O Papa Francisco deslocou-se à
Bósnia-Herzegovina, a 6 de junho, como peregrino e arauto da paz e do diálogo
que a ela conduz, na convicção profunda de que “paz é o sonho de Deus”, “o projeto
de Deus para a humanidade, para a história, com toda a criação” (cf homilia em Sarajevo).
Não há dúvida de que Francisco
vive a sério e quer fazer viver as palavras do Profeta Isaías: Que formosos
são sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia a paz, que apregoa a
boa-nova e que proclama a salvação!” (Is 52,7). Pensa e sente, no entanto, que não basta
pregar a paz, já que – verifica o Papa – “todos são capazes de a proclamar, até de maneira hipócrita ou
mesmo enganadora”. É preciso anunciá-la sem peias e de modo profético, o que
implica o forte e denodado compromisso com ela, compromisso de que não é legítimo
desistir nem desviar-se.
Nas palavras de Francisco em
Sarejevo, “o projeto de paz, da parte de Deus”, “encontra sempre oposição por
parte do homem e por parte do maligno”. Tal como nos demais momentos da História
“também no nosso tempo, a aspiração pela paz e o compromisso de a construir
colidem com o facto dos numerosos conflitos armados existentes no mundo”. O Pontífice
não tem pejo em classificar o ambiente que se vive atualmente no mundo como o
de “uma espécie de terceira guerra mundial travada aos pedaços”, acentuando que, “no contexto da comunicação global,
sente-se um clima de guerra”.
E aponta algumas das causas dos conflitos
bélicos, que são caprichosas e interesseiras:
Há quem queira deliberadamente criar e fomentar este clima, de
modo particular aqueles que procuram o conflito entre culturas e civilizações
diferentes e também quantos, para vender armas, especulam sobre as guerras.
Depois, recorda algumas das nefastas
consequências anti-humanitárias:
Mas a guerra significa crianças, mulheres e idosos nos campos de
refugiados; significa deslocamentos forçados; significa casas, estradas,
fábricas destruídas; significa, sobretudo, tantas vidas destroçadas.
E evidencia a experiência ainda perdurante
na memória e na vida coletiva deste povo, que faz seu o apelo de Paulo VI, não mais a guerra:
Bem o sabeis vós, que experimentastes isto mesmo precisamente
aqui: quanto sofrimento, quanta destruição, quanta tribulação! Hoje, amados
irmãos e irmãs, desta cidade ergue-se mais uma vez o grito do povo de Deus e de
todos os homens e mulheres de boa vontade: Nunca mais a guerra!
Também
no encontro com os sacerdotes, religiosas, religiosos e seminaristas na catedral,
depois de ouvir, da boca de três pessoas, os testemunhos de quem sofreu os horrores
da guerra, declarou em discurso espontâneo, pois, face ao que ouviu, entregara ao
cardeal arcebispo de Sarajevo o belo texto que tinha escrito que tinha escrito:
Esta é a memória do vosso povo! Um povo que esquece a sua memória
não tem futuro. Esta é a memória dos vossos pais e mães na fé: aqui falaram
apenas três pessoas, mas por detrás delas existem muitos e muitas que sofreram
as mesmas coisas.
No
entanto, o Papa não deixa de lançar um pertinente desafio, mesmo a estes que já
muito sofreram:
Não tendes direito de esquecer a vossa história. Não para vos
vingardes, mas para fazerdes a paz. Não para olhar [estes testemunhos] como uma
coisa estranha, mas para amar como eles amaram. No vosso sangue, na vossa
vocação, há a vocação, há o sangue destes três mártires. E há o sangue e há a
vocação de tantas religiosas, tantos padres, tantos seminaristas. (…). Guardar
a memória, para fazer paz. Algumas palavras ficaram-me no coração. Uma,
repetida: Perdoo. Um homem, uma
mulher que se consagra ao serviço do Senhor e não sabe perdoar, não serve.
Perdoar a um amigo, com o qual tinhas litigado, e te disse um palavrão, ou a
uma religiosa que tem ciúmes de ti, não é muito difícil. Mas perdoar a quem te
bate, a quem te tortura, a quem te espezinha, a quem ameaça matar-te com a
carabina, isto é difícil. E eles fizeram-no, e eles pregam para que se faça!
***
Voltando ao teor da homilia papal…
Perante o ambiente de conflito generalizado em termos dos acontecimentos e dos
mecanismos de comunicação, Francisco cita do Evangelho de Mateus o pregão de Cristo
– que atravessa as nuvens como um raio de sol – Felizes os pacificadores»
(Mt 5,9), os que efetivamente fazem a paz – um pouco mais além do que
proclama Isaías. É preciso anunciar a paz, fazer a paz e pregar a paz. Porém, não
se pode olvidar que “fazer a paz é um trabalho
artesanal: requer paixão, paciência, experiência, tenacidade”. A paz não resulta
de automatismos inscritos no coração ou na vida dos homens; requer esforço, educação
e exercício. E o Papa proclama: “Felizes são aqueles que semeiam paz com as suas
ações diárias, com atitudes e gestos de serviço, de fraternidade, de diálogo,
de misericórdia...”. A estes reconhece-se, na linha de Cristo, o direito à
filiação divina:
Estes, sim, serão chamados
filhos de Deus, porque Deus semeia paz, sempre, por todo o lado; na
plenitude dos tempos, semeou no mundo o seu Filho, para que tivéssemos a paz!
Fazer a paz é um trabalho que se deve realizar todos os dias, passo a passo,
sem nunca nos cansarmos.
Mas o Bispo de Roma, em visita a
uma das Igrejas sofredoras, não deixa de recordar como se constrói a paz: a paz será obra da justiça e o fruto da
justiça será a tranquilidade e a segurança para sempre (Is 32,17). E a frase profética, opus iustitiae pax, foi adotada explicitamente
por Pio XII. Todavia, Francisco explicita: “Também aqui falamos, não duma
justiça declamada, teorizada, planificada, mas da justiça praticada, vivida” – fruto, não
do mundo, mas do espírito.
E, socorrendo-se do Novo
Testamento, clarifica:
O pleno cumprimento da justiça é amar o próximo como a nós mesmos
(cf Mt 22,39; Rm 13,9). Quando, ajudados pela graça de
Deus, seguimos este mandamento (…). Aquela pessoa, aquele povo que eu via como
inimigo, na realidade tem o meu próprio rosto, o meu próprio coração, a minha
própria alma. Temos o mesmo Pai nos Céus. Então a verdadeira justiça é fazer
àquela pessoa, àquele povo, o mesmo que eu queria que fosse feito a mim, ao meu
povo (cf Mt 7,12).
Paulo, na Carta ao Colossenses, dá-nos
a receita para fazer a paz:
Revesti-vos de sentimentos de misericórdia, de bondade, de
humildade, de mansidão, de paciência, suportando-vos uns aos outros e
perdoando-vos mutuamente, se alguém tiver razão de queixa contra outro. Tal
como o Senhor vos perdoou, fazei-o vós também» (Col 3,12-13).
Porém, como sublinha o Papa, para
não cairmos num certo moralismo ilusório, não devemos esquecer que “a paz é dom de Deus, não em sentido
mágico, mas porque Ele, com o seu Espírito, pode imprimir estas atitudes nos
nossos corações e na nossa carne, e fazer de nós verdadeiros instrumentos da
sua paz”. Por outro lado, “o Apóstolo diz que a paz é dom de Deus, porque é
fruto da sua reconciliação connosco”. Por isso, “somente se o homem se deixar
reconciliar com Deus, é que pode tornar-se um obreiro de paz”.
E a construção e o escopo da paz
devem seguir, não a bitola dos homens, mas a bitola de Cristo, o Deus feiro homem,
segundo o legado que, num contexto de mandamento novo do amor fraterno, do dom
do Espírito e de enaltecimento das obras do Pai, Ele mesmo entregou aos
discípulos: “Deixo-vos a paz; dou-vos a minha paz. Não é como a dá o mundo, que Eu
vo-la dou” (Jo 14,27).
Para tanto, cada um e todos precisamos
de invocar de Deus, pela intercessão da Rainha da Paz, “a graça de termos um
coração simples, a graça da paciência, a graça de lutar e trabalhar pela
justiça, de sermos misericordiosos, de trabalhar pela paz, de semear a paz e
não guerra e discórdia”, pois, “este é o caminho que nos torna felizes, que nos
torna bem-aventurados”.
***
Aos sacerdotes, religiosas,
religiosos e seminaristas, ainda em consonância com os testemunhos que ouvira,
pediu que fizessem sempre o oposto da crueldade, contra a história da guerra
cruel por que o seu povo passara. Sublinhou que, num mundo que vive em ambiente
de guerra mundial, em que vemos muitíssimas crueldades, é preciso fazer
sobressair as atitudes de ternura, de fraternidade e de perdão – levando em
cada dia a Cruz de Jesus Cristo. “É assim que a Igreja, a santa Mãe Igreja, vos
quer: pequenos, pequenos mártires, tendo diante dos olhos estes pequenos
mártires, pequenas testemunhas da Cruz de Jesus”.
***
Aos jovens, no encontro que teve com
eles no Centro diocesano juvenil João Paulo II, depois de compreender todas as
dificuldades e tentações existenciais por que estão a passar e apelado à sua
superação, também falou da vocação à filiação divina e à fraternidade universal,
semeadoras de paz: “A fé cristã ensina-nos que somos chamados a um destino eterno,
chamados a ser filhos de Deus e irmãos em Cristo (cf 1Jo 3,1), a ser criadores de fraternidade por amor a Cristo”. E tal
desiderato consegue-se também, aqui e agora, através do “empenho no diálogo
ecuménico e inter-religioso abraçado por vós, jovens católicos e ortodoxos, com
o envolvimento também do mundo juvenil muçulmano”. E salientou a importância da
atividade daquele centro juvenil em “iniciativas de conhecimento mútuo e de
solidariedade, para favorecer a convivência pacífica entre as diferentes
pertenças étnicas e religiosas”, encorajando os jovens “a perseverar
confiadamente nesta obra, comprometendo-se nos projetos comuns, com gestos
concretos de proximidade e ajuda aos mais pobres e necessitados”. Também esta
será uma forma de construir a paz, de educar para a paz e de exercitar a paz.
***
Finalmente, não posso deixar de
salientar algumas das palavras dirigidas às diversas autoridades e ao corpo
diplomático, com quem se encontrou no palácio presidencial:
Sobre a mudança operada nos últimos tempos:
É para mim motivo de grande alegria encontrar-me nesta cidade que,
depois de tantos sofrimentos por causa dos conflitos sangrentos do século
passado, voltou a ser lugar de diálogo e convivência pacífica. Passou duma
cultura do confronto, da guerra, a uma cultura
do encontro.
Salientando a exemplaridade deste país mo campo da convivência e
do diálogo:
Sarajevo e a Bósnia-Herzegovina revestem um significado especial
para a Europa e para o mundo inteiro. Há séculos que, nestes territórios, estão
presentes comunidades que professam religiões diferentes e pertencem a
distintas etnias e culturas, cada uma das quais se sente rica com as suas caraterísticas
peculiares e ciosa das suas tradições específicas, mas sem que isto tenha
impedido uma prolongada vivência de mútuas relações amistosas e cordiais.
Quanto à textura arquitetónica da cidade, que espelha a
convivência e deve induzir à construção de mais pontes de diálogo e ao zelo
pelas existentes:
A própria estrutura arquitectónica de Sarajevo apresenta traços
visíveis e consistentes disso mesmo, já que, no seu tecido urbanístico, surgem
– a curta distância umas das outras – sinagogas, igrejas e mesquitas, a ponto
de a cidade receber o cognome de ‘Jerusalém da Europa’. Na verdade, constitui
uma encruzilhada de culturas, nações e religiões; e semelhante função exige que
se construam sem cessar novas pontes e se cuidem e restaurem as existentes,
para se garantir uma comunicação fácil, segura e civil.
E no atinente às necessárias consequências em prol da construção da
paz e do diálogo:
Precisamos de comunicar, descobrir as riquezas de cada um, valorizar
aquilo que nos une e olhar as diferenças como possibilidades de crescimento no
respeito por todos. Torna-se necessário um diálogo paciente e confiante, para
que as pessoas, as famílias e as comunidades possam transmitir os valores da
própria cultura e acolher o bem proveniente das experiências alheias. Assim, as
próprias feridas graves do passado recente têm possibilidade de cicatrizar e
pode-se olhar com esperança para o futuro, enfrentando, com ânimo liberto de
medos e rancores, os problemas diários que se colocam a cada comunidade civil.
***
Belo e profícuo programa de pedagogia
do diálogo conducente à paz – a batalha de cada dia, a tarefa de todos e de
cada um, um dos tópicos da prece diária de cada comunidade crente!
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