividade, mas não pode legalmente “substituir-se
a um sindicato” – disse Marcelo. Ora, neste caso, quem promove o crowdfunding é um movimento cívico que não pode
declarar greve. E “quem pode declarar a greve – os sindicatos – deve fazê-lo
com fundos dos seus sindicatos. E o Presidente da República questionou “como se
pode fazer isso se o movimento e os donativos não são identificados.
Depois,
Marcelo lembrou outra questão: os sindicatos não podem pensar
apenas nos seus direitos, mas também
nos direitos dos utentes, “como o direito à vida e à
saúde”.
Para o
Presidente da República, um dos maiores problemas – e deveras preocupante – da
sociedade portuguesa, neste momento, são “os fenómenos inorgânicos
no plano sindical, laboral e a dificuldade de enquadramento pelas estruturas
clássicas”. E “a maioria das greves foi declarada por sindicatos que não estão
integrados nem na CGTP nem na UGT”, frisou de modo ilustrativo.
E sublinhou:
“Preocupam-me que seja anunciada uma
requisição civil e haver uma resposta: ‘Se é assim não vamos trabalhar’. É
muito mau o Governo tomar essa posição porque há movimentos inorgânicos.”.
A
presidente da Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros, Lúcia Leite,
disse à Lusa que os enfermeiros se
sentem “atacados nos seus direitos
enquanto trabalhadores”, pelo que alertou para o risco de surgirem novas
formas de luta “mais incontroláveis”, embora não suportadas pelos
sindicatos. E admitiu que os profissionais se organizem no
sentido de darem faltas injustificadas ao trabalho até ao limite legal,
dado o Código do Trabalho prever que qualquer trabalhador possa faltar cinco
dias seguidos ou dez interpolados. Por seu turno, o Movimento Greve Cirúrgica, que organizou a recolha de fundos para
as duas paralisações em blocos operatórios, admitiu avançar com outras formas
de protesto, como abandono de serviço ou greves de zelo,
e apelou a que os enfermeiros deixem de
realizar as cirurgias adicionais para recuperação das listas de espera,
que não são obrigatórias, sendo pagas à parte e feitas fora do horário normal.
Tudo isto é sinal de que o controlo da situação está a escapar aos sindicatos
ditos tradicionais, podendo configurar também utilização abusiva de algumas
normas das leis do trabalho. A isto Marcelo atalhou sustentando que tanto os sindicatos como os partidos “têm de se reajustar”. E
concluiu:
“É
intolerável que se pense que perante uma decisão legal, a reação adequada é de
que não cumprimos e não acatamos. Aí o Presidente da República é muito claro:
muito afeto, mas afeto com autoridade.”.
***
Neste contexto, a PPL não quer “alimentar a fogueira” do braço de ferro entre enfermeiros e Governo.
Por isso, analisará ao detalhe eventuais campanhas de financiamento a greves que
surjam, sobretudo se não for totalmente claro que o método de angariação
de fundos é legítimo para tal fim.
Assim, futuras iniciativas de crowdfunding para
financiamento de greves estarão dependentes do que vier a ser concluído nas
investigações e pareceres pedidos no âmbito das greves cirúrgicas dos
enfermeiros, pelo menos na plataforma portuguesa PPL Crowdfunding.
Na primeira resposta à polémica por parte dos
responsáveis da plataforma através da
qual “três ou quatro enfermeiros” angariaram mais de 700 mil euros para pagar
salários dos enfermeiros grevistas, Yoann Nesme, diretor executivo, e Pedro
Domingos, diretor tecnológico, ambos cofundadores da PPL em 2011, admitiram ao
ECO ter acesso aos dados de todos os financiadores, mesmo dos anónimos, que
foram pedidos à empresa pela ASAE, que está a investigar o recurso a
esta forma de financiamento por parte dos enfermeiros, mas ainda não estavam na
posse da autoridade, porque a empresa não estava totalmente certa sobre se essa
cedência é legal à luz das regras europeias.
***
A PPL Crowdfunding é uma comunidade de financiamento e para ajuda a outras
pessoas na realização dos seus projetos. Começou em 2011 com quatro fundadores:
um professor na Católica e três alunos do MBA, pois, não havendo nenhuma
solução destas em Portugal, a ideia era tentar replicar e adaptar à realidade
portuguesa um Kickstarter ou um Indiegogo, ao nível de meios de
pagamento, idioma, e de algum modo de funcionamento ligeiramente diferente. Está a atingir os quatro milhões de
euros e financiou quase mil projetos.
Os promotores propõem as campanhas submetendo um formulário com a
proposta e, da parte da PPL, o acompanhamento e as recomendações para melhoria da
campanha. E a PPL tem a última
palavra, mas sem “fazer um filtro muito grande,” pois quer “que seja o público,
através dos apoios, a decidir” quais os projetos que merecem ou não ser
financiados. Há, assim uma filtragem elementar, para garantir a qualidade
mínima, mas é a crowd (multidão) a decidir, o mais democraticamente possível.
Os promotores fornecem
informações pessoais várias, previstas na lei do financiamento colaborativo.
Mas só no fim do prazo é que fornecem o IBAN para se fazer
a transferência do montante, menos a comissão da PPL, que é de 7,5% + IVA. E, quanto ao anonimato, diz a PPL:
“Anónimo é um apoiante que decidiu não ter o
seu nome público na lista de apoiantes. Obviamente que a plataforma
sabe quem são, da mesma forma que sabe dos outros. Mas essa informação também
não é passada ao promotor. O promotor vai receber uma listagem de todos os
apoiantes, do respetivo montante, contactos, exceto os dos anónimos.”.
A PPL financia qualquer tipo de campanhas sociais,
mesmo políticas, sendo que, para estas, se implementam os mecanismos necessários para obedecer à lei do financiamento
dos partidos, por exemplo, com a identificação de todos os apoiantes e com o
meio de pagamento exclusivamente por transferência bancária. E está aberta às
regulações que o poder político determinar.
Não lhe cabendo fazer juízo sobre a legitimidade das
greves, mesmo assim, anota as dúvidas pela consecutividade de duas campanhas congéneres.
Por outro lado, tendo analisado o potencial
público que apoia estas campanhas, verificava que, no caso, se tratava de um
universo de praticamente 100 mil enfermeiros muito motivados.
Como é do conhecimento público, a PPL recebeu o pedido da ASAE da lista de financiadores. E a empresa solicitou
à CNPD (Comissão Nacional de Proteção de Dados) que desse um parecer,
parecer só chegou hoje.
Sobre o pedido da ASAE (Autoridade de Segurança Alimentar e Económica), a PPL diz que não abre
qualquer tipo de precedente, pois há o regulamento de proteção de dados, a CNPD
que controla isso, e um fiscalizador que solicita informações e que apresentou, obviamente, fundamentos para o que está a solicitar.
Efetivamente a ASAE “pediu informação sobre algumas campanhas mais
significativas” (quatro) em termos de
montante angariado, entre as quais se incluem as duas greves dos enfermeiros, e
“informações sobre os apoiantes e apoios, cada apoio, quem é que foi o
apoiante e qual é que foi o meio de pagamento utilizado”.
E, porque a CNPD considera que a ASAE pode
aceder aos dados de quem contribuiu para o financiamento das greves dos
enfermeiros em blocos operatórios, a APPL
Crowdfunding já
lhe enviou os dados de todas as pessoas que
fizeram donativos nas duas campanhas que serviram para financiar as greves
cirúrgicas, incluindo os anónimos.
A PPL diz que os apoiantes foram, maioritariamente, os próprios enfermeiros, não só a
título individual, mas também através
de “vaquinhas” realizadas em hospitais e centros hospitalares, para se reunirem
mais eficazmente alguns donativos, sobretudo de pessoas que não tinham ou tempo
ou experiência em fazer apoios através da plataforma.
Nunca a PPL terá falado com a bastonária da
Ordem, mas apenas com o promotor.
***
Como foi referido, o Sindepor (Sindicato
Democrático dos Enfermeiros)
interpôs junto do STA (Supremo Tribunal Administrativo) a intimação na sequência da
requisição civil decretada na semana passada pelo Governo como resposta à
paralisação dos enfermeiros nos blocos operatórios de 4 dos 10 hospitais onde
até ao final do mês decorre a “greve cirúrgica”. Tal petição não suspende a requisição
civil, mas, ao invés da providência cautelar, inibe o Governo de invocar o
interesse público. Como a petição de intimação apresentada pelo Sindepor apresentava
deficiências, o STA, notificou a entidade peticionária, a qual apresentou uma
segunda versão. Assim, o Governo foi
citado na tarde deste dia 15 para responder à intimação, o que, no entender do
Ministério da Saúde, “significa apenas que o Tribunal a irá apreciar”. E o
gabinete de Marta Temido adianta que irá ser apresentada defesa nos próximos
cinco dias, “com as alegações e os factos comprovativos do incumprimento dos
serviços mínimos estabelecidos pelo Tribunal Arbitral”. E explica:
“O Ministério da Saúde, em articulação com
os conselhos de administração, mantém o acompanhamento da situação dos hospitais
abrangidos pela greve, para verificar o cumprimento de serviços mínimos”.
Contudo, Garcia Pereira, advogado do Sindepor neste caso,
considerou que se tratou de uma decisão “muito importante”, porque o tribunal
reconheceu a intimação como “o meio mais adequado” para “assegurar a tutela
célere e efetiva do direito fundamental à greve”. É a posição do advogado, pois
o tribunal atém-se a tratar as peças que lhe são apresentadas e não outras.
Entretanto, o Governo
já recebeu o parecer da Procuradoria-Geral da República sobre legalidade da
greve dos enfermeiros, pelo que o Ministério da Saúde marcou uma
conferência de imprensa de emergência para dar conta desse parecer.
Recorde-se que, a 4 de fevereiro, poucos dias depois de ter
arrancado a segunda paralisação, o Governo pediu ao Conselho Consultivo da
Procuradoria-Geral da República um parecer complementar para se pronunciar
sobre a greve nos blocos operatórios.
Antes
da primeira greve, entre 22 de novembro e 31 de dezembro, o Ministério da Saúde
tinha feito um pedido ao Conselho Consultivo da PGR, que considerou a
convocatória da greve lícita, mas alertou para o caso de o protesto vir a ser
“ilícito”, caso coubesse a cada enfermeiro decidir o dia, hora e duração da
paralisação.
Na breve conferência de imprensa desta noite, Marta Temido
referiu que o novo parecer da PGR indica que a greve cirúrgica dos
enfermeiros foi considera ilícita. Mas o sindicato garante que,
até haver decisão do Tribunal ou negociação com o Governo, a greve não está
desconvocada, pois não lhe parece “que as palavras do
Ministério sejam suficientes para tornar algo ilegal”.
Porém, a Ministra sustentou:
“De
acordo com o parecer, a greve que estava convocada foi considerada ilícita e
ilegal. Como tal, se o parecer for homologado pela ministra da Saúde – e já o
foi – torna-se vinculativo.”.
E
Marta Temido clarificou que a decisão será agora publicada em Diário da
República, pelo que o parecer “deverá ser acatado por todas
as instituições abrangidas pela greve e pelos profissionais abrangidos”,
ficando apontada a próxima segunda-feira como o primeiro dia para a entrada em
vigor. Segundo a governante, há razões que justificam o aparentemente duplo
parecer da PGR. Por um lado, a Procuradoria-Geral considerou que o pré-aviso
não especificava a forma como a greve se iria desenvolver; por outro, foram
levantadas questões relativamente ao financiamento colaborativo. A
Ministra, explicando que o segundo parecer analisa informações sobre a primeira
greve, mas as que se seguem têm o mesmo formato, afirmou:
“Houve
um primeiro pedido de parecer que foi feito antes da primeira greve e esse
primeiro parecer foi no sentido de que não havia elementos suficientes sobre a
ilicitude da greve. Por isso, o Ministério da Saúde decidiu pedir um segundo
parecer.”.
***
É
certo que o parecer da PGR, desde que homologado pelo competente membro do
Governo, é vinculativo, mas, como há um processo no STA, é de esperar para ver
qual a decisão final. Entretanto, persiste a requisição civil se a greve não for
desconvocada.
2019.02.15 – Louro de
Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário