quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

O equívoco do Cardeal Sarah ou de Bento XVI


É óbvio que me desgosta a polémica surgida em torno do caso do livro do Cardeal Robert Sarah, que o Papa Francisco nomeou, em 2014, Prefeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, livro a que fica associado, queira ou não, o Papa emérito Bento XVI – não pela importância da alegada divergência em relação ao Pontífice reinante, mas pelo entendimento e aproveitamento que do caso alguns possam fazer. 
Sabe-se que o purpurado guineense (da Guiné Conacri) se encosta à linha mais conservadora dos dicastérios romanos, mas isso é o preço de querermos uma Igreja plural em que a discussão de ideias seja tão livre quanto possível e a unidade na diversidade leve à aceitação das decisões papais, sobretudo as suportadas pelo dogma, pelos concílios e sínodos. E, no desempenho do seu múnus dicasterial, o Prefeito tem gerido a importante Congregação sem fuga às orientações superiores levando-a a propor alterações ao ordenamento litúrgico, nomeadamente na elaboração de textos para missa e ofício em sequência das beatificações e canonizações, bem como da nova valorização de alguns santos, como foi o caso de Santa Maria Madalena.
Deu algum brado a instrução sobre a matéria do sacrifício eucarístico exigindo que o trigo destinado à consagração do pão tenha algum glúten, o que implica o arredamento da comunhão dos celíacos. A meu ver, trata-se de assunto a que a Congregação para a Doutrina da Fé devia dar especial atenção promovendo um estudo histórico-teológico sobre a matéria do sacrifício eucarístico, o que tem separado a Igreja latina, que exige que o pão seja ázimo (sem fermento e sem sal) das Igrejas Orientais, que utilizam o pão comum, o que, segundo os teólogos, não põe em causa a validade da consagração.
Foi notícia de algum impacto o facto de Bento XVI ter prefaciado, com virtuoso elogio ao autor, o livro de Sarah intitulado “A força do silêncio”, o que não tem nada de excessivo, visto que o Papa emérito, que se remeteu à oração e à discrição no Mosteiro Mater Ecclesiae, e não ao silêncio, como alguns querem fazer crer, é livre de falar e opinar como Bispo emérito que é. Não pode é fazer crer ou ser entendido como outro Papa ou como Antipapa de que se possa derivar para uma luta contra o Papa legítimo e a quem tanto Ratzinger como Sarah prometeram obediência incondicional. Não obstante, a obediência diz respeito ao acolhimento das decisões e instruções, não ao silêncio quanto a temas em debate, embora sem que um ou outro possam usar da pretensa autoridade moral que detêm para se sobreporem às opiniões e opções dos demais.
***
Recentemente pôs-se na mesa do debate a questão da ordenação sacerdotal de homens casados no decurso do Sínodo dos Bispos para a Amazónia, visto que muitas comunidades ficam por demasiado tempo sem a celebração da Eucaristia. Por isso, muitos dos grupos dos círculos linguísticos propuseram que se estabelecesse a possibilidade da ordenação de homens casados já amadurecidos e aceites pelas comunidades naquelas paragens amazónicas.
Porém, Francisco no seu discurso final, relevando os diagnósticos feitos e as diversas vertentes do Sínodo (pastoral, cultural, social e ecológica), passou em silêncio tal hipótese.
Agora, o Cardeal Sarah tem um livro intitulado “Das profundezas dos nossos corações”, que, segundo a antecipação do Le Figaro, que publicou algumas das suas páginas, enaltece as virtualidades e o mérito do celibato sacerdotal defendendo a sua obrigatoriedade na Igreja latina, sustentando-se no Novo Testamento e alegadamente com raízes no Antigo Testamento, bem como respaldando-se na História da Igreja. E chega a aduzir que ocasiões houve em que se autorizou a ordenação sacerdotal de homens casados desde que se comprometessem à abstinência das relações sexuais a partir da ordenação.
O livro insere um texto de 7 páginas que Bento XVI enviou a Sarah com a indicação de que o poderia publicar como entendesse e que o Cardeal sintetizou com fidelidade numa só página como salienta Bento XVI. Além disso, o Cardeal redigiu uma introdução e uma conclusão que dá como assinadas por si e por Bento XVI, constando na capa os dois como autores, o que dá a ideia de que o livro foi escrito a quatro mãos: Ratzinger e Sarah.
Confrontado com a situação, Bento XVI, sem pôr em causa a boa-fé de Sarah, pediu, através de Dom Georg Gänswein, Prefeito da Casa Pontifícia e secretário particular do Papa emérito, que retirassem o seu nome da edição, porquanto não autorizou a assinatura conjunta como coautor do livro. E Gänswein esclareceu às agências Kna e Ansa:
O Papa emérito, de facto, sabia que o cardeal estava preparando um livro e tinha enviado um pequeno texto seu sobre o sacerdócio, autorizando-o a usá-lo como o desejasse. Mas não tinha aprovado nenhum projeto para um livro assinado conjuntamente nem tinha visto e autorizado a capa. Foi um mal-entendido, sem questionar a boa-fé do cardeal Sarah.”.
***
Dificilmente o Papa emérito se desliga do equívoco em razão da publicidade do caso. Arriscou enviar o texto e dizer que o recetor publicasse como entendesse. Este, em vez de escrever o seu livro e inserir o texto para comentar sustentando-se da autoridade académica e experiencial de Bento XVI, fê-lo coautor para ganhar força. E o livro tem impacto, mas o Cardeal fica enfraquecido, devendo retirar o nome de Bento em futuras edições. Quem tudo quer tudo perde.
Veremos o que escreverá Francisco na sua exortação apostólica pós-sinodal decorrente do último Sínodo, o da Amazónia. Recorde-se que, tal como referiu o diretor da sala de Imprensa da Santa Sé, Francisco, na conferência de imprensa no regresso do Panamá, citou uma frase de São Paulo VI: “Antes quero dar a vida que mudar a lei do celibato”. E acrescentou:
Pessoalmente, penso que o celibato é uma dádiva para a Igreja. (...) Não estou de acordo com permitir o celibato opcional. Haveria qualquer possibilidade apenas nos lugares mais remotos; penso nas ilhas do Pacífico... [...] Haveria necessidade pastoral, e o pastor deve pensar nos fiéis.”.
De facto, há muitas regiões em que a privação da Eucaristia é crassa e penosa. E é preciso obviar a isso. Talvez seja necessário incentivar sustentadamente a emergência de mais sacerdotes celibatários, ordenar homens casados amadurecidos, ampliar a ordenação de diáconos permanentes estendendo-a às mulheres e desenvolver uma amplidão de ministérios não ordenados na Igrejas, que muito podem fazer na catequese, liturgia e odegética.
E o caso de Sarah e Bento XVI ficará nos termos do pluralismo, pois nenhum falou nem pode falar ex catetdra.
2020.01.16 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário