sexta-feira, 5 de junho de 2015

Importância das línguas clássicas na compreensão do Português

Em tempo de debate para a inserção curricular da área de Introdução à Cultura e às Línguas Clássicas nos três ciclos do ensino básico e do seu reforço no ensino secundário, mormente nos cursos de Línguas e Humanidades, importa refletir sobre o interesse do estudo do Latim e do Grego para a compreensão do Português e da génese e devir da nossa cultura e civilização.
Desde já deve esclarecer-se que civilização e cultura são duas realidades que normalmente andam a par e mesmo entrelaçadas, de modo que a cultura sem a civilização é mútila e vice-versa. No entanto, elas são diferentes e podem existir em separado, sendo que a cultura tende a tornar o homem melhor, mais humano e mais próximo do outro homem, enquanto a civilização proporciona ao homem mais bem-estar e conforto (cf A. Freire, Humanismo Clássico, 1986).
Depois, o estudo das línguas clássicas concretiza-se na abordagem de três componentes fundamentais: a língua em si, a cultura e a literatura. E, embora haja muitos fenómenos de permeabilidade, as civilizações clássicas – grega e latina – têm a sua própria autonomia quer em si mesmas quer nos seus antecedentes quer ainda nos seus consequentes.
As línguas clássicas (Latim e Grego Clássico) revelaram-se como poderoso elemento de alicerce de muitos dos estudos filológicos e linguísticos. E os textos escritos, examinados em profundidade, mostraram a sua importância para análises comparativas e contrastivas não só nos campos da evolução das línguas românicas (português, castelhano, galego, francês, italiano, sardo e reto-romeno), da poesia, da narrativa ficcional e do drama mas também da filosofia, da historiografia, do exército, da antropologia, da sociologia, da ciência política e do direito.
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Porque estudar as línguas clássicas hoje?
Há muito fortes razões para se estudar o Grego Clássico (não confundir com o Grego hodierno, que é falado e escrito correntemente e tem a sua literatura própria) e o Latim (não apenas o do tempo dos antigos romanos). Algumas dessas razões são de caráter prático, ou seja, quem conhece Grego e Latim possui habilidades peculiares que lhe permitem realizar com maior desenvoltura as atividades intelectuais em que está envolvido – há quem diga que o exercício grego e/ou latino desenvolve o raciocínio e um dos meus professores dizia à boca cheia que o Latim era a “matemática das línguas”. De entre as aludidas razões, podem-se referir-se: a incidência profissional; a destreza linguística e lexical; e o conhecimento do sentido etimológico de muitas das nossas palavras. Não obstante, além dessas razões práticas, existem motivos associados à cultura geral, que todo aquele que está inserido na cultura ocidental deveria ter presentes para si, como, por exemplo, o conhecimento de estruturas de pensamento, a perceção do distanciamento entre culturas, o conhecimento dos mitos e a pertinência de questões fundamentais e existenciais da vida humana.
Incidência profissional
O conhecimento destas línguas é altamente recomendável ou mesmo indispensável para profissionais da filosofia, da história, das letras e das artes, do teatro e da religião, na medida em que possibilita a leitura dos textos de referência na forma original e as necessárias inter-relações. Como é que um professor pode, sem esta ferramenta, desempenhar cabalmente o seu munus docendi em classes avançadas no âmbito do estudo do Português, do Francês, do Espanhol e do Italiano? Quantas teses não ficam por elaborar por falta de capacidade de abordagem dos documentos que enchem grandes arquivos de importância mundial, de que são exemplo os arquivos do Vaticano!
Recordo-me de que apenas uma jornalista – a única que sabia Latim – percebeu o alcance da declaratio, de 11 de fevereiro de 2013, de Bento XVI a comunicar a renúncia ao papado.
Destreza linguística e lexical
O estudo do Grego clássico e do Latim propicia ainda uma série de vantagens práticas a toda pessoa que o aprende. O trabalho preciso, destro, ágil e paciente exigido para a leitura do texto conduz necessariamente a uma compreensão aprofundada da forma e do conteúdo textual. O resultado disso é a capacidade de utilização consciente e maleável do Português, que se revela extremamente útil para o processo de leitura e elaboração de textos.
O conhecimento do sentido etimológico de muitas das nossas palavras
Outra vantagem pragmática de saber Grego e Latim relaciona-se com a etimologia e o sentido originário dos termos e da realidade que representam. As línguas ocidentais, mesmo as não românicas (tenha-se em conta o caso do Inglês e do Alemão – línguas germânicas que receberam a influência da romanização e da pregação do cristianismo) receberam e inventaram um grande número de vocábulos a partir do Grego. Aqui, sobressaem sobretudo os termos do campo da medicina.
Quanto ao Latim, as línguas românicas (novilatinas ou neolatinas) reconhecem-se originárias do Latim vulgar, sobretudo do sermo plebeius. Porém, nos séculos XVI e XVII, a juntar-se à evolução linguística já conseguida, surgiu o movimento de refontalização etimológica e voltou-se em grande parte aos vocábulos originários, muitos agora hauridos do sermo eruditus, a língua dos textos escritos, nomeadamente os textos literários. E, sobretudo em Roma, havia o sermo vulgaris urbanus, a fala habitual das pessoas mais cultas, mais solta que a língua dos textos.
O sermo plebeius, falado pelas camadas incultas subdividia-se em: sermo rusticus (fala do campo); sermo castrensis (fala do acampamento militar); e sermo peregrinus (fala do estrangeiro).
Até fins do século XVIII, os principais textos filosóficos e científicos eram escritos em latim. No mundo das ciências da natureza, sobretudo zoologia e botânica, a maior parte das denominações são latinas.
O Latim continua a ser a língua oficial da Igreja Católica Latina. Não quer dizer que as liturgias não sejam desenvolvidas em vernáculo e mesmo os discursos e documentos oficiais. Porém, os textos litúrgicos, os textos legislativos, os documentos doutrinais e disciplinares têm versão oficial latina, a partir da qual se fazem as demais traduções e com a qual serão comparadas.
A Santa Sé tem no elenco das suas academias, que integram a Cúria Romana, a Pontificia Academia Latinitatis, que edita novos dicionários de Latim da atualidade, organiza certames e publica trabalhos em Latim. E o órgão oficial da Santa Sé e da Igreja Católica Latina, em que são publicados os atos oficiais, era o Actae Sanctae Sedis e passou a ser, em 1909, o Actae Apostolicae Sedis.
O conhecimento dos étimos gregos e latinos permite deduzir o significado de muitos termos técnico-científicos e de palavras de uso comum, além de compreender de maneira nova o sentido de palavras já conhecidas. Por exemplo, conhecendo o Grego, perceber-se-á, sem dicionário, o significado de palavras e expressões como: política, democracia, panteão, anamnese, poliglota, isósceles, diálogo, rinoceronte, hipopótamo…

Quanto à estruturação de pensamento
Pode parecer que o nosso modo de pensar será o único existente. Porém, com um pouco de investigação, nota-se logo que isso não é verdade. Quando pensamos, por exemplo, utilizando nomes substantivos (“um gato passou aqui”), estamos a admitir, ao menos implicitamente, que há seres permanentemente no mundo (“o gato que passou é o mesmo que eu e outros vimos”). Mas há línguas no mundo que não utilizam nomes substantivos, só verbos (“gatou” aqui). A estrutura de pensamento que utilizamos é o processo da longa história do pensamento e da linguagem, herdada do mundo helénico (desde a civilização minoica e micénica, passando pela grega, até à macedónica) – história essa largamente registada na língua grega, berço da nossa civilização. Estudando o Grego, interiorizaremos muito mais e melhor o modo como funcionam os mecanismos da nossa linguagem de hoje.
E, se assumirmos isto em relação à estruturação do pensamento a partir do raciocínio, intuição e indução que herdamos dos gregos, analogamente o poderemos predicar do sentido organizativo da vida e da linguagem e do rigor e da relação que herdamos do mundo romano. Se os gregos foram os inventores da filosofia ocidental (ao questionarem a constituição do mundo, que é, donde vem e para onde vai o homem), os romanos autonomizaram o direito positivo em relação às leis originárias, que supostamente eram de criação divina, confiada aos sacerdotes.
Distanciamento entre culturas
Tal como no atinente à linguagem, a cultura que temos hoje não é a única existente. E para refletirmos sobre a nossa cultura, nada melhor do que conhecer uma outra cultura, tendo assim o contraponto necessário. A princípio, qualquer cultura serviria para esse propósito, mas o estudo das culturas grega e latina, por serem a origem da nossa, pode propiciar-nos dados e traços insuspeitados acerca de como vemos o mundo e de como agimos nele, do modo como organizamos o Estado e como nos é dado intervir política e civicamente ou do modo como tal nos é vedado. E, para conhecer a cultura grega e a cultura latina – os seus usos e costumes e as suas instituições –, é imprescindível que se conheça a língua grega e a língua latina.
A profusão dos mitos, lendas, fábulas e superstições
Como todas as sociedades, também a nossa está fundada sobre mitos, fábulas, lendas e superstições. Os mitos fornecem as respostas para os problemas do que é o mundo e de como devemos agir nele. E muitos dos mitos da Grécia antiga e da Roma antiga continuam a ter pertinência hoje. Vejam-se as análises de Freud, com o mito ou complexo de Édipo, e as de Marx, com o mito ou complexo de Prometeu. Conhecer os mitos gregos (de Hércules, Anteu, Ulisses…) – muitos deles veiculados pelo Latim, que também tem os seus (vg Rómulo e Remo, Deucalião e Pirra…) – é conhecer, por fim os nossos próprios mitos e enigmas. Mover-se pelo mundo dos deuses e deusas da mitologia greco-romana capacita-nos para a compreensão de muitos dados da tradição literária ocidental.
Além disso, muitos interessam-se pelos mitos gregos e romanos pelo simples facto de serem eles narrações realmente impressionantes. Porém, conhecer a mitologia pela tona é coisa bem diferente de a ler nos textos originais e permite vislumbrar o seu influxo na literatura e no pensamento da maior parte do mundo civilizado – influxo que galgou as fronteiras dos séculos e dos continentes. Estudando os mitos gregos e romanos, teremos o ensejo de ler os mitos em toda a riqueza de detalhes na qual eles foram escritos.
O lado misterioso da existência humana
Como já se disse, os filósofos gregos foram, no mundo ocidental, os primeiros a interrogarem-se sobre soluções racionais (ultrapassando lado mítico) para os problemas do mundo. E assim prosseguiram até ao fim na antiguidade. Para lá da profusão dos deuses e deusas, objeto das crenças do povo, vemos os filósofos a identificar “Deus” como sede do bem, da verdade e da beleza (Platão) ou como o motor imóvel (Aristóteles). Não é à toa ou em vão que se diz serem os gregos os inventores da filosofia. Tentaram definir justiça, verdade, bem, amor, origem e natureza do mundo – no que foram acompanhados, como no resto, pelos latinos (Ovídio, Metamorphoses; e Cícero, De natura rerum, De natura deorum). Inventaram e cultivaram a comédia (vg Aristófanes e Plauto) e a tragédia (vg Sófocles e Séneca), que ajudavam a interpretar a vida e a purificar os homens. Formularam normas de proceder do homem e da organização da vida em sociedade. Foram mestres na poesia lírica (vg Píndaro e Horácio) e na epopeia (vg Homero e Vergílio), as quais serviram de modelo aos povos que vieram a seguir. Inventaram a maneira de narrar os factos e perspetivaram a História (vg Heródoto e Tito Lívio). Estudando Grego e Latim, teremos acesso a esse tipo de originário de posicionamento e ao modo como ele se desenvolveu.
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Porquê estudar Latim em especial?
Chama-lhe língua morta, mas trata-se, antes, de uma língua que se transformou. Vejam-se os exemplos de como os seguintes de vocábulos latinos passaram para as línguas novilatinas:
Ego – passa a je, no francês; io, no italiano; yo, no espanhol; eu, no português; e eu, no romeno. Duo – passa a deux, no francês; due, no italiano; dos, no espanhol; dois, no português; e doi, no romeno. Meus – passa a mon, no francês; mio, no italiano; mio, no espanhol; meu, no português; e meu, no romeno. Pater – passa a père, no francês; padre, no italiano; padre, no espanhol; e padre e pai, no português. Pauper – passa a pauvre, no francês; povero, no italiano; pobre, no espanhol; pobre, no português. Capra – passa a chèvre, no francês; capra, no italiano; cabra, no espanhol; cabra, no português; e capra, no romeno. E canta – passa a chante, no francês; canta, no italiano; canta, no espanhol; canta, no português; e cinta, no romeno.
Ora, segundo os dicionários, os termos “morto” e “morta” são formas de adjetivo biforme que significa privado de vida, extinto, esquecido ou apagado na memória. No concerto das línguas, chamam-se mortas as línguas que se conservam só em documentos, escritas, mas não faladas.
Quanto ao Latim, na história da linguagem humana, esta língua não representa um começo absoluto nem um final definitivo. Constitui uma etapa de transição. Entronca, segundo os estudiosos, numa língua muito mais antiga – o indo-europeu – de que se conhecem outras ramificações. Prolonga-se largamente diversificada sob a forma de línguas-filhas que são as línguas românicas (neolatinas ou novilatinas), as quais, galgando os séculos, ultrapassaram em larga escala o quadro europeu, mercê da expansão pelo mundo da parte dos portugueses e espanhóis. Assim, o Português, o Espanhol e, depois, o Francês (graças à entrada no movimento expansivo e por ficar a ser língua de cultura), atravessaram os oceanos para se implantarem em África e na América. São hoje faladas por milhões de pessoas as línguas derivadas do latim.
O conhecimento analítico das estruturas linguísticas do Latim, como do Grego, facilita a aprendizagem destas línguas irmãs e proporciona um conhecimento mais profundo e consciente do Português. Em geral, considera-se que a aprendizagem do Latim é um dos meios mais adequados para se desenvolver o raciocínio.
A literatura latina, autónoma da grega, embora a imite em muito, dada a pretensa superioridade civilizacional e cultural helénica, apareceu no fim do século III aC e prolongou-se até ao século VI aC. Os humanistas da Renascença escreviam em Latim e dominavam esta língua. Mais: até ao século XVIII, foi escrito em Latim a maior parte do que foi escrito na Europa, no domínio da filosofia e da ciência. Portanto, durante mais de vinte séculos estendeu-se o uso falado ou escrito do Latim. Roma legou, através da língua, uma visão do mundo e do homem. Tendo assimilado a cultura grega, associou à sageza helénica e à paixão da ciência a sua peculiar tendência para legislar, organizar, administrar e julgar. Desaparecido o Império, perdurou a Latinidade. E a Latinidade – no dizer de Jorge Luís Borges – é o Ocidente. Desconhecer a Latinidade significa uma grave lacuna na formação intelectual de quem envereda por cursos de humanidades e um empobrecimento dos que se aplicam a outras ciências e artes. Ou será de deitar fora todo um complexo de vocabulário jurídico latino, uma longuíssima listagem de aforismos e provérbios latinos e uma infinidade de expressões e frases feitas. O próprio Inglês mantém no uso diário expressões latinas que muitos julgam inglesas: vg data, delete, sine die…
Os homens de letras continuam a ler e a traduzir os clássicos, que interessam também muitos homens e mulheres das ciências e das artes, sobretudo fora de Portugal.
Pensam muitos que a sociedade atual precisa mais de engenheiros, técnicos, matemáticos, economistas, etc. do que de letrados. Até é certo que o comércio precisa mais de línguas vivas. Porém, o humanismo técnico, mais votado ao comércio, à indústria, ao progresso tecnológico, não pode esquecer-se de que o homem e a sociedade não vivem exclusivamente desses valores, mas precisam (como de pão para a boca) da cultura do espírito humano, plasmada no pensamento, nas letras, nas artes figurativas e dramáticas, na educação física, na ética e na estética.
É assim que o Latim, sob novas formas, ainda vive e perdura. Se, por exemplo o Etrusco, que desapareceu sem deixar descendência, merece a designação de língua morta, o Latim deverá, antes, ser qualificado como língua-mãe, nas suas funções maternas de fecundidade e educação.
Ao lado de tantos que poderiam aqui ser mencionados, tanto o António Freire como Maria Helena da Rocha Pereira, em nosso tempo, fizeram jus ao património linguístico, literário e cultural da Grécia e de Roma. O primeiro, além gramáticas, seletas e cadernos de exercícios de Grego e de Latim, com obras como A Catarse em Aristóteles (1982), Helenismos Portugueses (1984), Humanismo Clássico (1986), e Estudos de Literatura Grega (1987); a segunda, com Hélade (1982), Romana (1986), História da Cultura Clássica – vol. I cultura grega (1988, 6.ª edição), História da Cultura Clássica vol. II – cultura romana (1984) e Novos Ensaios Sobre Temas Clássicos na Poesia Portuguesa (1988).
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Para quando se remeterá a recuperação, a sério, da fruição do património dos clássicos, frente ao qual Portugal tem especiais responsabilidades, já que usufruiu e fez usufruir de benefícios similares aos de outros países, que agora se interessam mais por esta herança da humanidade?   

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