domingo, 26 de janeiro de 2020

O 1.º Domingo da Palavra de Deus


No rescaldo da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, que terminou ontem, dia 25, celebrou-se hoje, dia 26, III domingo do Tempo Comum no Ano A, o 1.º Domingo da Palavra de Deus, sabiamente instituído pelo Papa Francisco, não porque deva ser este o único em que a Palavra de Deus está em evidência, mas como ensejo para uma reflexão mais aprofundada sobre o âmago e as exigências das Escrituras e com alguma atividade comunitária significativa que inspire a celebração dos demais domingos. Tudo numa perspetiva da edificação da Igreja, santificação dos crentes e bem da humanidade, destinatária da missão universal da Igreja e objeto do amor infindo e infinito de Deus.
A Palavra de Deus não é um repositório de antiguidades adequadas a um espaço museológico, mas o sinal de Cristo vivo entre nós e em nós, que acontece sempre que lemos, proclamamos e refletimos uma passagem bíblica entendida segundo a ótica de Jesus Cristo ressuscitado, que aos discípulos de Emaús, começando por Moisés e seguindo por todos os Profetas, explicou-lhes, em todas as Escrituras, tudo o que lhe dizia respeito(Lc 24,27). Mas não esqueçamos que aqueles dois discípulos, apesar de lhes “arder o coração” quando Ele lhes falava pelo caminho e lhes explicava as Escrituras, só O reconheceram quando Ele “se pôs à mesa, tomou o pão, pronunciou a bênção e, depois de o partir, lho entregou” (cf Lc 24,30-32).
Veja-se o que pode fazer em nós a Palavra – fazer arder o coração – se a escutarmos com atenção, afeto e desejo de não sermos apenas ouvintes, mas praticantes (cf Tg 1,22) em prol da nossa santificação e bem dos irmãos. Depois, há que ter em conta as potencialidades da Palavra contida nas Escrituras: pode instruir-nos, em ordem à salvação pela fé em Cristo Jesus, pois toda a Escritura é inspirada por Deus e adequada para ensinar, refutar, corrigir e educar na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e esteja preparado para toda a obra boa (cf 2Tm 3,15-16).
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E a Palavra de Deus adverte-nos para a obrigação da oração e zelo pela Unidade dos cristãos. Além de ser conhecida a oração sacerdotal do Senhor em contexto da Ceia, antes de padecer, com a prece de que todos sejam um como Jesus e o Pai o são para que o mundo creia (cf Jo 17,21), vem agora o apóstolo Paulo protestar contra o divisionismo que estava a criar-se na Igreja de Corinto depois de ele dali sair. Perante a eloquência convincente de Apolo (maior que a de Paulo), um judeu convertido ao Cristianismo, uns diziam-se partidários de Pedro, outros de Paulo, outros de Pedro e outros de Cristo. Aí Paulo pergunta se Cristo está dividido ou se foi Paulo que foi crucificado (e podia ter dito o mesmo de Apolo ou de Pedro). Por isso, o apóstolo, que foi enviado para evangelizar e não para ter um batismo em seu nome, exorta vivamente a que se tenha em conta a cruz de Cristo como centro da doutrina, pelo que devem cessar as divisões e construir-se a estreita união entre todos no mesmo pensar e no mesmo agir (cf 1Cor 1,10-13.17).
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Porém, o Papa, na homilia, foi às origens da pregação de Jesus, baseado na passagem evangélica deste domingo (Mt 4,12-23), “que nos diz como, onde e a quem Jesus começou a pregar.  
Começou com uma simples frase “Convertei-vos, porque está próximo o Reino dos Céus” – a base de todos os discursos de Jesus. Assim ficamos a saber que “Deus não está longe”, mas “desceu à terra, fez-Se homem”. Com a encarnação em Jesus, “removeu as barreiras, eliminou as distâncias” e “veio ao nosso encontro” cumprindo na plenitude todo o desígnio e promessas do Antigo Testamento. E diz o Santo Padre:
Não tomou a nossa condição humana por um sentido de dever, mas por amor. (…) Deus tomou a nossa humanidade, porque nos ama e, gratuitamente, quer-nos dar a salvação que, sozinhos, não poderíamos obter. Deseja estar connosco, dar-nos o encanto de viver, a paz do coração, a alegria de ser perdoados e nos sentirmos amados.”.
Em conformidade com esta postura de Deus vem o convite “convertei-vos”, pois “começou o tempo de viver com Deus e para Deus, com os outros e para os outros, com amor e por amor”. É para isto que o Senhor nos dá a sua Palavra: para que a recebamos como a carta de amor que escreveu para nós, para fazer-nos sentir que Ele está junto de nós com a Palavra que nos consola e liberta da paralisia e da opressão e que tem o poder de nos mudar de vida, “de fazer passar da escuridão à luz”. De facto, em Jesus cumpre-se o que disse Isaías:
O povo que andava nas trevas viu uma grande luz; para os que habitavam nas sombras da morte uma luz se levantou. (…) Rejubilam na vossa presença, como os que se alegram no tempo da colheita, como exultam os que repartem despojos. Vós quebrastes, como no dia de Madiã, o jugo que pesava sobre o povo, o madeiro que ele tinha sobre os ombros e o bastão do opressor.” (Is 9,1-4; Mt 4,16).
Depois, começou a pregar na Galileia dos Gentios, de que falava Isaías (8,23b) região periférica aonde aportavam pessoas de várias proveniências, “formando uma verdadeira amálgama de povos, línguas e culturas”, mas consideradas de baixa categoria. E sublinha o Pontífice:
Era o caminho do mar, que constituía uma encruzilhada. Lá viviam pescadores, comerciantes e estrangeiros: não era de certeza o lugar onde se encontrava o povo eleito na sua pureza religiosa melhor. E, no entanto, Jesus começou de lá: não do átrio do templo de Jerusalém, mas do lado oposto do país, da Galileia dos gentios, dum local de fronteira. Começou duma periferia.”.
Como lição, é de inferir que “a Palavra que salva não procura lugares refinados, esterilizados, seguros”, antes “vem à complicação dos nossos dias, às nossas obscuridades”. Porém, somos nós que tantas vezes lhe fechamos a porta.
E Jesus, “caminhando ao longo do mar da Galileia, viu dois irmãos (…) que lançavam as redes ao mar, pois eram pescadores”. E lançou-lhes o convite: “Vinde comigo e Eu farei de vós pescadores de homens”. Ora, os primeiros destinatários da Palavra foram pescadores, “não pessoas selecionadas com base nas suas capacidades, nem piedosas, mas gente comum que trabalhava. Jesus fala a pescadores e usa linguagem que eles compreendem. Chama-os onde estão e como são, para os envolver na própria missão d’Ele, a do serviço ao Reino de Deus, que está próximo. E eles seguiram-No deixando tudo, atraídos por amor. Depois, outros dois pescadores tiveram o mesmo convite e tomaram a mesma postura de seguimento.
E inaugura-se o tempo da íntima experiência apostólica no colégio de Jesus em torno da Palavra do Reino, sendo que Jesus, enquanto percorria toda a Galileia (e, depois, a Samaria e a Judeia), “ensinando nas sinagogas, proclamando o Evangelho do Reino e curando todas as doenças e enfermidades entre o povo”, lhes revelava paulatinamente os seus segredos e lhes confiava algumas missões. Tudo gira entre o convite de Jesus ao seguimento para deles fazer pescadores de homens, agora lido à luz da Ressurreição, e o mandato: “Como o Pai me enviou também eu vos envio a vós. (…) Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, ficarão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ficarão retidos.(Jo 20,22-23). Ou então:
Ide, fazei discípulos de todos os povos, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado. E sabei que Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos.” (Mt 28,19-20).
Como os apóstolos, cada um de nós é chamado, segundo a sua condição, ao serviço à Palavra, para se estabelecer o arrependimento e o perdão e se gerar a comunidade. Para tanto, temos de dar espaço à Palavra e acolhê-la para, como diz o Papa, descobrirmos que “Deus está perto de nós, ilumina as nossas trevas e amorosamente impele para o largo a nossa vida”.
2020.01.26 – Louro de Carvalho

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