Não gosto da explicação das coisas
de Estado a partir de exemplos do quotidiano, embora as opções políticas tanto
mexam com a vida quotidiana das pessoas e das famílias como com as decisões que
as pessoas têm de tomar em termos do seu futuro. Todavia, como algumas das
figuras públicas raciocinam muitas vezes a partir desses exemplos, não posso furtar-me
a embarcar nessa mesma lógica.
É recorrente comparar-se a
situação da crise do país ao doente que não pode curar a sua pneumonia com
aspirinas, mas com medicamentos que ataquem o problema na origem. Com efeito de
médico e de louco todos temos um pouco, só que de médico alguns têm muito pouco.
***
A Dra. Manuela Ferreira Leite, que foi Ministra da Educação e Ministra das Finanças,
em declarações à TVI 24, a 6 de fevereiro do ano passado, dizia que o Governo
desfez o sistema de Segurança Social. Chegou mesmo a considerar inadmissível que
se mexa nos rendimentos dos pensionistas e reformados sem ter antes analisado as
consequências e sem a certeza da não inconstitucionalidade das medidas tomadas
em relação a tais matérias. E explicava
em detalhe:
“Não discuto a
necessidade de redução do défice, mas discuto seriamente o caminho para lá
chegar, e o caminho através de medidas desta natureza, em que estamos a
desfazer o sistema de segurança social, será um caminho contra o qual sempre
estarei”.
Aquelas
palavras tinham a ver com a Segurança Social, mas, em particular, com a
polémica CES (Contribuição Extraordinária de Solidariedade), mormente quanto aos problemas informáticos
encontrados para que fosse aplicada. A também ex-líder do PSD considerava a
situação “surrealista” e como representando uma “falta de consideração e de
respeito, pelos pensionistas” da parte de quem não tem “a mínima das noções do
que é e do que significa tirar ao pensionista determinado montante mensal. E, pegando
num exemplo do quotidiano, dizia:
“Para pessoas que contam
aos euros por dia com que comem, pode significar comer um bocadito de frango ou
comer só sopa com pão. Se as pessoas tivessem consciência disto não mexiam no
modelo destes sem ter a consciência de que não era possível mexer-se
levianamente num sistema que toca com este tipo de pessoas”.
***
Entretanto,
aqui há uns dias, uma alta figura do mundo académico assemelhava o problema da (in)sustentabilidade
da Segurança Social ao caso da mãe que tem apenas um frango para distribuir por
oito membros da família. Como é óbvio – escrevia a prestigiada professora universitária
com funções de direção – a cada um caberá um oitavo do frango, não sendo, pois,
legítimo nenhum vir reivindicar a metade que a mãe em tempo prometera a cada
um.
Parece haver
aqui toda a razão. Todavia, pensemos um pouquito. O raciocínio será correto em
caso de efetiva penúria, que não em caso de desleixo, como não se ter
abastecido a tempo. Mas pior seria se a mãe pertencesse, por ironia do destino,
a um grupo de pessoas com influência que tivesse ordenado o encerramento de
todos os aviários da região ou bloqueado o fornecimento de todas as rações,
induzido ao consumo de todos os ovos ou obrigado todos os produtores – além do aumento
brutal de impostos, taxas e tarifas – a contribuir com um imposto extraordinário
por cada frango vendido, para a sobrevivência de uma vacaria dum grupo agroindustrial
poderoso.
Embora considere
capciosa a aproximação da Segurança Social à vida real, penso que, positis ponendis, foi isto o que
aconteceu, para raciocinar à moda de Ferreira Leite, com quem concordo, e com a
mencionada figura do mundo académico, de quem discordo.
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O Público, de 31 de maio, dá-nos conta dos
dados do Ageing Report, documento
divulgado recentemente pela Comissão Europeia (CE), os quais mostram que, quando se compara o
valor bruto da pensão com o último salário, os cortes decorrentes do
funcionamento do sistema são já significativos. A taxa de substituição, em
Portugal, deverá passar dos 57,5% em 2013 (acima
da média de 46,3% da zona euro) para
44,8% em 2025 e para 30,7% em 2060 (valor
mais baixo do que a média de 38,6% da zona euro).
Evolução pior só em Espanha, que passa de uma taxa média de 79% para um rácio
que nem chega aos 49%.
Numa altura
em que o debate sobre a sustentabilidade financeira da Segurança Social reentrou
na ordem do dia, o que os números mostram é que o sistema enfrenta um grave
problema relacionado com o valor das pensões que se propõe pagar a quem agora
está ou ainda vai entrar no mercado de trabalho. A isto, reage o PSD/CDS considerando
a situação insustentável, enquanto o PS garante que há uma solução viável.
Se formos
pelo lado da descida da Taxa Social Única (TSU) para os trabalhadores, topamos a crítica
dentro do PS e mesmo no interior da coligação e da parte do PCP. A redução da
TSU e a sustentabilidade do sistema de Segurança Social ultrapassam a divisão
política esquerda/direita. O CDS já fez uma tempestade na coligação contra a
descida das contribuições das empresas e no PS o debate continua vivo em torno
da TSU dos trabalhadores.
Sobre a
questão se o atual modelo de Segurança Social é sustentável, a coligação
PSD/CDS diz que não e propõe reduzir a despesa; o PS, por seu turno, estriba a
solução no crescimento do emprego e na diversificação das fontes de
financiamento para suportar o sistema.
A
proposta do cenário macroeconómico do PS da redução temporária da TSU dos
trabalhadores (com
implicações no pagamento de pensões futuras) e da descida
das contribuições das empresas gerou críticas internas. Tanto o sindicalista da
UGT José Abraão como a presidente da APRE (Associação
de Pensionistas e Reformados),
Maria do Rosário Gama, se fizeram ouvir sobre o risco da sustentabilidade da
Segurança Social. E outro socialista preocupado com a questão, o deputado Pedro
Nuno Santos, apontou o dedo à proposta de descer a TSU dos empregadores, por
ser permanente. E o projeto de programa eleitoral do PS passou a prever uma
avaliação dos efeitos da medida. Mas as vozes críticas da redução da TSU ainda
não se calaram. Mesmo fora do PS, a medida é considerada um risco não só mais à
esquerda (PCP) como
pelo PSD e pelo CDS. Artur Rego, deputado do CDS, que acompanha as questões da
Segurança Social, chama-lhe “um desastre”. E pergunta “porque é que os
socialistas dizem que no futuro vão ter de reduzir as pensões em pagamento”. O
Governo assume que é precisa uma redução de despesa de 600 milhões de euros e a Ministra das Finanças causou incómodo na coligação ao reconhecer que o corte
das pensões em pagamento não é uma hipótese excluída.
Maria
Luís Albuquerque fez, recentemente, no Parlamento, as contas às propostas
socialistas (incluindo a transferência de 10% do Fundo de
Estabilização Financeira para a reabilitação urbana) concluindo pelo putativo agravamento do
passivo da Segurança Social em 12,4 mil milhões de euros. O ex-ministro
socialista da Segurança Social Vieira da Silva contrapôs: “Se não fizermos
nada, continua a acontecer isto” [défice
do sistema]. Por sua vez, a direção do PS teima em acreditar
que a redução temporária da TSU para os trabalhadores permitirá devolver
rendimento às famílias, estimular a economia e, em última instância, criar
emprego – o motor de uma Segurança Social financeiramente saudável.
Vieira
da Silva esclareceu que a política de desvalorização dos salários tem
consequências nas pensões futuras e acusa a coligação de ser incoerente. “Quem
aceitou de bom grado uma diminuição dos rendimentos atuais penalizando os
futuros está a aceitar que o aumento dos rendimentos atuais vai penalizar os
futuros”.
Porém, Artur Rego entende que o PS só está a
mascarar a realidade: “Toda agente sabe a verdade. E a verdade é que o sistema
não é sustentável.” Este deputado considera um erro o poder político ter
tentado resolver um problema de desemprego estrutural através das reformas
antecipadas de milhares de pessoas, já que, para resolver o problema do buraco
financeiro da Segurança Social, será necessário “alterar o modelo de
contribuição”. Uma das formas é que as empresas passem a contribuir por cada
posto de trabalho e não por cada trabalhador, já que este tem sido substituído
por tecnologia. A outra é que o poder político “tenha a coragem de lançar uma
contribuição sobre o lucro líquido das empresas para a Segurança Social”. E ainda
diz que a colocação de um teto máximo nas pensões futuras “é essencial”.
Ora, o
plafonamento das reformas implica que os trabalhadores passem a descontar também
para sistemas privados já que têm um teto máximo no sistema público. É aqui que
se torna mais visível a clivagem direita/esquerda. Pedro Nunes declara-se “totalmente
contra isso”. E Vieira da Silva considera que a eficácia desses mecanismos para
a sustentabilidade do sistema ainda está por provar.
***
Portugal
é dos países em que se projeta um agravamento mais acentuado do peso da população
idosa face à população em idade ativa. Em 2013, o número de pessoas com mais de
65 anos equivalia a 29,8% da população entre os 15 e os 65 anos, valor próximo
da média da zona euro, que é de 29,3%. Mas este indicador subirá para 63,9% até
2060, ao passo que na zona euro ficará pelos 51,1%.
A compensar este forte efeito demográfico, o nosso
sistema de pensões, da forma como está construído, tenderá para uma forte
redução do valor da pensão recebida face ao último salário. É este fundo corte
no valor das pensões (quando
comparadas com os salários) que
permite que, apesar da forte pressão demográfica, a previsão para o peso das
pensões no PIB nas próximas décadas não revele um agravamento preocupante.
Aliás, os dados da CE apontam para que as pensões passem de 13,8% do PIB em
2013 para 13,1% em 2060 – uma ligeira redução. O problema reside no facto de,
antes de começar a descer, o encargo com pensões atingir em 2033 um máximo,
acima da barreira dos 15%, o que constituirá uma ameaça à sustentabilidade do
sistema, em cenário de fraco crescimento demográfico. Os dados da CE também mostram
como podem ser voláteis as análises da sustentabilidade do sistema de pensões.
Três anos antes, a anterior edição do mesmo relatório era feita com dados até
2010, ou seja, anteriores à recessão económica portuguesa. Então, os
indicadores eram diferentes, quer ao nível da evolução demográfica (hoje prevê-se uma redução populacional mais
drástica), quer do PIB (com o
crescimento potencial da economia a ser bastante mais baixo). No relatório atual, face ao publicado em 2012,
o peso das pensões no PIB é mais alto, mercê do efeito da recessão na economia
e na população.
***
As causas
do rombo na Segurança Social são, entre outras: o desemprego; a emigração; o
envelhecimento populacional; a redução da população ativa; a baixa de salários;
a falta de investimento público e privado; as dívidas à Segurança Social (de patrões enquanto patrões, incluindo o
Estado, e não entregando as verbas retidas dos trabalhadores), que teimam em prescrever; e as demais dificuldades
da economia. A isto acresce a falta de diversificação de financiamento e a
multiplicidade de encargos do sistema, incluindo a compra de dívida pública.
A solução,
que não se reduz a um problema orçamental, como pensa o Governo, passa por
vários mecanismos, de que ressaltam a diversificação das fontes de
financiamento e a inclusão do valor acrescentado bruto das empresas.
O PCP,
por si, prevê obrigar as grandes empresas (com
lucros maiores) a contribuir mais para a Segurança Social,
acabar com as isenções e reduções na TSU e reforçar o Fundo de Estabilização
Financeira do sistema através do imposto sobre as transações financeiras.
À questão
formulada pelo Público, o partido
respondeu destacando quatro medidas: a eliminação das isenções e reduções da
TSU, que fazem perder mais de 500 milhões [de
euros] de receitas por ano; o combate às dívidas à
Segurança Social (e a sua
recuperação), que cresceram enormemente com o Governo
PSD/CDS-PP, devendo ultrapassar largamente os 10.000 milhões de euros; o
completamento do atual sistema de cálculo das contribuições com um outro
baseado no lucro das empresas (ou
seja, as grandes empresas, com lucros superiores a meio milhão de euros,
contribuiriam mais para o sistema); e o
reforço do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social através do
imposto de 0,25% sobre as transações financeiras. A estas medidas associam-se
outras, como a aposta na produção nacional, na criação de emprego, no aumento
dos salários e do salário mínimo nacional.
Pedro Marques, economista e ex-secretário de
Estado a Segurança Social do PS, considera a adequação social das pensões como
a questão emergente do drama demográfico por que passa o país e que o relatório
da CE confirma. Contra a ideia de que estamos ante a insustentabilidade
financeira do sistema, “que depois não encontra suporte nos relatórios
internacionais, o maior desafio é a questão da adequação social das pensões”. É
aí que devem ser tomadas medidas, que não passam por mais cortes nem por
mudanças radicais no sistema.
Também o economista Jorge Bravo destaca o
problema da adequação do valor das pensões como um dos desafios para o futuro.
Mas para este especialista, que está a participar na elaboração do programa
eleitoral do PSD, isso é um sinal de que o sistema de repartição falhou e que é
preciso mudar a abordagem. E questiona: Com
carreiras contributivas próximas dos 40 anos, está a ver alguém que se reforma
e que no mês seguinte vai viver com 30% do salário que tinha antes? Isto não é
um sinal do falhanço do sistema de proteção social?
***
O problema
é sistémico, mas resulta da inversão da opção política: o sistema de pensões deixou
de assentar no sistema mutualista (contributivo/capitalizante/restitutivo) e passou a estribar-se no modelo de
repartição em que as contribuições e quotizações pagas por empresas e
trabalhadores (através
da TSU) servem para pagar as atuais pensões e outras
prestações contributivas (como o
subsídio de desemprego, de doença, parental, RSI, entre outros). O desconto constitui apenas a forma de o
trabalhador garantir o direito a uma pensão quando se reformar, a ser paga
pelos ativos de então, acrescendo a este mecanismo o fundo de reserva para
obviar a eventualidades futuras.
Talvez seja
de repensar o modelo e torná-lo mais consequente com as justas expectativas
criadas e com a equitativa compensação a quem teve uma longa vida ativa.
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