Também a AOFA (Associação de Oficiais das Forças Armadas) tomou a
decisão de não participar nas comemorações do 10 de Junho, presididas por
Cavaco Silva, em Lamego, devido ao modo como os militares vêm sendo tratados
pelos sucessivos governos, sendo a gota de água que fez transbordar a taça da
indignação dos oficiais a recente promulgação do novo EMFAR (Estatuto dos Militares das Forças Armadas).
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É certo que o modo despiciente com
que o poder político encara a instituição militar começou no consulado
primoministerial de Cavaco Silva, por exemplo: com a famigerada lei – conhecida
como lei dos coronéis – que levou
inúmeros oficiais a solicitar a passagem a reserva e à reforma, com o fito da reestruturação
dos serviços do Ministério da Defesa Nacional (MDN),
substituindo muitos dos seus ocupantes militares por civis; com a extinção das
unidades de comandos; e com a preparação da supressão do serviço militar
obrigatório. Se bem me recordo, como reação à política definida pelo Governo, o
então Presidente Mário Soares, que alguns dizem não nutrir especial afeição
pelas forças armadas, mas era justo, opôs o seu veto político à aprovação da
dita lei dos coronéis, que veio a promulgar pelo facto de ela ter sido confirmada
pela Assembleia da República nos termos constitucionais; e, antes da sua
efetiva extinção, impôs ao Regimento de Comandos o grau de Membro Honorário da
Ordem Militar de Avis, no que foi acompanhado pelo Ministro da Defesa Nacional.
Desde então, a degradação da
situação das forças armadas não parou de se acentuar, muito embora os militares
tenham sabido mover-se por entre as adversidades conseguindo desempenhar-se
cabalmente das missões que lhes são confiadas. Todavia, instituiu-se o regime
de voluntariado que, por via da contratação, constituiu uma alternativa
minorada ao serviço militar obrigatório (SMO) ou serviço
efetivo normal (SEN); criou-se o
Dia da Defesa Nacional, jornada
obrigatória para ensejo de motivação para a vida militar e abriu-se a instituição
militar aos indivíduos do sexo feminino.
E o MDN passou a ter servidores
civis em maior número que o dos militares. Nada mal, se a passagem tivesse sido
mais progressiva (com a
aplicação da lei dos coronéis alguns militares reservistas e/ou reformados
tiveram de ser repescados para os serviços do MDN) e se o serviço prestado fosse de
maior qualidade. E, se é certo que a defesa não se cinge à componente
estritamente militar – e, segundo alguns, nem é esta a componente mais
importante da defesa – não podem os poderes políticos dar-se ao luxo de
subestimar as suas forças armadas, às quais “incumbe a defesa militar da República” (CRP, art.º 275.º/1), a satisfação dos “compromissos
internacionais do Estado Português no âmbito militar e participar em
missões humanitárias e de paz assumidas pelas organizações internacionais
de que Portugal faça parte” (id, n.º 5) e, eventualmente, a colaboração “em missões de proteção civil,
em tarefas relacionadas com a satisfação de necessidades básicas e a melhoria
da qualidade de vida das populações, e em ações de cooperação
técnico-militar no âmbito da política nacional de cooperação” (id, n.º 6).
Ademais, o atual Presidente
da República e Comandante Supremo das Forças Armadas é o primeiro presidente da
nova República que cumpriu o serviço militar, pelo que se lhe exige, em
coerência com a sua alegada e apurada ciência das matérias presidenciais, uma
especial perceção da problemática militar. Porém, os ministros civis, desde o
seu tempo de primeiro-ministro, não têm sido melhores do que ele (se, em certa medida, excetuarmos o Dr. Paulo
Portas). A OGMA – Indústria
Aeronáutica de Portugal, SA foi privatizada em 65% do capital para a
brasileira Embraer (Um determinado MDN teve a ousadia de afirmar
publicamente que as OGMA não sabiam que estavam a reparar motores de avião da
Indonésia porque os motores não têm n.º de origem!) e os ENVC (Estaleiros Navais de Viana do Castelo) foram subconcessionados ao grupo Martifer; e
a falta de meios nas Forças Armadas para o quotidiano é recorrente.
Mas o atual MDN tem sido exemplar no tratamento despiciente dos militares.
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A respeito do novo EMFAR, o presidente da AOFA), Manuel Martins Pereira Cracel,
declarou à agência Lusa:
“Seria uma incongruência
manifestar descontentamento com o que se passa com os militares e agora
participar num evento com o qual até nos sentimos sentimentalmente irmanados.
Depois dos acontecimentos recentes que culminaram na publicação do estatuto que
penaliza gravemente os militares e desrespeita e não honra aqueles que juraram
defender a pátria, não faz sentido”.
O mesmo responsável fez ainda questão de
lembrar que, há poucos dias (mais
propriamente, a 29 de maio), uma pequena,
mas simbólica delegação da AOFA, representativa dos três ramos das Forças Armadas,
quis devolver condecorações recebidas por serviços prestados em combate (com um documento justificativo desta postura) para contestar o novo EMFAR, que, por
exemplo, estabelece o aumento da idade da reforma de 65 para 66 anos, a partir
de 2016, além de desenhar um outro modelo de convocação de militares na reserva
para o desempenho de funções, mas foi impedida de se aproximar do Palácio de
Belém por um forte cordão policial, como se de uma grande manifestação se
tratasse. “Não fazia agora sentido estarmos presentes quando num gesto
simbólico quisemos entregar as medalhas com que fomos condecorados” – recordou.
Com esta atitude, a AOFA engrossou a fila dos
convidados que declinaram o convite presidencial, juntando-se à ANS (Associação Nacional de Sargentos) e à AP (Associação
Nacional de Praças), que
aduziram a ausência como protesto pela forma despiciente como os militares são
tratados pelo poder político.
Desta forma, o coronel Pereira Cracel adiantou
à Lusa que, em contrapartida, os oficiais associados da AOFA iriam, este ano,
comemorar o 10 de Junho em Belém, junto ao monumento que homenageia os
combatentes do Ultramar, à semelhança do que tem acontecido em anos anteriores,
já que, habitualmente e paralelamente às cerimónias presididas pelo Comandante
Supremo das Forças, realizam uma cerimónia de homenagem neste dia.
Assim, a AOFA juntou-se, este ano, à ANS e à AP
no boicote que estes têm feito às comemorações do 10 de junho, que decorrem em
Lamego, neste ano.
Neste sentido, José Gonçalves, presidente da
ANS, declarou:
“Os serviços da Presidência e o Presidente têm
tido uma ação incompreensível para com homens honrados que servem o país em
várias tomadas de posição e perante medidas diversas. A grande novidade, este
ano, é que os oficiais vêm ao encontro do protesto de sargentos e praças,
finalmente”.
Entretanto, assegurou que os militares “farão
o seu 10 de Junho, como sempre, junto ao monumento pelas vítimas da Guerra
Colonial, em Belém”.
Segundo a ANS, o momento evocativo do 10 de Junho,
hoje quarta-feira, Dia de Portugal, organizado pela Liga dos Combatentes, teria
início às 10 horas e contaria com uma intervenção do presidente da comissão
organizadora da homenagem, o general Leonel de Carvalho, e outra de um filho de
um militar tombado em combate.
Entretanto, o Presidente da República, cuja
postura para com a instituição militar tem sido a que sabemos, teve a ousadia
de, no seu discurso, defender que não se devia fazer qualquer reforma da
instituição militar sem ter em conta a motivação dos militares, assegurando,
não sei como, que não é por uma lei estar publicada que a reforma está feita e
que esta deve continuar (?!).
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Também os lesados do BES
ficaram fora das comemorações. Como se pode ler no Expresso, de hoje, on line,
“durante as cerimónias militares que comemoram o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades
Portuguesas, em Lamego, os protestos e apupos não se fizeram ouvir.
Mas, à margem da cerimónia, junto à estátua do Soldado Desconhecido, mais
de 100 lesados do papel comercial do BES protestavam e gritavam para ser
ouvidos”.
Foi após o termo da cerimónia militar que os ânimos se exaltaram
mais. Para além das buzinas e sirenes que se ouviam, bem como os gritos
de “justiça” e “queremos o nosso dinheiro”, os manifestantes tentavam romper o
cordão policial que limitava o seu perímetro de manifestação, de modo que a
unidade especial de polícia encarregada do evento e desta ocorrência, se
obrigou a redefinir esse perímetro na Avenida Dr. Alfredo de Sousa, recolocando
as baias de segurança.
Em declarações à SIC Notícias, Ricardo Ângelo, da Associação dos Indignados e Enganados do
Papel Comercial do BES, confessou que “nós já não conseguimos controlar
estas pessoas” e que “sentimo-nos encurralados, sentimos que estamos a ser
rejeitados”. Apesar de tudo, garantiu que os manifestantes não têm a intenção
de “ser violentos”.
Assegurou que, não desrespeitam “a figura do Presidente da
República”, mas que esperam “da parte dele atos reais, não fictícios, porque
fictícios estamos nós fartos de ver”.
Ricardo Ângelo revelou, ainda, que os manifestantes tinham sido
escoltados desde a autoestrada A24 até àquela avenida e que não lhes fora
permitido assistir à cerimónia. “Estamos aqui enjaulados e não podemos
demonstrar a nossa indignação a quem de direito”, sublinhou, acrescentando
que o objetivo não era interferir nas manifestações, mas apenas entregar
uma carta ao Presidente da República, para que interceda por eles.
Porém, o insólito é que a
população da cidade também se sentiu impedida de aceder ao recinto das
cerimónias e às suas imediações – tal era o ambiente de condicionamento do
trânsito e de controlo das pessoas. A cidade limitou-se a ser palco destas
comemorações – situação que peca por tardia, já que esta cidade chegou a dispor
de, em simultâneo, uma caterva de unidades militares: Quartel de Santa Cruz,
Quartel da Cruz Alta, Quartel de Quintela, Messe de Oficiais, Messe de
Sargentos, Secretaria Regimental e DRM (Distrito de Recrutamento e Mobilização).
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Do meu ponto de vista, é de
lamentar que a cidade de Lamego – que tanto acarinhou os militares e sofreu os
incómodos da intensa e diversificada instrução dada, durante anos e anos, às
tropas de quadrícula e às tropas especiais (rangers, do CIOE, comandos, do COE, e instruendos da
Escola de Sargentos), democraticamente acolheu, em 1958, a sessão
pública da candidatura de Humberto Delgado e deu forte contributo, através dos
seus militares, ao “25 de Abril” e ao “25 de Novembro” – bem merecia a presença
de todos os militares, mesmo os forte e razoavelmente descontentes. E merecia
não apenas ser o palco das comemorações do Dia de Portugal de Camões e das
Comunidades, mas sentir-se participante da celebração numa perspetiva inclusiva
e nacional da portugalidade camoniana e humanista (numa das mãos a espada e na
outra a pena), em que a componente militar e a componente
civil se entrecruzam em termos da devida proporcionalidade e da hierarquia das
instituições e equilíbrio dos poderes.
Por isso, não percebo como
os presidentes das associações militares, embora eles tenham total razão nas
suas razões, não disseram presente numa cerimónia nacional militar integrante
do Dia de Portugal. Mas não percebo o porquê da escolta férrea aos manifestantes
em Lamego, quando a mesma corda de segurança não se fez antanho em torno de
outras manifestações alhures.
Quanto à população da cidade
de Lamego, será que ela terá de continuar a pagar o ostracismo a que a votou o
Estado Novo (com a boa exceção do
ministro Henrique Veiga de Macedo) por ter democraticamente recebido Humberto
Delgado ou Marcelo Caetano (ainda
em 11 de abril de 1974), esquecendo-se os poderes de que, tal como
outras localidades, contribuiu para a afirmação da portugalidade em África, Ásia
e Oceania, que, por si, deu a mão com seus recursos, esperanças, temores,
simpatia e cumplicidade aos militares que se preparavam para a guerra e
exercitou a democracia aprendida, mas não alinhada com o “cavaquistão”
distrital?
Finalmente, se é verdade que
a denominação de “cidade das cortes” não é sustentável do ponto de vista
histórico, não se pode esquecer que foi com o nome de Lamego que se arquitetou,
no século XVII, o mito (ou não)
das cortes de Lamego, na igreja de Santa Maria de Almacave, para justificar a
legitimidade da restauração da independência e o sistema de aclamação em cortes
de pretendente ao trono que não descendesse de rei na linha reta. E, ainda, foi
o Bispo de Lamego, Dom Miguel de Portugal, o emissário do Reino que junto da
Santa Sé teve a espinhosa missão de justificar e fazer aceitar a independência
de Portugal face ao regime filipino.
Ora, como é que uma cidade
serve para umas coisas e não para outras?
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