É óbvio
que me desgosta a polémica surgida em torno do caso do livro do Cardeal Robert
Sarah, que o Papa Francisco nomeou, em 2014, Prefeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, livro
a que fica associado, queira ou não, o Papa emérito Bento XVI – não pela
importância da alegada divergência em relação ao Pontífice reinante, mas pelo
entendimento e aproveitamento que do caso alguns possam fazer.
Sabe-se
que o purpurado guineense (da Guiné Conacri) se encosta à linha mais conservadora
dos dicastérios romanos, mas isso é o preço de querermos uma Igreja plural em
que a discussão de ideias seja tão livre quanto possível e a unidade na
diversidade leve à aceitação das decisões papais, sobretudo as suportadas pelo
dogma, pelos concílios e sínodos. E, no desempenho do seu múnus dicasterial, o
Prefeito tem gerido a importante Congregação sem fuga às orientações superiores
levando-a a propor alterações ao ordenamento litúrgico, nomeadamente na
elaboração de textos para missa e ofício em sequência das beatificações e
canonizações, bem como da nova valorização de alguns santos, como foi o caso de
Santa Maria Madalena.
Deu
algum brado a instrução sobre a matéria do sacrifício eucarístico exigindo que
o trigo destinado à consagração do pão tenha algum glúten, o que implica o
arredamento da comunhão dos celíacos. A meu ver, trata-se de assunto a que a Congregação para a Doutrina da Fé devia
dar especial atenção promovendo um estudo histórico-teológico sobre a matéria
do sacrifício eucarístico, o que tem separado a Igreja latina, que exige que o
pão seja ázimo (sem fermento e sem sal) das Igrejas Orientais, que
utilizam o pão comum, o que, segundo os teólogos, não põe em causa a validade
da consagração.
Foi
notícia de algum impacto o facto de Bento XVI ter prefaciado, com virtuoso
elogio ao autor, o livro de Sarah intitulado “A força do silêncio”, o que não tem nada de excessivo, visto que o
Papa emérito, que se remeteu à oração e à discrição no Mosteiro Mater Ecclesiae, e não ao silêncio, como
alguns querem fazer crer, é livre de falar e opinar como Bispo emérito que é.
Não pode é fazer crer ou ser entendido como outro Papa ou como Antipapa de que
se possa derivar para uma luta contra o Papa legítimo e a quem tanto Ratzinger
como Sarah prometeram obediência incondicional. Não obstante, a obediência diz
respeito ao acolhimento das decisões e instruções, não ao silêncio quanto a
temas em debate, embora sem que um ou outro possam usar da pretensa autoridade moral
que detêm para se sobreporem às opiniões e opções dos demais.
***
Recentemente
pôs-se na mesa do debate a questão da ordenação sacerdotal de homens casados no
decurso do Sínodo dos Bispos para a Amazónia, visto que muitas comunidades
ficam por demasiado tempo sem a celebração da Eucaristia. Por isso, muitos dos grupos
dos círculos linguísticos propuseram que se estabelecesse a possibilidade da ordenação
de homens casados já amadurecidos e aceites pelas comunidades naquelas paragens
amazónicas.
Porém,
Francisco no seu discurso final, relevando os diagnósticos feitos e as diversas
vertentes do Sínodo (pastoral,
cultural, social e ecológica), passou em silêncio tal hipótese.
Agora, o
Cardeal Sarah tem um livro intitulado “Das
profundezas dos nossos corações”, que, segundo a antecipação do Le Figaro, que publicou algumas das suas
páginas, enaltece as virtualidades e o mérito do celibato sacerdotal defendendo
a sua obrigatoriedade na Igreja latina, sustentando-se no Novo Testamento e
alegadamente com raízes no Antigo Testamento, bem como respaldando-se na
História da Igreja. E chega a aduzir que ocasiões houve em que se autorizou a ordenação
sacerdotal de homens casados desde que se comprometessem à abstinência das relações
sexuais a partir da ordenação.
O livro
insere um texto de 7 páginas que Bento XVI enviou a Sarah com a indicação de
que o poderia publicar como entendesse e que o Cardeal sintetizou com
fidelidade numa só página como salienta Bento XVI. Além disso, o Cardeal
redigiu uma introdução e uma conclusão que dá como assinadas por si e por Bento
XVI, constando na capa os dois como autores, o que dá a ideia de que o livro foi
escrito a quatro mãos: Ratzinger e Sarah.
Confrontado
com a situação, Bento XVI, sem pôr em causa a boa-fé de Sarah, pediu, através
de Dom Georg Gänswein, Prefeito da Casa
Pontifícia e secretário particular do Papa emérito, que
retirassem o seu nome da edição, porquanto não
autorizou a assinatura conjunta como coautor do livro. E Gänswein
esclareceu às agências Kna e Ansa:
“O Papa emérito, de facto, sabia que o
cardeal estava preparando um livro e tinha enviado um pequeno texto seu sobre o
sacerdócio, autorizando-o a usá-lo como o desejasse. Mas não tinha aprovado
nenhum projeto para um livro assinado conjuntamente nem tinha visto e
autorizado a capa. Foi um mal-entendido, sem questionar a boa-fé do cardeal
Sarah.”.
***
Dificilmente
o Papa emérito se desliga do equívoco em razão da publicidade do caso. Arriscou
enviar o texto e dizer que o recetor publicasse como entendesse. Este, em vez
de escrever o seu livro e inserir o texto para comentar sustentando-se da
autoridade académica e experiencial de Bento XVI, fê-lo coautor para ganhar
força. E o livro tem impacto, mas o Cardeal fica enfraquecido, devendo retirar
o nome de Bento em futuras edições. Quem tudo quer tudo perde.
Veremos o
que escreverá Francisco na sua exortação apostólica pós-sinodal decorrente do
último Sínodo, o da Amazónia. Recorde-se que, tal como referiu o diretor da
sala de Imprensa da Santa Sé, Francisco, na conferência de imprensa no regresso
do Panamá, citou uma frase de São Paulo VI: “Antes quero dar a vida que mudar a lei
do celibato”. E acrescentou:
“Pessoalmente, penso que o celibato é uma
dádiva para a Igreja. (...) Não estou de acordo com permitir o celibato
opcional. Haveria qualquer possibilidade apenas nos lugares mais remotos; penso
nas ilhas do Pacífico... [...] Haveria necessidade pastoral, e o pastor deve
pensar nos fiéis.”.
De facto, há muitas regiões em que a privação da Eucaristia é
crassa e penosa. E é preciso obviar a isso. Talvez seja necessário incentivar
sustentadamente a emergência de mais sacerdotes celibatários, ordenar homens
casados amadurecidos, ampliar a ordenação de diáconos permanentes estendendo-a
às mulheres e desenvolver uma amplidão de ministérios não ordenados na Igrejas,
que muito podem fazer na catequese, liturgia e odegética.
E o caso de Sarah e Bento XVI ficará nos termos do
pluralismo, pois nenhum falou nem pode falar ex catetdra.
2020.01.16
– Louro de Carvalho
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