sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

A PPL Crowdfunding e a greve dos enfermeiros


Marcelo Rebelo de Sousa lançou uma pedrada no charco para esclarecimento do que se passa no atinente à greve dos enfermeiros e ao seu fundo de financiamento colaborativo. E penso que é pena ter sido o Presidente a fazê-lo (porque mais uma vez se adiantou em matéria que não é da esfera do Chefe de Estado) ou ter de ser ele a fazê-lo, dado o silêncio dos peritos independentes ou da Direção-Geral de Saúde ou da PGR (esta deu hoje parecer através do seu conselho consultivo).
Sabe-se agora que o fundo de greve resulta duma candidatura à PPL apresentada pelo Movimento Greve Cirúrgica, quando isso deveria ter surgido de verbas recolhidas no âmbito de quem tem competências para decretar greves, os sindicatos. É o que sucede nalguns países em que os grevistas se aproximam dos serviços, sem invadirem as instalações, e passa o controlo sindical para avaliar as presenças e informar o futuro processamento da remuneração.  
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O Chefe de Estado, na estreia do programa “Circulatura do Quadrado” na TVI24, frisou que “um movimento cívico não pode declarar greve”, não se podendo substituir aos sindicatos, e disse que “é intolerável” enfermeiros não cumprirem a requisição civil, que é inteiramente justificada, caso se prove que os serviços mínimos não estão a ser cumpridos.
No entanto, os sindicatos dos enfermeiros não baixaram os braços e contaram com o advogado Garcia Pereira para os representar na questão da requisição civil. Em declarações à Lusa, o especialista em direito do trabalho afirmou que a requisição civil “é um procedimento abusivo desde o início, numa circunstância em que uma operação de manipulação da opinião pública originou que se deixasse de falar do que levou os enfermeiros a encetarem esta forma de luta”.
O Chefe de Estado vincou, no aludido programa televisivo, que não há dúvidas e que “os enfermeiros têm causas que são justas e que defendem pelo exercício à greve”. Porém, considerando que “a democracia é feita de conteúdo e de processo”, vincou:
Não basta defender boas causas. É preciso que o processo utilizado seja política e constitucionalmente, legalmente, condizente com o que se defende.”.
Sublinhando que, à partida, não ia “discutir a substância do que está em causa”, recordou que, “em termos de processo”, houve “duas questões” merecedoras de atenção”.
Uma delas é o crowdfunding”. Está em causa uma plataforma de financiamento colaborativo usada pelos enfermeiros para o crowdfunding da sua segunda greve, em que foram angariados mais de 423.000 euros. Na primeira greve, entre 22 de novembro e o final de dezembro, tinham angariado mais de 360.000 euros. E o PS anunciou que vai iniciar um processo de diálogo com outras forças políticas para a apresentação de um projeto que proíba contribuições monetárias anónimas no crowdfunding. O crowdfunding é legalmente previsto para alguém reunir fundos para desenvolver uma certa atividade, mas não pode legalmente “substituir-se a um sindicato” – disse Marcelo. Ora, neste caso, quem promove o crowdfunding é um movimento cívico que não pode declarar greve. E “quem pode declarar a greve – os sindicatos – deve fazê-lo com fundos dos seus sindicatos. E o Presidente da República questionou “como se pode fazer isso se o movimento e os donativos não são identificados.
Depois, Marcelo lembrou outra questão: os sindicatos não podem pensar apenas nos seus  direitos, mas também nos direitos dos utentes, “como o direito à vida e à saúde”.
Para o Presidente da República, um dos maiores problemas – e deveras preocupante – da sociedade portuguesa, neste momento, são “os fenómenos inorgânicos no plano sindical, laboral e a dificuldade de enquadramento pelas estruturas clássicas”. E “a maioria das greves foi declarada por sindicatos que não estão integrados nem na CGTP nem na UGT”, frisou de modo ilustrativo. E sublinhou:
Preocupam-me que seja anunciada uma requisição civil e haver uma resposta: ‘Se é assim não vamos trabalhar’. É muito mau o Governo tomar essa posição porque há movimentos inorgânicos.”.
A presidente da Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros, Lúcia Leite, disse à Lusa que os enfermeiros se sentem “atacados nos seus direitos enquanto trabalhadores”, pelo que alertou para o risco de surgirem novas formas de luta “mais incontroláveis”, embora não suportadas pelos sindicatos. E admitiu que os profissionais se organizem no sentido de darem faltas injustificadas ao trabalho até ao limite legal, dado o Código do Trabalho prever que qualquer trabalhador possa faltar cinco dias seguidos ou dez interpolados. Por seu turno, o Movimento Greve Cirúrgica, que organizou a recolha de fundos para as duas paralisações em blocos operatórios, admitiu avançar com outras formas de protesto, como abandono de serviço ou greves de zelo, e apelou a que os enfermeiros deixem de realizar as cirurgias adicionais para recuperação das listas de espera, que não são obrigatórias, sendo pagas à parte e feitas fora do horário normal. Tudo isto é sinal de que o controlo da situação está a escapar aos sindicatos ditos tradicionais, podendo configurar também utilização abusiva de algumas normas das leis do trabalho. A isto Marcelo atalhou sustentando que tanto os sindicatos como os partidos “têm de se reajustar”. E concluiu:
É intolerável que se pense que perante uma decisão legal, a reação adequada é de que não cumprimos e não acatamos. Aí o Presidente da República é muito claro: muito afeto, mas afeto com autoridade.”.
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Neste contexto, a PPL não quer “alimentar a fogueira” do braço de ferro entre enfermeiros e Governo. Por isso, analisará ao detalhe eventuais campanhas de financiamento a greves que surjam, sobretudo se não for totalmente claro que o método de angariação de fundos é legítimo para tal fim. Assim, futuras iniciativas de crowdfunding para financiamento de greves estarão dependentes do que vier a ser concluído nas investigações e pareceres pedidos no âmbito das greves cirúrgicas dos enfermeiros, pelo menos na plataforma portuguesa PPL Crowdfunding
Na primeira resposta à polémica por parte dos responsáveis da plataforma através da qual “três ou quatro enfermeiros” angariaram mais de 700 mil euros para pagar salários dos enfermeiros grevistas, Yoann Nesme, diretor executivo, e Pedro Domingos, diretor tecnológico, ambos cofundadores da PPL em 2011, admitiram ao ECO ter acesso aos dados de todos os financiadores, mesmo dos anónimos, que foram pedidos à empresa pela ASAE, que está a investigar o recurso a esta forma de financiamento por parte dos enfermeiros, mas ainda não estavam na posse da autoridade, porque a empresa não estava totalmente certa sobre se essa cedência é legal à luz das regras europeias.
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A PPL Crowdfunding é uma comunidade de financiamento e para ajuda a outras pessoas na realização dos seus projetos. Começou em 2011 com quatro fundadores: um professor na Católica e três alunos do MBA, pois, não havendo nenhuma solução destas em Portugal, a ideia era tentar replicar e adaptar à realidade portuguesa um Kickstarter ou um Indiegogo, ao nível de meios de pagamento, idioma, e de algum modo de funcionamento ligeiramente diferente. Está a atingir os quatro milhões de euros e financiou quase mil projetos. Os promotores propõem as campanhas submetendo um formulário com a proposta e, da parte da PPL, o acompanhamento e as recomendações para melhoria da campanha. E a PPL tem a última palavra, mas sem “fazer um filtro muito grande,” pois quer “que seja o público, através dos apoios, a decidir” quais os projetos que merecem ou não ser financiados. Há, assim uma filtragem elementar, para garantir a qualidade mínima, mas é a crowd (multidão) a decidir, o mais democraticamente possível.
Os promotores fornecem informações pessoais várias, previstas na lei do financiamento colaborativo. Mas só no fim do prazo é que fornecem o IBAN para se fazer a transferência do montante, menos a comissão da PPL, que é de 7,5% + IVA. E, quanto ao anonimato, diz a PPL:
Anónimo é um apoiante que decidiu não ter o seu nome público na lista de apoiantes. Obviamente que a plataforma sabe quem são, da mesma forma que sabe dos outros. Mas essa informação também não é passada ao promotor. O promotor vai receber uma listagem de todos os apoiantes, do respetivo montante, contactos, exceto os dos anónimos.”.
A PPL financia qualquer tipo de campanhas sociais, mesmo políticas, sendo que, para estas, se implementam os mecanismos necessários para obedecer à lei do financiamento dos partidos, por exemplo, com a identificação de todos os apoiantes e com o meio de pagamento exclusivamente por transferência bancária. E está aberta às regulações que o poder político determinar.
Não lhe cabendo fazer juízo sobre a legitimidade das greves, mesmo assim, anota as dúvidas pela consecutividade de duas campanhas congéneres. Por outro lado, tendo analisado o potencial público que apoia estas campanhas, verificava que, no caso, se tratava de um universo de praticamente 100 mil enfermeiros muito motivados.
Como é do conhecimento público, a PPL recebeu o pedido da ASAE da lista de financiadores. E a empresa solicitou à CNPD (Comissão Nacional de Proteção de Dados) que desse um parecer, parecer só chegou hoje.
Sobre o pedido da ASAE (Autoridade de Segurança Alimentar e Económica), a PPL diz que não abre qualquer tipo de precedente, pois há o regulamento de proteção de dados, a CNPD que controla isso, e um fiscalizador que solicita informações e que apresentou, obviamente, fundamentos para o que está a solicitar. Efetivamente a ASAE “pediu informação sobre algumas campanhas mais significativas” (quatro) em termos de montante angariado, entre as quais se incluem as duas greves dos enfermeiros, e “informações sobre os apoiantes e apoios, cada apoio, quem é que foi o apoiante e qual é que foi o meio de pagamento utilizado”.
E, porque a CNPD considera que a ASAE pode aceder aos dados de quem contribuiu para o financiamento das greves dos enfermeiros em blocos operatórios, a APPL Crowdfunding já lhe enviou os dados de todas as pessoas que fizeram donativos nas duas campanhas que serviram para financiar as greves cirúrgicas, incluindo os anónimos.
A PPL diz que os apoiantes foram, maioritariamente, os próprios enfermeiros, não só a título individual, mas também através de “vaquinhas” realizadas em hospitais e centros hospitalares, para se reunirem mais eficazmente alguns donativos, sobretudo de pessoas que não tinham ou tempo ou experiência em fazer apoios através da plataforma.
Nunca a PPL terá falado com a bastonária da Ordem, mas apenas com o promotor.
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Como foi referido, o Sindepor (Sindicato Democrático dos Enfermeiros) interpôs junto do STA (Supremo Tribunal Administrativo) a intimação na sequência da requisição civil decretada na semana passada pelo Governo como resposta à paralisação dos enfermeiros nos blocos operatórios de 4 dos 10 hospitais onde até ao final do mês decorre a “greve cirúrgica”. Tal petição não suspende a requisição civil, mas, ao invés da providência cautelar, inibe o Governo de invocar o interesse público. Como a petição de intimação apresentada pelo Sindepor apresentava deficiências, o STA, notificou a entidade peticionária, a qual apresentou uma segunda versão. Assim, o Governo foi citado na tarde deste dia 15 para responder à intimação, o que, no entender do Ministério da Saúde, “significa apenas que o Tribunal a irá apreciar”. E o gabinete de Marta Temido adianta que irá ser apresentada defesa nos próximos cinco dias, “com as alegações e os factos comprovativos do incumprimento dos serviços mínimos estabelecidos pelo Tribunal Arbitral”. E explica:
O Ministério da Saúde, em articulação com os conselhos de administração, mantém o acompanhamento da situação dos hospitais abrangidos pela greve, para verificar o cumprimento de serviços mínimos”.
Contudo, Garcia Pereira, advogado do Sindepor neste caso, considerou que se tratou de uma decisão “muito importante”, porque o tribunal reconheceu a intimação como “o meio mais adequado” para “assegurar a tutela célere e efetiva do direito fundamental à greve”. É a posição do advogado, pois o tribunal atém-se a tratar as peças que lhe são apresentadas e não outras.
Entretanto, o Governo já recebeu o parecer da Procuradoria-Geral da República sobre legalidade da greve dos enfermeiros, pelo que o Ministério da Saúde marcou uma conferência de imprensa de emergência para dar conta desse parecer.
Recorde-se que, a 4 de fevereiro, poucos dias depois de ter arrancado a segunda paralisação, o Governo pediu ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República um parecer complementar para se pronunciar sobre a greve nos blocos operatórios.
Antes da primeira greve, entre 22 de novembro e 31 de dezembro, o Ministério da Saúde tinha feito um pedido ao Conselho Consultivo da PGR, que considerou a convocatória da greve lícita, mas alertou para o caso de o protesto vir a ser “ilícito”, caso coubesse a cada enfermeiro decidir o dia, hora e duração da paralisação.
Na breve conferência de imprensa desta noite, Marta Temido referiu que o novo parecer da PGR indica que a greve cirúrgica dos enfermeiros foi considera ilícita. Mas o sindicato garante que, até haver decisão do Tribunal ou negociação com o Governo, a greve não está desconvocada, pois não lhe parece “que as palavras do Ministério sejam suficientes para tornar algo ilegal”.
Porém, a Ministra sustentou:
De acordo com o parecer, a greve que estava convocada foi considerada ilícita e ilegal. Como tal, se o parecer for homologado pela ministra da Saúde – e já o foi – torna-se vinculativo.”.
E Marta Temido clarificou que a decisão será agora publicada em Diário da República, pelo que o parecer “deverá ser acatado por todas as instituições abrangidas pela greve e pelos profissionais abrangidos”, ficando apontada a próxima segunda-feira como o primeiro dia para a entrada em vigor. Segundo a governante, há razões que justificam o aparentemente duplo parecer da PGR. Por um lado, a Procuradoria-Geral considerou que o pré-aviso não especificava a forma como a greve se iria desenvolver; por outro, foram levantadas questões relativamente ao financiamento colaborativo. A Ministra, explicando que o segundo parecer analisa informações sobre a primeira greve, mas as que se seguem têm o mesmo formato, afirmou:
Houve um primeiro pedido de parecer que foi feito antes da primeira greve e esse primeiro parecer foi no sentido de que não havia elementos suficientes sobre a ilicitude da greve. Por isso, o Ministério da Saúde decidiu pedir um segundo parecer.”.
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É certo que o parecer da PGR, desde que homologado pelo competente membro do Governo, é vinculativo, mas, como há um processo no STA, é de esperar para ver qual a decisão final. Entretanto, persiste a requisição civil se a greve não for desconvocada.
2019.02.15 – Louro de Carvalho

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