domingo, 14 de junho de 2015

Sobre o sentido do humor

A leitura, na revista Visão, de 11 a 17 de junho, da peça “O Lápis Afiado de Cunhal”, sobre a faceta alegadamente menos conhecida do líder histórico do PCP, deu-me azo à reflexão que, a seguir, se desenrola sob o título enunciado em epígrafe.
A expressão e o sentido do humor são elementos definidores da personalidade de um indivíduo e de um povo. Se as pessoas e os povos se assemelham no choro, diferenciam-se no riso. Como bem explicita António Freire (cf Freire, 1986), as lágrimas de Andrómaca, aquando da partida do seu Heitor para a famosa guerra de Troia, não são diferentes das da esposa dos tempos medievos ao despedir-se do marido que abalava para a hoste e o fossado, incluindo para as expedições das cruzadas, ou da mulher hodierna de quem o homem se aparta ao emigrar para terras longínquas na busca do sustento ou no combate militar travestido em missão de paz ou função humanitária.
Já, quanto ao riso, não sucede o mesmo. Cada indivíduo, cada grupo social, cada povo ri a seu jeito. Por exemplo, nem todos são capazes de rir com a piada subtil dos papas João Paulo II e Francisco, de Bernard Shaw ou de Álvaro Cunhal, como nem todos riem com a gargalhada estrídula de Plauto ou com a serenidade de Solnado. O riso de Aristófanes seria incompreensível fora de Atenas. Segundo o mencionado António Freire, “os ingleses, que, apesar do clima, da história e do temperamento adversos, se julgam fadados para humoristas (…), continuam a ser um enigma psicológico para os povos do Continente, que em balde se esforçam por lhes descobrir o decantado sentido do humor” (cf Freire, 1986).
Porém, o riso ou o sorriso não pode ser pedido ou roubado, vendido ou emprestado por se tratar de predicado ou coisa que não serve a ninguém se não for dado de graça e espontaneamente. No entanto, a tradição chinesa reza que “o homem que não ri escusa de montar loja” (vd id et ib); e a tradição cristã bem badala, “um santo triste é um triste santo”.
O humor consiste num estado de ânimo cuja intensidade define o adequado grau de disposição e de bem-estar psicológico e emocional do indivíduo, naturalmente (dada a consensual interação entre a componente psíquica e a somática) com as subsequentes e naturais manifestações corpóreas, nomeadamente orais, fisionómicas e gestuais, podendo passar às palavras e aos grafismos.
E o bom humor – expresso na tirada repentista, na piada, na anedota, na historieta, no desenho, no esgar engraçado, no sorriso (sobretudo no sorriso malandro) e no riso – revela a vontade e o estilo de quem usufrui de bem-estar ou pretende ultrapassar-se nas tribulações e adversidades. Tal não significa, apesar de tudo, que os sintomas iniludíveis de satisfação do humorista correspondam sempre ao que lhe vai na alma, sobretudo se ele se profissionalizou na área.
Mas o bom humor revela-se também na caricaturização, na ironia zombeteira, na crítica satírica e mesmo nalgumas tiradas de postura despiciente.
No décimo aniversário da morte de Álvaro Cunhal, os seus estudiosos salientam: os cartoons inéditos; os desenhos desconhecidos, em especial os autorretratos; as caricaturas de camaradas e dos ricalhaços; os gatinhos; os pequenos esquissos feitos durante as longas reuniões; e as piadas a propósito de tudo e todos, incluindo as tiradas de bom humor sobre os reacionários. Até parece que ao político é vedado o sentido de humor ou o palavrão!
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O vocábulo humor – no latim, (h)umor: elemento líquido, de cuja família lexical são os vocábulos (h)umorosus, (h)umescere, (h)umefacere, (h)umens, (h)umidus, (h)umiditas, (h)umidificare, (h)umectare, humectatio, humane, humanus, humanitas, humanare, homo e hemo e sendo seus parónimos húmus (terra), humare, humatio, inumare, exumare, humilis, humilitas, humiliare…– e conceitos afins (no grego, hígros – humidade; kimós – suco; diáthesis – disposição) surgiram na medicina humoral dos antigos gregos em tempos em que o humor se referia a qualquer um dos quatro fluidos corporais (ou humores), tidos como os responsáveis pela saúde física e emocional humana enquanto seus reguladores.
Ora, o humor ou o bom humor (no grego, euthimía – satisfação), como elemento vital da condição humana, é uma das diversas chaves da interpretação e compreensão das culturas, religiões e costumes das sociedades, em sentido amplo. Como bem observam os filósofos, o homem é o único ser que ri – o riso é propriedade (proprium) unicamente do homem – se excetuarmos o chamado riso de Deus glosado ficcionalmente no romance de António Alçada Batista (2009) ou o metafórico sorriso escondido de Deus, de John Piper (2002) – e, através dos tempos, a maneira humana de sorrir e rir modifica-se acompanhando os costumes e correntes de pensamento.
Se em cada época da história humana a forma de pensar ora cria ora derruba paradigmas de vida, de interpretação do mundo e de ação, o humor acompanha essa tendência humana e sociocultural. Expressões culturais do humor podem representar e revelar retratos fiéis de uma época, como é o caso, por exemplo, das comédias gregas de Menandro e de Aristófanes ou das comédias paleatae de Plauto e de Terêncio e das pertinentes comédias de costumes dos tempos da modernidade, sem olvidar os autos vicentinos no quadro do castigat ridendo mores.
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Porém, o humor não pode ser encarado apenas pelo lado bom ou agradável, até porque muitas vezes aquilo que agrada a uns desagrada a outros e pode mesmo injuriá-los.
Ter bom humor ou ter mau humor são algumas das expressões que remontam à teoria humoral de Hipócrates, ou seja, mergulham na já apontada medicina humoral dos velhos gregos. Segundo esta teoria médica, vigente até ao século XVIII, o corpo segregava diversos humores, sendo cada um dos humores produzido em diferentes órgãos. Ora, mantendo-se o equilíbrio na geração e distribuição desses humores, o organismo apresentava o que chamamos bom humor; ocorrendo qualquer situação de desequilíbrio na produção ou na distribuição dos humores, resultaria no organismo a desagradável manifestação de mau humor. Com base na observação do processo da doença, a medicina hipocrática formulou como premissa basilar a crença inabalável no poder curativo da physis, a Natureza, cabendo ao médico, mercê da sua capacidade medidora e moderadora (médico provém do indo-europeu, dos termos med e mod a significar medida, aferição), restabelecer os equilíbrios. Ainda hoje esse pode curativo é tido em boa conta, quando o médico recomenda ou prescreve exercício físico, tomada de ares, ingestão de água, etc., ou quando os pacientes são submetidos a tratamentos fisiátricos ou fisioterápicos.
A physis, no dizer dos filósofos chamados fisiologistas, possuía primordialmente quatro elementos primários: ar, água, terra e fogo. Aristóteles associou a estes elementos quatro predicados: quente, frio, húmido e seco. Das diversas combinações dos predicados com os elementos resultava tudo o que é visível no cosmos e pelas relações estabelecidas entre eles eram marcadas as quatro estações: o ar era quente e húmido; a água era fria e húmida; a terra era fria e seca; e o fogo era quente e seco.
Por outro lado, vincularam-se aos quatro elementos primordiais os humores, que provinham da mistura dos elementos primários em quatro proporções diversas. Assim, os humores básicos, também em número de quatro, eram: o sangue, a pituíta (fleuma ou catarro), a bílis (ou bílis amarela) e a atrabílis (ou bílis negra ou melancolia). Por alguma razão temos os temperamentos fleumáticos e as atitudes atrabiliárias. Cada humor tinha sede própria no organismo, que funcionava como centro regulador da sua dinâmica e para ela era atraído: o sangue, no coração; a pituíta, na cabeça; a bílis, no fígado; e a atrabílis, no baço.
Assim se percebe que ser/estar fleumático ou ser/estar melancólico são expressões que remetem para o contexto da medicina humoral. Durante séculos, integravam a terminologia médica para apelidar tipos físicos de indivíduos. Porém, com a evolução semântica, adquiriram significado diverso: o fleumático passou a caraterizar a pessoa formal e grave; e o melancólico, a caraterizar a pessoa triste e acabrunhada. Mas a teoria medicinal dos humores originou mais expressões. Por exemplo: Ter maus fígados será sinónimo de mau feitio, já que ao fígado cabia o papel da regulação biliar. Ser um inimigo figadal significa ser um inimigo de longa data e por quem se tem e nutre particular ódio. E, no quadro da interação psicossomática, está associada à regulação biliar a regulação da personalidade, pelo que também se diz de alguém de mau feitio que tem maus fígados, que tem má bílis, que é só fel ou que está com os azeites.
Desta antiga ciência médica vêm mais expressões. Estar com a neura significa andar aborrecido. Neura é um termo abreviado de neurastenia (do grego nêuron, nervo + asthéneia, fraqueza) e designa o estado geral de melancolia ou depressão. Estar histérico (do grego, hystera, que significa útero, madre), caraterizava o estado de espírito que se atribuía exclusivamente às mulheres. A partir do século XIX, passou a aplicar-se indistintamente a homens e mulheres em virtude de os sintomas externos de distúrbio serem comuns. Dar uma panaceia (do grego pan, tudo + ákos, remédio) significa dar um remédio ou mezinha que sirva para “curar” todas as doenças. Panaceia era, na mitologia grega, a filha do deus da medicina, Asclépio (no latim, Esculápio). A sangria desatada designa uma situação de extrema emergência. A sangria era a operação – a única que alguns médicos sabiam fazer e que, dada a sua ineficácia clínica, foi gradualmente abandonada nos séculos XVIII e XIX – que consistia em golpear uma veia do paciente para que, pelo sangramento, ele ficasse aliviado das suas maleitas, mercê da reposição dos humores. Quando a sangria era mal executada, chama-se desatada, pois, a hemorragia, se não fosse estancada a tempo, seria fatal. Também a purga – que hoje, em virtude da evolução semântica, se aplica à expulsão de pessoas indesejáveis de uma instituição – era um dos modestos meios terapêuticos, que consistia no processo de levar o paciente a expulsar do seu organismo várias substâncias indesejáveis: pelo vómito (através dos vomitórios), defecando (através dos clisteres) ou sangrando (através das sangrias). – (cf Gaffiot, 1995 e Carvalho, 2015).
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Apesar de o humor ser largamente estudado, teorizado e discutido por filósofos, psicólogos e sociólogos, bem como elaborado por literatos e registados por historiadores, causídicos e oradores, permanece extraordinariamente difícil de definir, quer na sua vertente psicológica quer na sua expressão, como forma de pensamento e de arte. Na verdade, é de colocar a distinção entre o humor e outras vertentes similares dele como o cómico, a ironia ou a sátira.  
O cómico, nas suas diferentes modalidades – de linguagem, de situação e de caráter –, explora o efeito-surpresa e contribui para a diversão e para a catarse do interlocutor ou do espectador. Contudo, na sua versão de burlesco, o cómico popularucho é humor mal realizado.
A ironia parece mais configurar a simulação subtil de dizer uma coisa por outra. A ironia não pretende ser aceite, mas compreendida e interpretada. Na perspetiva socrática, a ironia é uma espécie de “docta ignorantia”, ou seja, “ignorância fingida” ou “constructa” que, sabendo a resposta, a questiona e orienta para o que quer que esta seja. É, pois, um processo de consecução ou aprimoramento do saber. Em Aristóteles e São Tomás de Aquino, a ironia não passa de uma forma de obtenção de benevolência alheia pelo fingimento de falta de méritos próprios. A partir de Kant, assentando no sistema idealista, a ironia passa a ser considerada alguma coisa aparente, que, como tal, se impõe ao homem vulgar ou distraído. Porém, a ironia raia as marcas do humor quando se posiciona na sua face zombeteira
Corrosiva e implacável, a sátira é utilizada por aqueles que demonstram a sua capacidade de indignação, de forma divertida, para fulminar abusos, castigar pelo riso, os costumes, denunciar determinados defeitos, melhorar situações aberrantes, vingar injustiças… Umas vezes é sarcástica e mesmo brutal, outras vezes é mais subtil.
Já o humor como tal é determinado essencialmente pela personalidade de quem ri. Por isso, pode pensar-se que o humor não ultrapassa o campo do jogo ou os limites imediatos da sanção moral ou social. Não obstante, ele pode subir mais alto e atingir os domínios da compreensão filosófica, logo que o emissor penetre em regiões mais profundas, no que há de íntimo na natureza humana, no mistério do psíquico, na complexidade da consciência, no significado espiritual do mundo que o circunda. Pode, assim, concluir-se que o humor é a mais subjetiva e mais individual categoria do cómico, pela coragem e elevação que pressupõe. Logo, o que o distingue das restantes formas do cómico é a sua independência em relação à dialética e a ausência de função marcadamente social. Trata-se, portanto, de uma categoria intrinsecamente enraizada na personalidade, definindo-a e dela fazendo parte. É por isso que se diz que “há tantos humores como humoristas”. Através da asserção de São Tomás de Aquino, “Ludus est necessarius ad conversationem humanae vitae” (o humor é necessário para a vida humana), percebe-se que, assim como o sono está para o repouso corporal, também o humor está para o repouso da alma. A analogia entre o sono e o humor é claramente explícita no que diz respeito à importância do humor na vida do homem. É por esta razão que o humor é considerado por São Tomás um “bem útil” e necessário, mas também pode ser um vício por excesso, ou seja, por falta de controlo e mediocridade no seu uso. Aqueles que exageram no brincar tornam-se inoportunos, por querer fazer rir constantemente, ao invés de tentar não dizer algo imoral e mesmo agressivo para com aqueles a quem a “brincadeira” é dirigida. O humor pode também ser um vício por ausência ou omissão. Aqueles que carecem de humor, irritam-se com os que o usam e tornam-se “frios” e distantes, não deixando a sua alma repousar pelo uso do humor. Como no meio é que está a virtude (In medio virtus), aqueles que usam convenientemente do humor têm a capacidade de converter em riso as coisas que dizem ou fazem.
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Quanto às teorias do humor, elas podem reduzir-se a três: teorias da superioridade; teorias da incoerência; e teorias do alívio.
As teorias da superioridade pressupõem que o riso é oriundo da sensação de superioridade de um indivíduo frente a outro ou nalguma situação. Constitui o riso uma resposta a uma “gloria repentina” advinda da perceção de superioridade por parte do indivíduo. A superioridade pode dar-se não só pela depreciação do outro, mas também por via da ética e da moral estabelecidas em piadas e trocadilhos que zombam das regras gramaticais, sociais ou mesmo morais vigentes.
Nas teorias da incoerência, a incoerência, tida como força motriz da situação cómica, é identificada como uma “experiência frustrada”. A este respeito, Immanuel Kant alegava que o humor surge da “transformação repentina de uma grande expectativa para o nada”. Ora, o humor consiste na dissolução violenta de uma atitude emocional, produzida pela associação de duas ideias inicialmente distantes. Segundo tais preceitos, a piada de boa qualidade deverá necessariamente mesclar dois elementos altamente contrastantes de modo que se estabeleça forte relação entres ambos. Para que a piada tenha boa aceitação pelo público, é essencial que este esteja inteirado das ideias opostas que a piada apresenta. Da mesma forma, o comediante deve inteirar-se dos aspetos socioculturais do público a fim de conseguir estabelecer relações inusitadas para a respetiva plateia, uma vez que certas relações podem parecer inusitadas para um grupo e não para outro.
E, segundo as teorias do alívio, o humor provém da remoção de uma tensão. Sigmund Freud teorizou que esta tensão é resultado da ação da “censura”, designação que deu às proibições internas que impedem o indivíduo de dar forma aos seus impulsos naturais. O humor seria então a forma de enganar a censura e provocar alívio, originando, por conseguinte, o riso.
A censura é enganada se a quebra da proibição for disfarçada por uma ideia que não denote algo proibido, como um insulto dito a modo de elogio. (Wikipédia, 2015).
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Concluindo, o sentido de humor não faz parte dos cinco sentidos convencionais, já que é uma espécie de sexto sentido peculiar cuja função principal é potenciar os demais. O que vemos, ouvimos, cheiramos, provamos e/ou palpamos, tudo ganha uma dimensão diferente se lhe acrescentarmos um chiste por mais diminuto que seja, desde que seja chiste (narrativa breve, ou mesmo sincopada, mas que tenha muita pimenta na cauda). Mesmo nos conteúdos produzidos por gente cinzenta ou nos cozinhados a cargo de chefes competentes, mas sem a mais pequena graça, o nosso sentido de humor pode tomar a iniciativa de operar milagres, tornando o que apenas seria tolerável verdadeiramente atraente e apetecível.  
Até na extraordinária miscelânea de sentidos e sentimentos que é o amor na primeira pessoa, o sentido de humor se torna imprescindível para relativizar os avanços e recuos inopinados que caraterizam as relações que nascem fora dos “laboratórios” convencionais. Seguindo a velha máxima leninista, é preciso saber dar um passo atrás, para poder dar dois em frente.
Referências
Batista, António (2009). O riso de Deus. Lisboa: Editorial Presença.
Carvalho, Sérgio (2014). Nas bocas do mundo. 2.ª ed. Lisboa: Planeta.
Freire, António (1984). Helenismos portugueses. Braga: Faculdade de Filosofia.
Freire, António (1986). Humanismo Clássico. Braga: Faculdade de Filosofia.
Freire, António (1987). Estudos de Literatura Grega. Braga: Faculdade de Filosofia.
Gaffiot, H. (1995). Dictionnaire Latin-Français. 50.ª ed. Paris: Hachette
Piper, John (2002). Sorriso escondido de Deus. São Paulo: Editora Shedd Publicações

Wikipédia. Humor. [Em linha]: http://pt.wikipedia.org/wiki/Humor, ac. Junho de 2015.

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