O Pai-nosso ou Oração do Senhor talvez seja a
oração mais conhecida e rezada do Cristianismo. Tanto assim é que se estima
que, no dia de Páscoa, dois mil milhões de cristãos
(católicos,
anglicanos, protestantes, ortodoxos…) terão
lido, recitado ou cantado esta a oração em
milhares de línguas, em todo o mundo. Embora
sejam muitas as diferenças teológicas e vários os modos e maneiras de adoração que
dividem os cristãos, parece haver um sentido de solidariedade em saber que estes
irmãos no discipulado e na fé no mundo inteiro oram juntos, com palavras que
sempre os unirão. É provável que na meditação de boa vontade sobre o sentido
desta oração resida o segredo do ecumenismo e o elã do esforço a empreender.
O Novo
Testamento regista duas versões da oração dominical: uma no Evangelho de Mateus (Mt 6,9-13), como
contraponto ao discurso da ostentação, uma secção do Sermão da Montanha; e a outra no Evangelho de Lucas (Lc
11,2-4), a
pedido dos discípulos, no contexto da subida a Jerusalém, após a hospedagem em
casa de Marta e de Maria.
Mateus mostra, no Pai-nosso, o imperativo da
relação de simplicidade e intimidade do homem com Deus. Na primeira parte,
pede-se a Deus que torne acessível o seu projeto de salvação; na segunda,
pede-se o essencial para que o homem possa viver segundo o projeto de Deus: o
pão do sustento (material
e da fé), o bom relacionamento com os irmãos e a
perseverança até ao fim.
O
contexto da oração em Mateus é uma parte do discurso, sobre um povo sofrido que
ora grandiosamente, simplesmente com a finalidade de ser visto em situação
orante. E nesta oração ressoa a experiência de Israel no
processo da sua libertação, o que inclui: as provações no deserto,
o maná quotidiano, a vontade de Deus promulgada como Lei, a santidade
cultual do nome de Deus revelada por Moisés e o reinado de
Deus pela aliança na Terra da Promissão.
Mateus mostra Jesus a ensinar os discípulos a orar a
partir desta fórmula oracional. Tendo em conta a estrutura desta oração, fluxo
de sujeito lógico e ênfases, uma hermenêutica da Oração dominical, para lá de
outras interpretações sugestivas que mostram que esta oração foi concebida como
uma oração específica para ser usada também como metaoração, percebe nela uma
orientação sobre como orar, em vez de aprender algo ou repetir por hábito. O
Novo Testamento apresenta vários momentos em que Jesus e os seus discípulos
oram, mas nunca os mostra no uso desta oração, sendo incerto quão importante
ela foi originalmente vista e tida como tal, talvez porque os discípulos
ganharam a maturidade sugerida e requerida por ela muito mais tarde, quando
foram fortalecidos pelo dom do Espírito Santo.
Segundo Lucas, o ensinamento do Pai-nosso vem
na linha dos mestres que costumavam ensinar os discípulos a rezar, com fórmula
que sintetizasse a sua própria mensagem. A oração dominical traz consigo o
espírito e o conteúdo basilar de toda a oração cristã e do ato de fé (no Pai), de
esperança (no Reino, na fuga à tentação e na libertação
do mal) e caridade (no cumprimento
da vontade do pai, no pão para todos – pão de sustento material, pão de fé e
pão da eucaristia – e no perdão). É
oração a fazer na intimidade filial com Deus (Pai), com a apresentação dos pedidos dos tesouros
mais importantes: que o nome do Pai (e sua
identidade) seja reconhecido por todos; que o seu Reino
de justiça e de amor se manifeste; que na vida quotidiana, Ele nos dê a
plenitude da vida – a vida em abundância – com o perdão que imploramos e que
estamos dispostos a distribuir por quem nos ofendeu; que não dos deixe afastar,
pela tentação, do caminho de Jesus.
***
A estrutura da oração do Senhor assemelha-se
tanto pelo conteúdo como pela forma à Oração
das Dezoito Preces, que os judeus ainda hoje recitam, mas que se
distingue, em primeiro plano, pela simplicidade e pela liberdade como Deus é
invocado e pela ordem das invocações/petições, característica do ensinamento
de Jesus. Vem, no início, uma tríplice invocação, que tem como ápice um
apelo à intervenção de Deus para a vinda do seu Reino. Tem lugar, a seguir uma
série de invocações/petições que exprimem as necessidades essenciais dos
discípulos. Depois, o emprego da primeira pessoa do plural dá um caráter
comunitário à oração.
Na versão apresentada
em Mateus, há sete invocações/petições, ao passo que a versão de
Lucas contém apenas cinco, sendo impossível definir qual a versão mais
antiga, devendo ter sido utilizadas ambas as formas nas comunidades cristãs
primitivas.
Há dificuldade para
oferecer a tradução da prece dominical para uma língua moderna, já que a
compreensão de certas expressões exigiria um bom conhecimento do Antigo
Testamento e do antigo judaísmo, razão pela qual as traduções
literais nem sempre seriam as melhores.
Deve anotar-se que Jesus viveu no contexto da
espiritualidade judaica, que é recorrente nos evangelhos e que Jesus, como bom judeu,
estava sob a Torá. Seguramente
rezou as Dezoito Bênçãos, o Shema, o Avinu
Malkenu (Pai nosso, Rei nosso),
os Salmos, o Tehilim (“louvores”
em português), entre muitas outras orações que existiam
dentro do corpus religioso judaico.
Pode assegurar-se que, enquanto o judaísmo conferiu, com a descoberta do
monoteísmo – um só (e único) Deus libertador, porque for ao criador – uma
grande novidade ao contexto religioso da sua época, o cristianismo ofereceu ao mundo do seu
tempo uma nova visão da Divindade. Para o cristianismo existia uma deidade, a
dos judeus. Só havia um Deus
verdadeiro, mas não para um só povo. O Senhor passou da identificação do Deus
local, do povo judeu, para a do Deus universal. O Deus dos cristãos, que é
único, realiza-Se na trindade das pessoas (Pai,
Filho e Espírito Santo) na
unidade da Natureza divina e mostra-Se a todos os homens que quiserem segui-lo
sem distinção de sexo, origem, tempo ou lugar; e salva também aqueles que, não
O conhecendo, agem segundo a consciência. De acordo com o cristianismo, o
Senhor queria um novo povo a que pode pertencer qualquer homem de boa vontade.
E esse novo povo, o novo Israel, é a Igreja, que subsiste na Igreja Católica,
mas sem desprimor das outras Igrejas que invocam o Senhor na sua boa fé e boa
vontade.
A princípio, os primeiros cristãos consideravam-se
parte integrante do povo judeu, oravam nas sinagogas, visitavam o Templo e respeitavam a Torá, mas frequentavam o
ensino dos apóstolos e a fração do pão. No primeiro Concílio de Jerusalém, narrado no
capítulo 15 do livro dos Atos dos
Apóstolos, determina-se que os gentios que abraçam a Cristo não estão
obrigados a cumprir a Torá dada ao povo de Israel – Decidimos, o Espírito Santo e nós, não vos
impor nenhum fardo, além destas coisas indispensáveis: abster-se de carnes
sacrificadas aos ídolos, do sangue, das carnes sufocadas e das uniões
ilegítimas. Fareis bem se evitardes estas coisas (At 15,
28-29).
Por exemplo, os cristãos de origem gentílica
não estão sujeitos à obrigação de se circuncidarem nem à da guarda do Shabat.
A partir deste momento, o cristianismo começou a separar-se gradualmente do
judaísmo e a proceder em autonomia. Também neste ponto, o Pai-nosso se afigurou
como fundamental. Ao separar-se do judaísmo, o cristianismo teve de ir
adquirindo a sua própria identidade e, num tempo em que a reflexão doutrinal
ainda não estava consolidada, a principal marca separadora entre a
espiritualidade cristã e a judaica seria a oração. O cristianismo teria de
buscar a sua oração típica, para não ser tido como uma seita judaica ou judaizante.
O Pai-nosso passou a constituir a principal separação que diferenciaria o povo
“novo” do “velho” neste ponto da história, uma vez que não estava muito clara a
diferença entre os judeus e os primeiros seguidores do cristianismo.
Entretanto, os primeiros cristãos tinham conseguido
um grande respeito pela Oração dominical, que não era ensinada a qualquer um. A
sua recitação constituía privilégio a outorgar apenas aos que já haviam
recebido o Batismo. Era a última coisa que se ensinava aos catecúmenos e só na véspera da
receção do primeiro sacramento. Era a maior e mais apreciada joia da fé.
Os antigos cristãos das Igrejas da África
tomaram a sua profissão de fé (quid credendum) a partir desta oração. Ora,
uma profissão de fé é uma declaração da crença de cada um e da Igreja, de que
são exemplo os símbolos da fé como o Credo
dos Apóstolos e o símbolo niceno-constantinoplitano, do
catolicismo latino e oriental, feitos oração e ato de fé. Os que pretendiam
receber o Batismo – os catecúmenos – deviam ter um profundo conhecimento das
orações mormente da Oração do Senhor (quid orandum). Deviam, por outro
lado, seguir detalhadamente a explicação do Credo e memorizá-lo a fim
de, posteriormente, o recitarem publicamente de cor. A transição entre estes
passos – do catecumenato para a situação de batizado – era o Pai-nosso. A
profissão de fé no cristianismo é um ponto fundamental, pois mediante ela se
declaram as suas crenças fundamentais e básicas. O fim que as igrejas
primitivas da África tomaram como base para a sua profissão de fé mostra que,
desde o princípio do cristianismo, estas palavras de Jesus foram consideradas das
mais santas palavras.
Na igreja primitiva, a oração do Pai-nosso
estava reservada para o momento mais alto da fração do pão – celebração que,
posteriormente, o catolicismo chamaria de missa e agora também se designa por
celebração eucarística. Haviam de a preceder fórmulas que se
assemelhavam ao seu teor e respeito. Estas fórmulas persistem herdadas de
antanho nas liturgias de algumas Igrejas. Assim, na liturgia das igrejas orientais,
diz-se como introdução: “Tu és digno, ó Senhor, concede-nos que,
alegremente e sem temor, nos atrevamos a invocar-Te, Deus celestial, como um Pai
e que digamos: Pai nosso...”. Na
liturgia romana, o sacerdote, reconhecendo a enorme audácia que há em repetir
palavras bíblicas consideradas tão santas pelo cristianismo, antecede a oração dominical
com a admonição, “Rezemos como Jesus nos ensinou…” ou, noutra versão, “Advertidos
pelos preceitos de salvação e instruídos pelos divinos ensinamentos, ousamos
dizer…”.
***
Também Jesus, antes de
propor os termos da oração, enuncia algumas orientações preliminares (Mt 6,5-8), dado que, na oração, o homem se volta
para Deus, reconhecendo-O como único absoluto e reconhecendo-se a si mesmo como
criatura, numa linha de relativização da humana autossuficiência. Por isso, se o
crente rezar para ser elogiado, coloca-se como centro e falsifica a oração (cf Bíblia Pastoral/ed. Paulinas/1993, Mt 6,5-6, nota). E, embora sem a
esquecer, as orientações preliminares aqui não se referem propriamente
à oração comunitária, que é necessariamente pública e vem respaldada
biblicamente, desde logo em Mateus (vg
Mt 18,19-20) e por diversos salmos que se referem ao louvor
a Deus ante a assembleia (vg
Sl 22/21,26; Sl 149, 1-9 e 150,1-6), tal como outros salmos se referem à oração
a fazer antes de dormir (vg Sl 4,5; e Sl 77/76,3-5) ou de súplica dos
doentes e aflitos (vg Sl 6,2ss e Sl 38/37,2ss).
Também aquelas
indicações não condenam a frequência de palavras em si (cf Mt 5,7; Lc 18,1 ), mas a sua prolixidade (cf Tg 1,26; Sir 7,14). Segundo as indicações de Jesus, nunca se
deve converter a oração, mesmo a comunitária, em espetáculo, pois seria um
contrassenso louvar a Deus para glória própria. Além disso, ela deve ser feita
em espírito e verdade já que Deus não se confina ao templo ou a este ou àquele
monte, mas está presente em toda a parte, ainda que oculto (cf Is 45,15; Jo 4,19-24).
O
texto de Mateus 6,6 tem precedente no Antigo Testamento em 2Rs
4,33 – Eliseu entrou, fechou a porta e
rezou a Javé –, ao passo que Mateus 6,8 tem um precedente no Antigo
Testamento em Is 65,24 (Antes que me invoquem, Eu responderei; quando
começarem a falar, eu já estarei a atendê-los) e Sl 139/138,4 (A palavra ainda não me
chegou à língua e Tu, Javé, a conheces perfeitamente).
O texto de Lucas vem,
como se disse, a seguir ao episódio da hospedagem de Jesus em casa de Marta e
de Maria (Lc 10,38-42). Marta, atarefada pela lida da casa,
queixa-se junto do Mestre da inércia de Maria entretida aos pés de Jesus.
Jesus, sem menosprezar a ação, salienta a virtualidade da contemplação: “Maria escolheu a melhor parte, que não lhe
será tirada” (Lc 10,42). O povo incorporou
na sua sabedoria milenar o aforismo, vale
mais quem Deus ajuda do que aquele muito madruga.
O mesmo Jesus deu,
depois, também precisas instruções sobre o modo de orar através do seu
exemplo (Mt 14,23; Jo 17,1-26) e a orar com determinadas
peculiaridades: com humildade diante de Deus (Lc 18,10-14) e dos homens (cf Mt, 6,5-6; Mc 12,40); mais com o coração do que com os
lábios (cf Mt 6,7); com confiança na bondade
do Pai (cf Mt 6,8; 7,7-11; 11,9-13); com persistência
(cf Lc 11,5-8; 18,1-8); com fé,
para que seja atendida (cf Mt 21,22); em seu nome
(cf Mt 18,19; Jo14,13-14; 15,7.16; 16,23-27); para pedir coisas
boas (cf Mt 7,11), tais como: o Espírito Santo (cf Lc 11,13); o perdão (cf Mc 11,25); o bem para aqueles que perseguem
os discípulos (cf Mt 5,44; Lc 23,34); a vinda do Reino
de Deus e a preservação durante a provação escatológica (cf Mt 24,20; 26,41; Lc 21,36; 22,31-32).
Convém
ainda referir que as instruções preliminares se referem às preces que
deveriam ser feitas em horas fixas e, nessas ocasiões,
os hipócritas procuravam fazer-se notar. O verbo grego “battalogein”
– do segmento “Quando orardes, não
multipliqueis as palavras” (Mt 6,7) – permite diversas
interpretações. Assim, enquanto alguns preferem traduzi-lo como: (não) dizer coisas vãs ou (não) dizer palavras sem sentido, outros
dizem que Jesus se referia a suspiros mágicos que multiplicavam fórmulas
complexas para aplacar a divindade: o erro na oração pagã (cf 1RS 18,25-29) ou judaica (cf Sir 7,14; Is 1,15; Mc 12,40) consistiria, por
meio da sua extensão, em pressionar a divindade.
Talvez seja pouco
salutar limitarmo-nos a ir à Bíblia e recortar o Pai-nosso na formulação
registada por Mateus ou na registada por Lucas, decorá-lo e repeti-lo psitaquicamente
ou declamá-lo à maneira de bom ator. A oração do Senhor exige muito mais e não
pode perder-se na habilidade artificiosa do homem, nem ficar alapada no limbo
da memória do esquecimento.
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