quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Partido que vive mal com o não seguimento da sua linha oficial


Os partidos políticos são associações que perseguem objetivos públicos, para o que mobilizam pessoas que devem sintonizar com o núcleo temático ideológico-pragmático que os enforma. Todavia, muitas das divergências que surgem no seio dos partidos não têm a ver com o núcleo temático fundamental, mas com a luta por maior ou total visibilidade alegando maiores competências ou mais feitos que os adversários internos.
Nestes termos, o IX Congresso do Livre, do próximo fim de semana, no Centro Cívico Edmundo Pedro, em Lisboa (Bairro de Alvalade), vai ser palco do manifesto conflito entre a sua deputada única, Joacine Katar Moreira, e a direção partidária. Para já, sabe-se que no congresso Joacine deixará de integrar o Grupo de Contacto do Livre (direção executiva), não integrando a lista única candidata e também não é candidata à Assembleia, órgão máximo deliberativo entre congressos.
O Livre não tem outra alternativa a não ser retirar-lhe a confiança política” é a última frase da moçãoRecuperar o LIVRE, resgatar a política”, uma das quase duas centenas de moções específicas (o equivalente noutros partidos às moções setoriais) que será discutida no congresso e subscrita por militantes que não são dirigentes nacionais, exclusivamente dedicada a Joacine.
No texto pode ler-se:
Eis-nos chegados a um ponto em que as causas defendidas pelo LIVRE parecem não conseguir sobrepor-se ao ruído constante provocado pelos faits divers mais estapafúrdios; em que o coletivo parece soçobrar numa desmedida exposição mediática do indivíduo; em que o partido se arrisca a ver a sua própria sobrevivência posta em causa”.
E conclui:
Assim sendo, no caso de a deputada não se [dispor] a renunciar às suas funções, o LIVRE não tem outra alternativa a não ser retirar-lhe a confiança política”.
Na verdade, o livre é hoje conhecido pelas “peripécias, atribulações e polémicas internas” que o levaram à degradação da sua imagem pública e credibilidade. Isto, apesar de se reconhecer que a eleição de uma deputada encheu todos os LIVREs de entusiasmo e esperança, pois existiam agora as condições para que os valores defendidos pelo partido passassem a ser conhecidos por mais e mais pessoas, ao mesmo tempo que era possível trabalhar com vista à defesa e implementação de medidas que melhorassem a vida de todos”. Porém, do ponto de vista estritamente político, hoje a situação é confrangedora porquanto, de outubro até agora, a deputada apresentou só duas iniciativas (Projeto de Lei 126/XIV e Projeto de Resolução 64/XIV), tendo a primeira e principal entrado fora de prazo por concessão do Presidente do Parlamento, e votou, pelo menos uma vez, em sentido contrário ao da direção partidária.
Na verdade, “a falta de articulação entre os órgãos do partido e o gabinete parlamentar, agravada pelas constantes declarações à comunicação social, afetaram, de modo insanável, as relações institucionais entre os órgãos do LIVRE e a deputada eleita”. Por outro lado, a asserção da deputada de que “ganhou as eleições sozinha” deixou estupefacta “a generalidade dos membros, apoiantes, simpatizantes e votantes do LIVRE”. Ademais, as suas intervenções no hemiciclo evidenciaram falta de preparação, circunstância que encontra parte da explicação no facto de o gabinete parlamentar assumir postura dissidente em relação aos órgãos do partido, fixando-se na espetacularidade e em minudências. E, considerando que o trabalho parlamentar se estende para lá do hemiciclo, é muito pouco, sobretudo tendo em conta os problemas ambientais a que Portugal não escapa, a degradação dos serviços públicos que se agravou apesar de alguma boa vontade do Governo, a chegada da extrema-direita ao Parlamento e a perigosa cooptação que esta tem feito de temas como a corrupção, entre outras questões prementes em que o LIVRE entende como necessário ter uma palavra a dizer e assumir-se como uma voz que deve ser ouvida.
***
O caminho está traçado para a deputada. Tudo aponta para que o congresso aprove o que representa uma moção de censura, embora haja uma moção que lhe é favorável.
Nos termos da predita moção, subscrita por militantes do norte, a deputada ou sai (renuncia) ou passa a independente, ou melhor, a deputada não inscrita. E o Livre arrisca-se a não ter representação parlamentar, deixando a Casa da Democracia de lhe dar uma palavra e uma voz que deve ser ouvida sobre aqueles temas todos que o partido leva tanto a peito.
O facto de a deputada não ter sido reconduzida na direção executiva do Livre (Grupo de Contacto) é sinal de que a rutura final está prestes a consumar-se. Joacine será confrontada com a escolha. Porém, uma coisa é certa: o mandato pertence-lhe, não podendo nenhuma direção partidária retirar o mandato a um deputado, a menos que ele mude expressamente de partido.
A susodita moção está, porém, longe de ser a única em que o “caso” é abordado. Estarão 19 em discussão, uma global, da direção, e 18 setoriais. E várias refletem sobre o problema.
Não obstante, há uma que defende a deputada, significando isto que Joacine não está totalmente isolada dentro do Livre. Intitulada “Um compromisso do Livre com as lutas emancipatórias” e apresentada pelo militante João Faria-Ferreira, refere que “o escrutínio, por vezes injusto e tendencioso, da parte da comunicação social, e a divulgação de notícias falsas nas redes sociais, não foram alvo de um repúdio e condenação sérios da parte do partido”. E sustenta que “não se pode deixar, seja qual for a situação, uma pessoa, camarada ou não, sentindo-se profundamente só”. Ou seja, “um partido que se apresentou a eleições com a primeira mulher negra cabeça-de-lista, que escolheu em primárias, e que diz levantar a bandeira antirracista, não soube criar um ambiente interno seguro para uma das suas camaradas” – pode ler-se no texto da moção.
João Faria-Ferreira insinua que a direção do Livre, no conflito com a deputada, pode ter deixado condicionar-se por problemas de racismo. E justifica:
O racismo institucional e estrutural presente na sociedade em que todos nós crescemos condicionou-nos a que hoje, involuntariamente, também os mais bem intencionados cometam atos de racismo”.
Por isso, o militante do Livre considera e propõe:
Urge, talvez, fazer algo: perceber melhor o que é o racismo, através das palavras de pensadores negros; e que os membros e apoiantes de um partido que foi a eleições com a bandeira do feminismo e antirracismo mudem de postura e atitude”.
Portanto, o subscritor da moção pensa que, “para combater a instrumentalização das lutas, concretizando as promessas que foram feitas durante a campanha”, é preciso incentivar o gabinete parlamentar e a deputada através de apoio logístico e político, a apresentar na Assembleia da República, com a maior brevidade possível, “as propostas concretas” e “mais viáveis” do Livre sobre igualdade, justiça social e liberdade constantes no programa eleitoral que o partido levou a votos nas últimas legislativas. Por outro lado, “para ajudar no processo da cura de feridas e para acabar com a crise interna”, há que “assegurar a autonomia da deputada” e estabelecer “canais de contacto saudável entre o grupo parlamentar, o Grupo de Contacto, a Assembleia e todos os membros e apoiantes do Livre, onde podem ser colocadas dúvidas e críticas construtivas”.
E, finalmente, o subscritor da moção entende que, “para a boa reputação do Livre”, é preciso “defender publicamente a deputada e o seu gabinete parlamentar de ataques infundados e de notícias falsas, mantendo uma frente unida contra a extrema-direita”.
Por seu turno, a moção global (que sustenta a lista única candidata à direção executiva) reconhece que “a eleição para Assembleia da República levantou “várias questões de funcionamento dos órgãos do partido e de métodos, que é necessário sistematizar e analisar construtivamente, de forma a tornar fluido e articulado o trabalho dentro do Livre, com as suas representações e na comunicação para o exterior”. Nestes termos, serão promovidos, “em conjunto com a Assembleia, grupos de análise que possam apontar as melhorias a adotar, já a tempo das próximas eleições nos Açores, em outubro deste ano”.
A moção global critica implicitamente Joacine, quando desaconselha práticas contrárias aos princípios da “colegialidade” do partido. No texto, pode ler-se:
O Livre constitui-se como um partido colegial nos processos de tomada de decisão em todos os órgãos que constituem o partido. (…) Esta forma de funcionamento, que reflete uma forma de praticar a política, aplica-se também à tomada de posições políticas e estratégicas. A colegialidade permite também garantir uma maior representatividade e uma maior diversidade de experiências, enriquecendo a mensagem política e fugindo da sua pessoalização. (…) Deve haver tempo de balanço e reflexão sobre como encarar o maior escrutínio a que estamos sujeitos.”.
E especifica-se:
Esta prática de colegialidade, participação e transparência procura uma abertura da política a toda a sociedade, seja através da votação de emendas e programas, seja a eleição dos candidatos do partido através de eleições primárias abertas. Esta abertura privilegia a transparência, o debate político e a defesa das opiniões, sempre baseada no princípio da confiança mútua, entre camaradas, entre órgãos e entre representantes e representados.”.
Na moção “Maximizar a participação e a inteligência coletiva nos processos de tomada de decisão”, sugere-se a partir da experiência recente:
Com a eleição de uma representação parlamentar, pode considerar-se que o Livre iniciou um novo ciclo de crescimento e afirmação política. No IX Congresso deve haver tempo de balanço e reflexão sobre como encarar o maior escrutínio a que estamos sujeitos. (…) É impossível negarmos que existe algum experimentalismo com a introdução deste tipo de soluções, e que, sendo positivas, o bom senso diz-nos que, como em qualquer experiência, é necessário avaliar os seus resultados.”.
E aduz-se:
O processo de primárias precisa de ser aperfeiçoado, nomeadamente assegurando que o partido se reveja nos candidatos selecionados e que estes se revejam nos programas que defendem; uma devida apresentação e debate aprofundado entre os/as candidatos; e a criação de uma cultura de confiança e de incorporação do Código de Ética do Livre”.
Já no texto intitulado “Pensar o partido”, reconhece-se algum “experimentalismo” nas soluções internas organizativas do partido, defendendo-se que há que “avaliar os resultados”:
Não há dúvida de que o Livre difere em termos de estrutura organizativa, quando comparado aos restantes partidos portugueses, e, mesmo no cenário europeu, são poucos os partidos que apresentam este tipo de qualidades. No entanto, dada a recente idade do Livre, é impossível negarmos que existe algum experimentalismo com a introdução deste tipo de soluções, e que, mesmo sendo positivas, o bom senso diz-nos que, como em qualquer experiência, é necessário avaliar os seus resultados.”.
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Não convinha que o Livre se refugiasse na colegialidade, que tem de valer também e sobretudo pelos conteúdos. Sendo o partido e a deputada verdes nas lides parlamentares, deveria ter-se instalado um sistema forte de mútua cooperação. Neste aspeto, o livre não difere de outros partidos, só que tem um aparelho menos estruturado e sólido, mas talvez mais autista, e quer ditar sentenças parlamentares sem conhecer os mecanismos de funcionamento da Assembleia da República. Por seu turno, a deputada quis protagonismo e vitimização, ficou-se no seu protagonismo eleitoral, quando devia ter assumido que a vitória foi coletiva e solidária, e perdeu a batalha da imagem, quando quis impedir a publicação duma foto da comissão que integra.
Porém, o Livre, como postula a sua designação, devia primar pela tolerância e pelo reconhecimento da liberdade e relativa autonomia da deputada. Assim, arrisca-se, pela autarcia partidária, a não ter voz parlamentar na legislatura. Recuperá-la-á daqui a quatro anos?  
2020.01.15 – Louro de Carvalho

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