A leitura, na revista Visão, de 11 a 17 de junho, da peça “O
Lápis Afiado de Cunhal”, sobre a faceta alegadamente menos conhecida do líder
histórico do PCP, deu-me azo à reflexão que, a seguir, se desenrola sob o
título enunciado em epígrafe.
A expressão e o sentido do
humor são elementos definidores da personalidade de um indivíduo e de um povo. Se
as pessoas e os povos se assemelham no choro, diferenciam-se no riso. Como bem
explicita António Freire (cf
Freire, 1986), as lágrimas de Andrómaca,
aquando da partida do seu Heitor para a famosa guerra de Troia, não são
diferentes das da esposa dos tempos medievos ao despedir-se do marido que
abalava para a hoste e o fossado, incluindo para as expedições das cruzadas, ou
da mulher hodierna de quem o homem se aparta ao emigrar para terras longínquas
na busca do sustento ou no combate militar travestido em missão de paz ou
função humanitária.
Já, quanto ao riso, não
sucede o mesmo. Cada indivíduo, cada grupo social, cada povo ri a seu jeito.
Por exemplo, nem todos são capazes de rir com a piada subtil dos papas João Paulo
II e Francisco, de Bernard Shaw ou de
Álvaro Cunhal, como nem todos riem com a gargalhada estrídula de Plauto ou com
a serenidade de Solnado. O riso de Aristófanes seria incompreensível fora de
Atenas. Segundo o mencionado António Freire, “os ingleses, que, apesar do clima, da história e do temperamento
adversos, se julgam fadados para humoristas (…), continuam a ser um enigma psicológico para os povos do Continente,
que em balde se esforçam por lhes descobrir o decantado sentido do humor” (cf Freire, 1986).
Porém, o riso ou o sorriso
não pode ser pedido ou roubado, vendido ou emprestado por se tratar de
predicado ou coisa que não serve a ninguém se não for dado de graça e
espontaneamente. No entanto, a tradição chinesa reza que “o homem que não ri escusa de montar loja” (vd id et ib); e a tradição cristã bem badala, “um santo triste é um triste santo”.
O humor consiste num estado de ânimo cuja intensidade define o adequado
grau de disposição e de bem-estar psicológico e emocional do indivíduo, naturalmente
(dada a consensual interação entre a componente
psíquica e a somática) com
as subsequentes e naturais manifestações corpóreas, nomeadamente orais,
fisionómicas e gestuais, podendo passar às palavras e aos grafismos.
E o bom humor – expresso na
tirada repentista, na piada, na anedota, na historieta, no desenho, no esgar
engraçado, no sorriso (sobretudo
no sorriso malandro) e no riso – revela a vontade e o estilo de
quem usufrui de bem-estar ou pretende ultrapassar-se nas tribulações e
adversidades. Tal não significa, apesar de tudo, que os sintomas iniludíveis de
satisfação do humorista correspondam sempre ao que lhe vai na alma, sobretudo
se ele se profissionalizou na área.
Mas o bom humor revela-se
também na caricaturização, na ironia zombeteira, na crítica satírica e mesmo
nalgumas tiradas de postura despiciente.
No décimo aniversário da
morte de Álvaro Cunhal, os seus estudiosos salientam: os cartoons inéditos; os desenhos desconhecidos, em especial os
autorretratos; as caricaturas de camaradas e dos ricalhaços; os gatinhos; os
pequenos esquissos feitos durante as longas reuniões; e as piadas a propósito
de tudo e todos, incluindo as tiradas de bom humor sobre os reacionários. Até parece
que ao político é vedado o sentido de humor ou o palavrão!
***
O vocábulo humor – no latim, (h)umor: elemento líquido, de cuja família lexical são os vocábulos (h)umorosus, (h)umescere, (h)umefacere,
(h)umens, (h)umidus, (h)umiditas, (h)umidificare, (h)umectare, humectatio, humane, humanus, humanitas, humanare, homo e hemo e sendo seus
parónimos húmus (terra), humare, humatio, inumare, exumare, humilis, humilitas, humiliare…– e
conceitos afins (no grego, hígros
– humidade; kimós – suco; diáthesis – disposição) surgiram na medicina
humoral dos antigos gregos em tempos em que o humor se referia a qualquer um
dos quatro fluidos corporais (ou humores),
tidos como os responsáveis pela saúde física
e emocional humana enquanto seus reguladores.
Ora, o humor ou o bom humor (no grego, euthimía
– satisfação), como elemento vital da condição humana, é
uma das diversas chaves da interpretação e compreensão das culturas, religiões e costumes das sociedades, em
sentido amplo. Como bem observam os filósofos, o homem é o único ser que ri – o
riso é propriedade (proprium) unicamente
do homem – se excetuarmos o chamado riso
de Deus glosado ficcionalmente no romance de António Alçada Batista (2009) ou o
metafórico sorriso escondido de Deus,
de John Piper (2002) – e,
através dos tempos, a maneira humana de sorrir e rir modifica-se acompanhando
os costumes e correntes de pensamento.
Se em cada época da história humana a forma de
pensar ora cria ora derruba paradigmas
de vida, de interpretação do mundo e de ação, o humor acompanha essa
tendência humana e sociocultural. Expressões culturais do humor podem
representar e revelar retratos fiéis de uma época, como é o caso, por exemplo,
das comédias gregas de Menandro e de Aristófanes ou das comédias paleatae de Plauto e de Terêncio e
das pertinentes comédias de costumes dos tempos da modernidade, sem olvidar os
autos vicentinos no quadro do castigat ridendo
mores.
***
Porém, o humor não pode ser encarado apenas
pelo lado bom ou agradável, até porque muitas vezes aquilo que agrada a uns
desagrada a outros e pode mesmo injuriá-los.
Ter bom
humor ou ter mau humor são algumas
das expressões que remontam à teoria humoral de Hipócrates, ou seja, mergulham na
já apontada medicina humoral dos velhos gregos. Segundo esta teoria médica,
vigente até ao século XVIII, o corpo segregava diversos humores, sendo cada um
dos humores produzido em diferentes órgãos. Ora, mantendo-se o equilíbrio na
geração e distribuição desses humores, o organismo apresentava o que chamamos bom humor; ocorrendo qualquer situação
de desequilíbrio na produção ou na distribuição dos humores, resultaria no
organismo a desagradável manifestação de mau
humor. Com base na observação do processo da doença, a medicina hipocrática
formulou como premissa basilar a crença inabalável no poder curativo da physis, a Natureza, cabendo ao médico,
mercê da sua capacidade medidora e moderadora (médico
provém do indo-europeu, dos termos med
e mod a significar medida, aferição), restabelecer os equilíbrios. Ainda hoje
esse pode curativo é tido em boa conta, quando o médico recomenda ou prescreve
exercício físico, tomada de ares, ingestão de água, etc., ou quando os
pacientes são submetidos a tratamentos fisiátricos ou fisioterápicos.
A physis,
no dizer dos filósofos chamados fisiologistas, possuía primordialmente quatro
elementos primários: ar, água, terra e fogo. Aristóteles
associou a estes elementos quatro predicados: quente, frio, húmido e seco. Das diversas combinações dos predicados com os elementos
resultava tudo o que é visível no cosmos e pelas relações estabelecidas entre
eles eram marcadas as quatro estações: o ar era quente e húmido; a água era
fria e húmida; a terra era fria e seca; e o fogo era quente e seco.
Por outro lado, vincularam-se aos quatro
elementos primordiais os humores, que
provinham da mistura dos elementos primários em quatro proporções diversas.
Assim, os humores básicos, também em
número de quatro, eram: o sangue, a pituíta (fleuma
ou catarro), a bílis
(ou bílis
amarela) e a atrabílis (ou bílis
negra ou melancolia). Por alguma razão temos os temperamentos
fleumáticos e as atitudes atrabiliárias. Cada humor tinha sede própria no
organismo, que funcionava como centro regulador da sua dinâmica e para ela era
atraído: o sangue, no coração; a pituíta, na cabeça; a bílis, no fígado; e a
atrabílis, no baço.
Assim se percebe que ser/estar fleumático ou ser/estar melancólico são expressões que remetem
para o contexto da medicina humoral. Durante séculos, integravam a terminologia
médica para apelidar tipos físicos de indivíduos. Porém, com a evolução
semântica, adquiriram significado diverso: o fleumático passou a caraterizar a
pessoa formal e grave; e o melancólico, a caraterizar a pessoa triste e
acabrunhada. Mas a teoria medicinal dos humores originou mais expressões. Por
exemplo: Ter maus fígados será
sinónimo de mau feitio, já que ao fígado cabia o papel da regulação biliar. Ser um inimigo figadal significa ser um
inimigo de longa data e por quem se tem e nutre particular ódio. E, no quadro
da interação psicossomática, está associada à regulação biliar a regulação da
personalidade, pelo que também se diz de alguém de mau feitio que tem maus fígados, que tem má bílis, que é só fel ou que está com os
azeites.
Desta antiga ciência médica vêm mais
expressões. Estar com a neura
significa andar aborrecido. Neura é
um termo abreviado de neurastenia (do
grego nêuron, nervo + asthéneia, fraqueza) e designa o estado geral de melancolia ou
depressão. Estar histérico (do grego, hystera,
que significa útero, madre),
caraterizava o estado de espírito que se atribuía exclusivamente às mulheres. A
partir do século XIX, passou a aplicar-se indistintamente a homens e mulheres
em virtude de os sintomas externos de distúrbio serem comuns. Dar uma panaceia (do grego pan,
tudo + ákos, remédio) significa dar um remédio ou mezinha que
sirva para “curar” todas as doenças. Panaceia
era, na mitologia grega, a filha do deus da medicina, Asclépio (no latim, Esculápio). A sangria
desatada designa uma situação de extrema emergência. A sangria era a
operação – a única que alguns médicos sabiam fazer e que, dada a sua ineficácia
clínica, foi gradualmente abandonada nos séculos XVIII e XIX – que consistia em
golpear uma veia do paciente para que, pelo sangramento, ele ficasse aliviado
das suas maleitas, mercê da reposição dos humores. Quando a sangria era mal
executada, chama-se desatada, pois, a hemorragia, se não fosse estancada a
tempo, seria fatal. Também a purga – que hoje, em virtude da evolução semântica,
se aplica à expulsão de pessoas indesejáveis de uma instituição – era um dos
modestos meios terapêuticos, que consistia no processo de levar o paciente a
expulsar do seu organismo várias substâncias indesejáveis: pelo vómito (através dos vomitórios), defecando (através
dos clisteres) ou sangrando (através
das sangrias). – (cf Gaffiot,
1995 e Carvalho, 2015).
***
Apesar de o humor ser largamente estudado,
teorizado e discutido por filósofos, psicólogos e sociólogos, bem como
elaborado por literatos e registados por historiadores, causídicos e oradores,
permanece extraordinariamente difícil de definir, quer na sua vertente
psicológica quer na sua expressão, como forma de pensamento e de arte. Na
verdade, é de colocar a distinção entre o humor e outras vertentes similares
dele como o cómico, a ironia ou a sátira.
O cómico, nas suas diferentes modalidades – de
linguagem, de situação e de caráter –, explora o efeito-surpresa e contribui
para a diversão e para a catarse do interlocutor ou do espectador. Contudo, na
sua versão de burlesco, o cómico popularucho é humor mal realizado.
A ironia parece mais configurar a simulação subtil de dizer uma
coisa por outra. A ironia não pretende ser aceite, mas compreendida e interpretada.
Na perspetiva socrática, a ironia é uma espécie de “docta ignorantia”,
ou seja, “ignorância fingida” ou “constructa” que, sabendo a resposta, a
questiona e orienta para o que quer que esta seja. É, pois, um processo de
consecução ou aprimoramento do saber. Em Aristóteles e
São Tomás de Aquino, a ironia não passa de uma forma de obtenção de benevolência
alheia pelo fingimento de falta de méritos próprios. A partir de Kant, assentando no sistema idealista,
a ironia passa a ser considerada alguma coisa aparente, que, como tal, se impõe
ao homem vulgar ou distraído. Porém, a ironia raia as marcas do humor quando se
posiciona na sua face zombeteira
Corrosiva e implacável, a sátira é utilizada
por aqueles que demonstram a sua capacidade de indignação, de forma divertida,
para fulminar abusos, castigar pelo riso, os costumes, denunciar determinados
defeitos, melhorar situações aberrantes, vingar injustiças… Umas vezes é sarcástica
e mesmo brutal, outras vezes é mais subtil.
Já o humor como tal é determinado
essencialmente pela personalidade de quem ri. Por isso, pode pensar-se que o
humor não ultrapassa o campo do jogo ou os limites imediatos da sanção moral ou
social. Não obstante, ele pode subir mais alto e atingir os domínios da
compreensão filosófica, logo que o emissor penetre em regiões mais profundas,
no que há de íntimo na natureza humana, no mistério do psíquico, na
complexidade da consciência, no significado espiritual do mundo que o circunda.
Pode, assim, concluir-se que o humor é a mais subjetiva e mais individual categoria
do cómico, pela coragem e elevação que pressupõe. Logo, o que o distingue das
restantes formas do cómico é a sua independência em relação à dialética e a
ausência de função marcadamente social. Trata-se, portanto, de uma categoria
intrinsecamente enraizada na personalidade, definindo-a e dela fazendo parte. É
por isso que se diz que “há tantos
humores como humoristas”. Através da asserção de São Tomás de Aquino, “Ludus est necessarius ad conversationem
humanae vitae” (o humor
é necessário para a vida humana),
percebe-se que, assim como o sono está para o repouso corporal, também o humor está para o
repouso da alma. A analogia entre o sono e o humor é claramente explícita no
que diz respeito à importância do humor na vida do homem. É por esta razão que
o humor é considerado por São Tomás um “bem útil” e necessário, mas também pode
ser um vício por excesso, ou seja, por falta de controlo e mediocridade no seu
uso. Aqueles que exageram no brincar tornam-se inoportunos, por querer fazer
rir constantemente, ao invés de tentar não dizer algo imoral e mesmo agressivo
para com aqueles a quem a “brincadeira” é dirigida. O humor pode também ser um
vício por ausência ou omissão. Aqueles que carecem de humor, irritam-se com os
que o usam e tornam-se “frios” e distantes, não deixando a sua alma repousar
pelo uso do humor. Como no meio é que está a virtude (In
medio virtus),
aqueles que usam convenientemente do humor têm a capacidade de converter em
riso as coisas que dizem ou fazem.
***
Quanto às teorias
do humor, elas podem reduzir-se a três: teorias da superioridade; teorias
da incoerência; e teorias do alívio.
As teorias da superioridade pressupõem que o riso
é oriundo da sensação de superioridade de um indivíduo frente a outro ou nalguma
situação. Constitui o riso uma resposta a uma “gloria repentina” advinda da perceção de superioridade por parte do
indivíduo. A superioridade pode
dar-se não só pela depreciação do outro, mas também por via da ética e da moral
estabelecidas em piadas e trocadilhos que zombam das regras gramaticais, sociais
ou mesmo morais vigentes.
Nas teorias da incoerência, a incoerência, tida
como força motriz da situação cómica, é identificada como uma “experiência
frustrada”. A este respeito, Immanuel Kant alegava que o humor surge da “transformação
repentina de uma grande expectativa para o nada”. Ora, o humor consiste na dissolução violenta de uma atitude emocional,
produzida pela associação de duas ideias inicialmente distantes. Segundo tais
preceitos, a piada de boa qualidade deverá necessariamente mesclar dois
elementos altamente contrastantes de modo que se estabeleça forte relação
entres ambos. Para que a piada tenha boa aceitação pelo público, é essencial
que este esteja inteirado das ideias opostas que a piada apresenta. Da mesma
forma, o comediante deve inteirar-se dos aspetos socioculturais do público a
fim de conseguir estabelecer relações inusitadas para a respetiva plateia, uma
vez que certas relações podem parecer inusitadas para um grupo e não para
outro.
E, segundo as teorias do alívio, o humor provém da remoção de uma
tensão. Sigmund Freud teorizou que esta tensão é resultado da ação da
“censura”, designação que deu às proibições internas que impedem o indivíduo de
dar forma aos seus impulsos naturais. O
humor seria então a forma de enganar a censura e provocar alívio, originando, por
conseguinte, o riso.
A censura é enganada
se a quebra da proibição for disfarçada por uma ideia que não denote algo
proibido, como um insulto dito a modo de elogio. (Wikipédia, 2015).
***
Concluindo, o sentido de humor não faz parte
dos cinco sentidos convencionais, já que é uma espécie de sexto sentido
peculiar cuja função principal é potenciar os demais. O que vemos, ouvimos,
cheiramos, provamos e/ou palpamos, tudo ganha uma dimensão diferente se lhe
acrescentarmos um chiste por mais diminuto que seja, desde que seja chiste (narrativa breve, ou mesmo sincopada, mas que
tenha muita pimenta na cauda).
Mesmo nos conteúdos produzidos por gente cinzenta ou nos cozinhados a cargo de
chefes competentes, mas sem a mais pequena graça, o nosso sentido de humor pode
tomar a iniciativa de operar milagres, tornando o que apenas seria tolerável verdadeiramente
atraente e apetecível.
Até na extraordinária miscelânea de sentidos e
sentimentos que é o amor na primeira pessoa, o sentido de humor se torna
imprescindível para relativizar os avanços e recuos inopinados que caraterizam
as relações que nascem fora dos “laboratórios” convencionais. Seguindo a velha
máxima leninista, é preciso saber dar um passo atrás, para poder dar dois em
frente.
Referências
Batista, António (2009). O riso de Deus. Lisboa: Editorial Presença.
Carvalho, Sérgio (2014). Nas bocas do mundo. 2.ª ed. Lisboa: Planeta.
Freire, António (1984). Helenismos portugueses. Braga: Faculdade de Filosofia.
Freire, António (1986). Humanismo Clássico. Braga: Faculdade de Filosofia.
Freire, António (1987). Estudos de Literatura Grega. Braga: Faculdade de Filosofia.
Gaffiot, H. (1995). Dictionnaire Latin-Français. 50.ª ed. Paris: Hachette
Piper, John (2002). Sorriso
escondido de Deus. São Paulo: Editora Shedd Publicações
Wikipédia. Humor. [Em linha]: http://pt.wikipedia.org/wiki/Humor,
ac. Junho de 2015.
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