domingo, 7 de junho de 2015

Bem-aventurados os pacificadores!

O Papa Francisco deslocou-se à Bósnia-Herzegovina, a 6 de junho, como peregrino e arauto da paz e do diálogo que a ela conduz, na convicção profunda de que “paz é o sonho de Deus”, “o projeto de Deus para a humanidade, para a história, com toda a criação” (cf homilia em Sarajevo).
Não há dúvida de que Francisco vive a sério e quer fazer viver as palavras do Profeta Isaías: Que formosos são sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia a paz, que apregoa a boa-nova e que proclama a salvação! (Is 52,7). Pensa e sente, no entanto, que não basta pregar a paz, já que – verifica o Papa – “todos são capazes de a proclamar, até de maneira hipócrita ou mesmo enganadora”. É preciso anunciá-la sem peias e de modo profético, o que implica o forte e denodado compromisso com ela, compromisso de que não é legítimo desistir nem desviar-se.
Nas palavras de Francisco em Sarejevo, “o projeto de paz, da parte de Deus”, “encontra sempre oposição por parte do homem e por parte do maligno”. Tal como nos demais momentos da História “também no nosso tempo, a aspiração pela paz e o compromisso de a construir colidem com o facto dos numerosos conflitos armados existentes no mundo”. O Pontífice não tem pejo em classificar o ambiente que se vive atualmente no mundo como o de “uma espécie de terceira guerra mundial travada aos pedaços”, acentuando que, “no contexto da comunicação global, sente-se um clima de guerra”.
E aponta algumas das causas dos conflitos bélicos, que são caprichosas e interesseiras:
Há quem queira deliberadamente criar e fomentar este clima, de modo particular aqueles que procuram o conflito entre culturas e civilizações diferentes e também quantos, para vender armas, especulam sobre as guerras.

Depois, recorda algumas das nefastas consequências anti-humanitárias:
Mas a guerra significa crianças, mulheres e idosos nos campos de refugiados; significa deslocamentos forçados; significa casas, estradas, fábricas destruídas; significa, sobretudo, tantas vidas destroçadas.

E evidencia a experiência ainda perdurante na memória e na vida coletiva deste povo, que faz seu o apelo de Paulo VI, não mais a guerra:
Bem o sabeis vós, que experimentastes isto mesmo precisamente aqui: quanto sofrimento, quanta destruição, quanta tribulação! Hoje, amados irmãos e irmãs, desta cidade ergue-se mais uma vez o grito do povo de Deus e de todos os homens e mulheres de boa vontade: Nunca mais a guerra!

Também no encontro com os sacerdotes, religiosas, religiosos e seminaristas na catedral, depois de ouvir, da boca de três pessoas, os testemunhos de quem sofreu os horrores da guerra, declarou em discurso espontâneo, pois, face ao que ouviu, entregara ao cardeal arcebispo de Sarajevo o belo texto que tinha escrito que tinha escrito:
Esta é a memória do vosso povo! Um povo que esquece a sua memória não tem futuro. Esta é a memória dos vossos pais e mães na fé: aqui falaram apenas três pessoas, mas por detrás delas existem muitos e muitas que sofreram as mesmas coisas.

No entanto, o Papa não deixa de lançar um pertinente desafio, mesmo a estes que já muito sofreram:
Não tendes direito de esquecer a vossa história. Não para vos vingardes, mas para fazerdes a paz. Não para olhar [estes testemunhos] como uma coisa estranha, mas para amar como eles amaram. No vosso sangue, na vossa vocação, há a vocação, há o sangue destes três mártires. E há o sangue e há a vocação de tantas religiosas, tantos padres, tantos seminaristas. (…). Guardar a memória, para fazer paz. Algumas palavras ficaram-me no coração. Uma, repetida: Perdoo. Um homem, uma mulher que se consagra ao serviço do Senhor e não sabe perdoar, não serve. Perdoar a um amigo, com o qual tinhas litigado, e te disse um palavrão, ou a uma religiosa que tem ciúmes de ti, não é muito difícil. Mas perdoar a quem te bate, a quem te tortura, a quem te espezinha, a quem ameaça matar-te com a carabina, isto é difícil. E eles fizeram-no, e eles pregam para que se faça!
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Voltando ao teor da homilia papal… Perante o ambiente de conflito generalizado em termos dos acontecimentos e dos mecanismos de comunicação, Francisco cita do Evangelho de Mateus o pregão de Cristo – que atravessa as nuvens como um raio de sol – Felizes os pacificadores» (Mt 5,9), os que efetivamente fazem a paz – um pouco mais além do que proclama Isaías. É preciso anunciar a paz, fazer a paz e pregar a paz. Porém, não se pode olvidar que “fazer a paz é um trabalho artesanal: requer paixão, paciência, experiência, tenacidade”. A paz não resulta de automatismos inscritos no coração ou na vida dos homens; requer esforço, educação e exercício. E o Papa proclama: “Felizes são aqueles que semeiam paz com as suas ações diárias, com atitudes e gestos de serviço, de fraternidade, de diálogo, de misericórdia...”. A estes reconhece-se, na linha de Cristo, o direito à filiação divina:
Estes, sim, serão chamados filhos de Deus, porque Deus semeia paz, sempre, por todo o lado; na plenitude dos tempos, semeou no mundo o seu Filho, para que tivéssemos a paz! Fazer a paz é um trabalho que se deve realizar todos os dias, passo a passo, sem nunca nos cansarmos.

Mas o Bispo de Roma, em visita a uma das Igrejas sofredoras, não deixa de recordar como se constrói a paz: a paz será obra da justiça e o fruto da justiça será a tranquilidade e a segurança para sempre (Is 32,17). E a frase profética, opus iustitiae pax, foi adotada explicitamente por Pio XII. Todavia, Francisco explicita: “Também aqui falamos, não duma justiça declamada, teorizada, planificada, mas da justiça praticada, vivida” – fruto, não do mundo, mas do espírito.
E, socorrendo-se do Novo Testamento, clarifica:
O pleno cumprimento da justiça é amar o próximo como a nós mesmos (cf Mt 22,39; Rm 13,9). Quando, ajudados pela graça de Deus, seguimos este mandamento (…). Aquela pessoa, aquele povo que eu via como inimigo, na realidade tem o meu próprio rosto, o meu próprio coração, a minha própria alma. Temos o mesmo Pai nos Céus. Então a verdadeira justiça é fazer àquela pessoa, àquele povo, o mesmo que eu queria que fosse feito a mim, ao meu povo (cf Mt 7,12).

Paulo, na Carta ao Colossenses, dá-nos a receita para fazer a paz:
Revesti-vos de sentimentos de misericórdia, de bondade, de humildade, de mansidão, de paciência, suportando-vos uns aos outros e perdoando-vos mutuamente, se alguém tiver razão de queixa contra outro. Tal como o Senhor vos perdoou, fazei-o vós também» (Col 3,12-13).

Porém, como sublinha o Papa, para não cairmos num certo moralismo ilusório, não devemos esquecer que “a paz é dom de Deus, não em sentido mágico, mas porque Ele, com o seu Espírito, pode imprimir estas atitudes nos nossos corações e na nossa carne, e fazer de nós verdadeiros instrumentos da sua paz”. Por outro lado, “o Apóstolo diz que a paz é dom de Deus, porque é fruto da sua reconciliação connosco”. Por isso, “somente se o homem se deixar reconciliar com Deus, é que pode tornar-se um obreiro de paz”.
E a construção e o escopo da paz devem seguir, não a bitola dos homens, mas a bitola de Cristo, o Deus feiro homem, segundo o legado que, num contexto de mandamento novo do amor fraterno, do dom do Espírito e de enaltecimento das obras do Pai, Ele mesmo entregou aos discípulos: “Deixo-vos a paz; dou-vos a minha paz. Não é como a dá o mundo, que Eu vo-la dou” (Jo 14,27).
Para tanto, cada um e todos precisamos de invocar de Deus, pela intercessão da Rainha da Paz, “a graça de termos um coração simples, a graça da paciência, a graça de lutar e trabalhar pela justiça, de sermos misericordiosos, de trabalhar pela paz, de semear a paz e não guerra e discórdia”, pois, “este é o caminho que nos torna felizes, que nos torna bem-aventurados”.
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Aos sacerdotes, religiosas, religiosos e seminaristas, ainda em consonância com os testemunhos que ouvira, pediu que fizessem sempre o oposto da crueldade, contra a história da guerra cruel por que o seu povo passara. Sublinhou que, num mundo que vive em ambiente de guerra mundial, em que vemos muitíssimas crueldades, é preciso fazer sobressair as atitudes de ternura, de fraternidade e de perdão – levando em cada dia a Cruz de Jesus Cristo. “É assim que a Igreja, a santa Mãe Igreja, vos quer: pequenos, pequenos mártires, tendo diante dos olhos estes pequenos mártires, pequenas testemunhas da Cruz de Jesus”.
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Aos jovens, no encontro que teve com eles no Centro diocesano juvenil João Paulo II, depois de compreender todas as dificuldades e tentações existenciais por que estão a passar e apelado à sua superação, também falou da vocação à filiação divina e à fraternidade universal, semeadoras de paz: “A fé cristã ensina-nos que somos chamados a um destino eterno, chamados a ser filhos de Deus e irmãos em Cristo (cf 1Jo 3,1), a ser criadores de fraternidade por amor a Cristo”. E tal desiderato consegue-se também, aqui e agora, através do “empenho no diálogo ecuménico e inter-religioso abraçado por vós, jovens católicos e ortodoxos, com o envolvimento também do mundo juvenil muçulmano”. E salientou a importância da atividade daquele centro juvenil em “iniciativas de conhecimento mútuo e de solidariedade, para favorecer a convivência pacífica entre as diferentes pertenças étnicas e religiosas”, encorajando os jovens “a perseverar confiadamente nesta obra, comprometendo-se nos projetos comuns, com gestos concretos de proximidade e ajuda aos mais pobres e necessitados”. Também esta será uma forma de construir a paz, de educar para a paz e de exercitar a paz.
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Finalmente, não posso deixar de salientar algumas das palavras dirigidas às diversas autoridades e ao corpo diplomático, com quem se encontrou no palácio presidencial:
Sobre a mudança operada nos últimos tempos:
É para mim motivo de grande alegria encontrar-me nesta cidade que, depois de tantos sofrimentos por causa dos conflitos sangrentos do século passado, voltou a ser lugar de diálogo e convivência pacífica. Passou duma cultura do confronto, da guerra, a uma cultura do encontro.

Salientando a exemplaridade deste país mo campo da convivência e do diálogo:
Sarajevo e a Bósnia-Herzegovina revestem um significado especial para a Europa e para o mundo inteiro. Há séculos que, nestes territórios, estão presentes comunidades que professam religiões diferentes e pertencem a distintas etnias e culturas, cada uma das quais se sente rica com as suas caraterísticas peculiares e ciosa das suas tradições específicas, mas sem que isto tenha impedido uma prolongada vivência de mútuas relações amistosas e cordiais.

Quanto à textura arquitetónica da cidade, que espelha a convivência e deve induzir à construção de mais pontes de diálogo e ao zelo pelas existentes:
A própria estrutura arquitectónica de Sarajevo apresenta traços visíveis e consistentes disso mesmo, já que, no seu tecido urbanístico, surgem – a curta distância umas das outras – sinagogas, igrejas e mesquitas, a ponto de a cidade receber o cognome de ‘Jerusalém da Europa’. Na verdade, constitui uma encruzilhada de culturas, nações e religiões; e semelhante função exige que se construam sem cessar novas pontes e se cuidem e restaurem as existentes, para se garantir uma comunicação fácil, segura e civil.

E no atinente às necessárias consequências em prol da construção da paz e do diálogo:
Precisamos de comunicar, descobrir as riquezas de cada um, valorizar aquilo que nos une e olhar as diferenças como possibilidades de crescimento no respeito por todos. Torna-se necessário um diálogo paciente e confiante, para que as pessoas, as famílias e as comunidades possam transmitir os valores da própria cultura e acolher o bem proveniente das experiências alheias. Assim, as próprias feridas graves do passado recente têm possibilidade de cicatrizar e pode-se olhar com esperança para o futuro, enfrentando, com ânimo liberto de medos e rancores, os problemas diários que se colocam a cada comunidade civil.
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Belo e profícuo programa de pedagogia do diálogo conducente à paz – a batalha de cada dia, a tarefa de todos e de cada um, um dos tópicos da prece diária de cada comunidade crente!

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