quarta-feira, 17 de junho de 2015

Pai-nosso: contexto, estrutura, consequências e utilização

O Pai-nosso ou Oração do Senhor talvez seja a oração mais conhecida e rezada do Cristianismo. Tanto assim é que se estima que, no dia de Páscoa, dois mil milhões de cristãos (católicos, anglicanos, protestantes, ortodoxos…) terão lido, recitado ou cantado esta a oração em milhares de línguas, em todo o mundo. Embora sejam muitas as diferenças teológicas e vários os modos e maneiras de adoração que dividem os cristãos, parece haver um sentido de solidariedade em saber que estes irmãos no discipulado e na fé no mundo inteiro oram juntos, com palavras que sempre os unirão. É provável que na meditação de boa vontade sobre o sentido desta oração resida o segredo do ecumenismo e o elã do esforço a empreender.
O Novo Testamento regista duas versões da oração dominical: uma no Evangelho de Mateus (Mt 6,9-13), como contraponto ao discurso da ostentação, uma secção do Sermão da Montanha; e a outra no  Evangelho de Lucas (Lc 11,2-4), a pedido dos discípulos, no contexto da subida a Jerusalém, após a hospedagem em casa de Marta e de Maria.
Mateus mostra, no Pai-nosso, o imperativo da relação de simplicidade e intimidade do homem com Deus. Na primeira parte, pede-se a Deus que torne acessível o seu projeto de salvação; na segunda, pede-se o essencial para que o homem possa viver segundo o projeto de Deus: o pão do sustento (material e da fé), o bom relacionamento com os irmãos e a perseverança até ao fim.
O contexto da oração em Mateus é uma parte do discurso, sobre um povo sofrido que ora grandiosamente, simplesmente com a finalidade de ser visto em situação orante. E nesta oração ressoa a experiência de Israel no processo da sua libertação, o que inclui: as provações no deserto, o maná quotidiano, a vontade de Deus promulgada como Lei, a santidade cultual do nome de Deus revelada por Moisés e o reinado de Deus pela aliança na Terra da Promissão.
Mateus mostra Jesus a ensinar os discípulos a orar a partir desta fórmula oracional. Tendo em conta a estrutura desta oração, fluxo de sujeito lógico e ênfases, uma hermenêutica da Oração dominical, para lá de outras interpretações sugestivas que mostram que esta oração foi concebida como uma oração específica para ser usada também como metaoração, percebe nela uma orientação sobre como orar, em vez de aprender algo ou repetir por hábito. O Novo Testamento apresenta vários momentos em que Jesus e os seus discípulos oram, mas nunca os mostra no uso desta oração, sendo incerto quão importante ela foi originalmente vista e tida como tal, talvez porque os discípulos ganharam a maturidade sugerida e requerida por ela muito mais tarde, quando foram fortalecidos pelo dom do Espírito Santo.
Segundo Lucas, o ensinamento do Pai-nosso vem na linha dos mestres que costumavam ensinar os discípulos a rezar, com fórmula que sintetizasse a sua própria mensagem. A oração dominical traz consigo o espírito e o conteúdo basilar de toda a oração cristã e do ato de fé (no Pai), de esperança (no Reino, na fuga à tentação e na libertação do mal) e caridade (no cumprimento da vontade do pai, no pão para todos – pão de sustento material, pão de fé e pão da eucaristia – e no perdão). É oração a fazer na intimidade filial com Deus (Pai), com a apresentação dos pedidos dos tesouros mais importantes: que o nome do Pai (e sua identidade) seja reconhecido por todos; que o seu Reino de justiça e de amor se manifeste; que na vida quotidiana, Ele nos dê a plenitude da vida – a vida em abundância – com o perdão que imploramos e que estamos dispostos a distribuir por quem nos ofendeu; que não dos deixe afastar, pela tentação, do caminho de Jesus.
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A estrutura da oração do Senhor assemelha-se tanto pelo conteúdo como pela forma à Oração das Dezoito Preces, que os judeus ainda hoje recitam, mas que se distingue, em primeiro plano, pela simplicidade e pela liberdade como Deus é invocado e pela ordem das invocações/petições, característica do ensinamento de Jesus. Vem, no início, uma tríplice invocação, que tem como ápice um apelo à intervenção de Deus para a vinda do seu Reino. Tem lugar, a seguir uma série de invocações/petições que exprimem as necessidades essenciais dos discípulos. Depois, o emprego da primeira pessoa do plural dá um caráter comunitário à oração.
Na versão apresentada em Mateus, há sete invocações/petições, ao passo que a versão de Lucas contém apenas cinco, sendo impossível definir qual a versão mais antiga, devendo ter sido utilizadas ambas as formas nas comunidades cristãs primitivas.
Há dificuldade para oferecer a tradução da prece dominical para uma língua moderna, já que a compreensão de certas expressões exigiria um bom conhecimento do Antigo Testamento e do antigo judaísmo, razão pela qual as traduções literais nem sempre seriam as melhores.
Deve anotar-se que Jesus viveu no contexto da espiritualidade judaica, que é recorrente nos evangelhos e que Jesus, como bom judeu, estava sob a Torá. Seguramente rezou as Dezoito Bênçãos, o Shema, o Avinu Malkenu (Pai nosso, Rei nosso), os Salmos, o Tehilim (“louvores” em português), entre muitas outras orações que existiam dentro do corpus religioso judaico.
Pode assegurar-se que, enquanto o judaísmo conferiu, com a descoberta do monoteísmo – um só (e único) Deus libertador, porque for ao criador – uma grande novidade ao contexto religioso da sua época, o cristianismo ofereceu ao mundo do seu tempo uma nova visão da Divindade. Para o cristianismo existia uma deidade, a dos judeus. Só havia um Deus verdadeiro, mas não para um só povo. O Senhor passou da identificação do Deus local, do povo judeu, para a do Deus universal. O Deus dos cristãos, que é único, realiza-Se na trindade das pessoas (Pai, Filho e Espírito Santo) na unidade da Natureza divina e mostra-Se a todos os homens que quiserem segui-lo sem distinção de sexo, origem, tempo ou lugar; e salva também aqueles que, não O conhecendo, agem segundo a consciência. De acordo com o cristianismo, o Senhor queria um novo povo a que pode pertencer qualquer homem de boa vontade. E esse novo povo, o novo Israel, é a Igreja, que subsiste na Igreja Católica, mas sem desprimor das outras Igrejas que invocam o Senhor na sua boa fé e boa vontade.
A princípio, os primeiros cristãos consideravam-se parte integrante do povo judeu, oravam nas sinagogas, visitavam o Templo e respeitavam a Torá, mas frequentavam o ensino dos apóstolos e a fração do pão. No primeiro Concílio de Jerusalém, narrado no capítulo 15 do livro dos Atos dos Apóstolos, determina-se que os gentios que abraçam a Cristo não estão obrigados a cumprir a Torá dada ao povo de Israel – Decidimos, o Espírito Santo e nós, não vos impor nenhum fardo, além destas coisas indispensáveis: abster-se de carnes sacrificadas aos ídolos, do sangue, das carnes sufocadas e das uniões ilegítimas. Fareis bem se evitardes estas coisas (At 15, 28-29).
Por exemplo, os cristãos de origem gentílica não estão sujeitos à obrigação de se circuncidarem nem à da guarda do  Shabat. A partir deste momento, o cristianismo começou a separar-se gradualmente do judaísmo e a proceder em autonomia. Também neste ponto, o Pai-nosso se afigurou como fundamental. Ao separar-se do judaísmo, o cristianismo teve de ir adquirindo a sua própria identidade e, num tempo em que a reflexão doutrinal ainda não estava consolidada, a principal marca separadora entre a espiritualidade cristã e a judaica seria a oração. O cristianismo teria de buscar a sua oração típica, para não ser tido como uma seita judaica ou judaizante. O Pai-nosso passou a constituir a principal separação que diferenciaria o povo “novo” do “velho” neste ponto da história, uma vez que não estava muito clara a diferença entre os judeus e os primeiros seguidores do cristianismo.
Entretanto, os primeiros cristãos tinham conseguido um grande respeito pela Oração dominical, que não era ensinada a qualquer um. A sua recitação constituía privilégio a outorgar apenas aos que já haviam recebido o Batismo. Era a última coisa que se ensinava aos catecúmenos e só na véspera da receção do primeiro sacramento. Era a maior e mais apreciada joia da fé.
Os antigos cristãos das Igrejas da África tomaram a sua profissão de fé (quid credendum) a partir desta oração. Ora, uma profissão de fé é uma declaração da crença de cada um e da Igreja, de que são exemplo os símbolos da fé como o Credo dos Apóstolos e o símbolo niceno-constantinoplitano, do catolicismo latino e oriental, feitos oração e ato de fé. Os que pretendiam receber o Batismo – os catecúmenos – deviam ter um profundo conhecimento das orações mormente da Oração do Senhor (quid orandum). Deviam, por outro lado, seguir detalhadamente a explicação do Credo e memorizá-lo a fim de, posteriormente, o recitarem publicamente de cor. A transição entre estes passos – do catecumenato para a situação de batizado – era o Pai-nosso. A profissão de fé no cristianismo é um ponto fundamental, pois mediante ela se declaram as suas crenças fundamentais e básicas. O fim que as igrejas primitivas da África tomaram como base para a sua profissão de fé mostra que, desde o princípio do cristianismo, estas palavras de Jesus foram consideradas das mais santas palavras.
Na igreja primitiva, a oração do Pai-nosso estava reservada para o momento mais alto da fração do pão – celebração que, posteriormente, o catolicismo chamaria de missa e agora também se designa por celebração eucarística. Haviam de a preceder fórmulas que se assemelhavam ao seu teor e respeito. Estas fórmulas persistem herdadas de antanho nas liturgias de algumas Igrejas. Assim, na liturgia das igrejas orientais, diz-se como introdução: Tu és digno, ó Senhor, concede-nos que, alegremente e sem temor, nos atrevamos a invocar-Te, Deus celestial, como um Pai e que digamos: Pai nosso.... Na liturgia romana, o sacerdote, reconhecendo a enorme audácia que há em repetir palavras bíblicas consideradas tão santas pelo cristianismo, antecede a oração dominical com a admonição, “Rezemos como Jesus nos ensinou…” ou, noutra versão, “Advertidos pelos preceitos de salvação e instruídos pelos divinos ensinamentos, ousamos dizer…”.
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Também Jesus, antes de propor os termos da oração, enuncia algumas orientações preliminares (Mt 6,5-8), dado que, na oração, o homem se volta para Deus, reconhecendo-O como único absoluto e reconhecendo-se a si mesmo como criatura, numa linha de relativização da humana autossuficiência. Por isso, se o crente rezar para ser elogiado, coloca-se como centro e falsifica a oração (cf Bíblia Pastoral/ed. Paulinas/1993, Mt 6,5-6, nota). E, embora sem a esquecer, as orientações preliminares aqui não se referem propriamente à oração comunitária, que é necessariamente pública e vem respaldada biblicamente, desde logo em Mateus (vg Mt 18,19-20) e por diversos salmos que se referem ao louvor a Deus ante a assembleia (vg Sl 22/21,26; Sl 149, 1-9 e 150,1-6), tal como outros salmos se referem à oração a fazer antes de dormir (vg Sl 4,5; e Sl 77/76,3-5) ou de súplica dos doentes e aflitos (vg Sl 6,2ss e Sl 38/37,2ss).
Também aquelas indicações não condenam a frequência de palavras em si (cf Mt 5,7; Lc 18,1 ), mas a sua prolixidade (cf Tg 1,26; Sir 7,14). Segundo as indicações de Jesus, nunca se deve converter a oração, mesmo a comunitária, em espetáculo, pois seria um contrassenso louvar a Deus para glória própria. Além disso, ela deve ser feita em espírito e verdade já que Deus não se confina ao templo ou a este ou àquele monte, mas está presente em toda a parte, ainda que oculto (cf Is 45,15; Jo 4,19-24).
O texto de Mateus 6,6 tem precedente no Antigo Testamento em 2Rs 4,33 – Eliseu entrou, fechou a porta e rezou a Javé –, ao passo que Mateus 6,8 tem um precedente no Antigo Testamento em Is 65,24 (Antes que me invoquem, Eu responderei; quando começarem a falar, eu já estarei a atendê-los) e Sl 139/138,4 (A palavra ainda não me chegou à língua e Tu, Javé, a conheces perfeitamente).
O texto de Lucas vem, como se disse, a seguir ao episódio da hospedagem de Jesus em casa de Marta e de Maria (Lc 10,38-42). Marta, atarefada pela lida da casa, queixa-se junto do Mestre da inércia de Maria entretida aos pés de Jesus. Jesus, sem menosprezar a ação, salienta a virtualidade da contemplação: “Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada” (Lc 10,42). O povo incorporou na sua sabedoria milenar o aforismo, vale mais quem Deus ajuda do que aquele muito madruga.
O mesmo Jesus deu, depois, também precisas instruções sobre o modo de orar através do seu exemplo (Mt 14,23; Jo 17,1-26) e a orar com determinadas peculiaridades: com humildade diante de Deus (Lc 18,10-14) e dos homens (cf Mt, 6,5-6; Mc 12,40); mais com o coração do que com os lábios (cf Mt 6,7); com confiança na bondade do Pai (cf Mt 6,8; 7,7-11; 11,9-13); com persistência (cf Lc 11,5-8; 18,1-8); com fé, para que seja atendida (cf Mt 21,22); em seu nome (cf Mt 18,19; Jo14,13-14; 15,7.16; 16,23-27); para pedir coisas boas (cf Mt 7,11), tais como: o Espírito Santo (cf Lc 11,13); o perdão (cf Mc 11,25); o bem para aqueles que perseguem os discípulos (cf Mt 5,44; Lc 23,34); a vinda do Reino de Deus e a preservação durante a provação escatológica (cf Mt 24,20; 26,41; Lc 21,36; 22,31-32).
Convém ainda referir que as instruções preliminares se referem às preces que deveriam ser feitas em horas fixas e, nessas ocasiões, os hipócritas procuravam fazer-se notar. O verbo grego “battalogein” – do segmento “Quando orardes, não multipliqueis as palavras” (Mt 6,7) – permite diversas interpretações. Assim, enquanto alguns preferem traduzi-lo como: (não) dizer coisas vãs ou (não) dizer palavras sem sentido, outros dizem que Jesus se referia a suspiros mágicos que multiplicavam fórmulas complexas para aplacar a divindade: o erro na oração pagã (cf 1RS 18,25-29) ou judaica (cf Sir 7,14; Is 1,15; Mc 12,40) consistiria, por meio da sua extensão, em pressionar a divindade.

Talvez seja pouco salutar limitarmo-nos a ir à Bíblia e recortar o Pai-nosso na formulação registada por Mateus ou na registada por Lucas, decorá-lo e repeti-lo psitaquicamente ou declamá-lo à maneira de bom ator. A oração do Senhor exige muito mais e não pode perder-se na habilidade artificiosa do homem, nem ficar alapada no limbo da memória do esquecimento.

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