sexta-feira, 31 de julho de 2020

Uma das vítimas da pandemia pode ser a democracia


Celebra-se, no último dia do mês de julho, a Memória litúrgica (na Companhia de Jesus é uma solenidade) de Santo Inácio de Loyola presbítero, que, natural do País Basco, na Espanha, viveu na corte e no exército, até que, gravemente ferido na Batalha de Pamplona, se converteu a Deus. Fez os estudos teológicos em Paris e associou a si os primeiros companheiros – entre eles, o seu professor Francisco Xavier –, com os quais, mais tarde, constituiu a Companhia de Jesus em Roma, onde exerceu frutuoso ministério, quer pelas obras que escreveu, quer na formação dos discípulos, “para maior glória de Deus(o lema jesuítico).
Inácio nasceu em Azpeitia, região basca ao norte da Espanha, em 1491, e faleceu em Roma em 1556. O mais novo de 13 irmãos era destinado à vida sacerdotal, mas o seu desejo era a carreira militar. Foi a Castilha onde recebeu esmerada formação tornando-se exímio cavaleiro na corte do ministro do rei Fernando II de Aragão, o Católico. Ferido em batalha em 1520, permaneceu em longa convalescença no Castelo de Loyola. E, como não havia livros de Cavalarias – seus preferidos –, começou a ler, com relutância, textos religiosos, que o fizeram encontrar Deus.
Foi um momento que mudou a sua vida, levando-o a fundar, mais tarde, a Companhia de Jesus aprovada pelo Papa Paulo III em 1538. Por obediência ao Pontífice, Inácio permaneceu em Roma para coordenar as atividades da Companhia e se dedicar aos pobres, órfãos e doentes, a ponto de ser chamado “apóstolo de Roma”. Os seus restos mortais repousam na Igreja de Jesus.
Na celebração da memória do fundador da Companhia de Jesus, é justo recordar a figura de Inácio, o seu carisma e a grande atualidade dos Exercícios Espirituais, bem como as palavras que Francisco, o primeiro Pontífice jesuíta, escreveu no seu twitter há um ano: “Como Santo Inácio de Loyola, coloquemo-nos ao serviço do próximo”. Com efeito, era um homem que, antes do encontro com Jesus, amava o poder e a mundanidade, mas depois, com dedicação, estudo e escuta a Palavra de Deus, entregou-se à sua vontade com enorme paixão.
Em Roma, na Igreja de Jesus, onde se encontra o seu túmulo, o Padre Jean Paul Hernandez descreve-o como “um homem que dá preferência ao processo e a dinâmica”, “em saída” como o Papa Francisco gosta de afirmar. Na verdade, com assegura, “o centro do carisma do jesuíta é a obediência, que é a liberdade do coração”. Assim, o jesuíta é um homem entregue a Deus e aplica um estilo que passa pela análise a realidade na qual se encontra, o seu aprofundamento, a oração e o discernimento – processo em que são fundamentais os “Exercícios Espirituais”, codificados na primeira metade do século XVI e ainda hoje de grande atualidade, praticados pelos religiosos, por leigos inspirados na espiritualidade inaciana e pelos ortodoxos.
“O estilo do jesuíta faz com que cada um se especialize no âmbito ao qual é chamado” – refere o Padre Hernandez – “por isso dedicamo-nos à nova evangelização, aos desafios do saber atual, mas também aos migrantes que representam a emergência dos nossos tempos”.
O Centro Astalli (Serviço dos Jesuítas para os Refugiados), próximo da Igreja de Jesus em Roma, é uma das muitas respostas dos jesuítas, com cerca de 17 mil presenças em 100 nações do mundo.
***
No dia em que a Igreja recorda Santo Inácio de Loyola, o padre venezuelano Arturo Sosa, Prepósito Geral da Companhia de Jesus, a mais alta autoridade da Companhia de Jesus fala da missão dos jesuítas no mundo transformado pela pandemia, vincando que a tentação de autoritarismos é um risco real, pelo que temos agora uma boa ocasião para proceder ao reforço da fraternidade em termos humanos e cristãos.
A este respeito, Antonella Palermo, do Vatican News e da Rádio Vaticano, entrevistou o Padre Sosa, que falou dum mundo “distanciado” e do medo dum vírus que não desaparece e que se espalha por muitos lugares, criando condições propícias para o risco de personalismos políticos quando é fundamental “a bússola orientada para o bem de todos”. Também aflora, na entrevista, o esforço para proteger os frágeis, os que a covid-19 não poupa, mas que têm pouca ou nula hipótese de se protegerem adequadamente, como é o caso dos migrantes.
O parecer do Prepósito Geral abrange toda a missão conduzida pela Companhia, sobre as pedras angulares da espiritualidade que continuam a ser um farol, os acontecimentos atuais mais urgentes e o papel desempenhado pela Companhia de Jesus na provação do novo coronavírus.
O Padre Sosa diz que, na missão, os jesuítas experimentam as provações das populações afetadas e, sobretudo, as consequências sociais da pandemia. E, seguro de que a pandemia é um problema de saúde, que será ultrapassado, sabe que as consequências sociais, económicas e políticas têm de ser levadas muito a sério, pelo que é preciso tentar saber como continuar a servir os mais necessitados neste contexto.
Das muitas experiências que a Companhia regista, menciona as da Índia, no Sul da Ásia, referindo que todos se asseguraram de que os alimentos e medicamentos são entregues de forma muito generosa às pessoas que não são capazes de se prover por si mesmas, pois ninguém ali se pode curar a si mesmo sem curar os outros e ninguém pode curar os outros se não se curar a si mesmo. Revela que há muitas experiências de acompanhamento, quer pessoais, quer sociais, não se tratando apenas de celebrar missas nas redes sociais, mas de “estar presente na vida das pessoas” com todos os meios disponíveis. É uma experiência muito complexa e muito interessante, que merece ser avaliada ao longo do tempo e constitui “uma confirmação do discernimento na missão recebida através das preferências apostólicas universais”. Destas, destacam-se quatro preferências aprovadas pelo Papa, que põem os jesuítas no centro do que deve ser feito agora, no contexto da pandemia: “ver que Deus pode nos mostrar como devemos caminhar”; “transformar as estruturas sociais claramente injustas”; “cuidar da criação”; e “ouvir os jovens, que são a semente da esperança para o futuro”.
Questionado sobre o facto de “vários países explorarem a pandemia para mudarem a política migratória”, sustenta, como tem dito, muitas vezes, que “uma das vítimas da pandemia pode ser a democracia se não cuidarmos de nossa condição política”, pois a grande tentação de muitos governos, incluindo os chamados governos democráticos, é tomar, neste momento, o caminho do autoritarismo. Sabendo-se que a Companhia de Jesus está muito empenhada em acompanhar os migrantes, vários países aproveitam pandemia para mudar a política migratória restringindo a passagem de migrantes ou o seu recebimento, “o que é um grande erro se considerarmos que queremos tornar o mundo mais fraterno e justo”. Discriminar novamente os migrantes “seria, e é, um grande perigo e seria um sinal de um mundo que não queremos”. E, em matéria de trabalho, muitas empresas aproveitam a oportunidade para despedir trabalhadores, reduzir os salários ou não pagar o que têm a pagar ou reduzir os benefícios de saúde pública. Assim, “a pandemia é uma oportunidade de dar passos para frente ou para trás”. E devemos estar muito conscientes disso, como Igreja Católica e como pessoas comprometidas com a justiça e a paz.
Instado a pronunciar-se sobre o critério mais adequado ao momento que Santo Inácio de Loyola sugeriria, seleciona a proximidade com os pobres como um critério muito importante e claro, pois, “se não somos capazes de olhar o mundo de perto, compartilhando o olhar dos pobres, que é o olhar de Jesus na Cruz, estamos errados na tomada de decisões” e, “se os pobres não podem ser atendidos, não podem ter um emprego, então o mundo não está bem”. E a seguir, selecionou o critério do cuidado com a casa comum, pois, “se a terra sofre, não podemos habitá-la”.
Em relação à América Latina, diz sentir “grande dor” ao ver quanto a pandemia atinge aqueles povos e está muito preocupado por não existirem “estruturas sociais ou políticas que possam realmente lidar com esta emergência”, desejando que “aproveitem esta oportunidade para ver que mudanças precisam de ser feitas nas estruturas para garantir um futuro melhor para todos os latino-americanos”.
Sobre as pedras angulares da espiritualidade inaciana, fala do “encontro pessoal e profundo com Jesus Cristo, o Crucificado Ressuscitado, que nos leva a uma tal familiaridade com Deus que somos capazes de encontrá-Lo em tudo e em todos os momentos”, sendo que tal familiaridade “significa uma vida verdadeiramente de oração e serviço” e verdadeiramente livre. Para tanto, ressalta a importância do Exame de Consciência (pelo menos duas vezes ao dia) – “talvez uma das caraterísticas menos conhecidas da espiritualidade inaciana” – como forma de agradecer a Deus a sua manifestação na história, “conseguindo ser guiado pelo Espírito, completamente atento a esta orientação, que é uma exigência da vida baseada no discernimento na missão”. Depois, aponta o trabalho, pois não se deve desligar a conexão entre a vida comum e a vida no espírito.
Com relação à colaboração entre leigos e jesuítas, acentua que Inácio escreveu os “Exercícios Espirituais” quando era leigo. Só se tornou padre, “quando viu que era a melhor maneira de fazer um serviço à Igreja naquela época”. Assim, a experiência de conversão foi para ele encontrar “um método feito por um leigo, cuja partilha inicial foi com os leigos”. Por isso, os jesuítas querem dar a este aspeto laical importância especial no seu trabalho, tentando transmitir esta experiência ao maior número de pessoas possível. Há dezenas de leigos experientes nos “Exercícios Espirituais” que podem acompanhar os outros e cujas vidas foram transformadas; e para os “Exercícios Espirituais” não há barreiras sociais, sendo sempre “um dom do Senhor”.
Quanto ao estado das vocações para a vida religiosa jesuíta e o processo de formação para entrar na Companhia, frisa que “o problema não é o número, mas a qualidade das pessoas”. E diz:
O número diminui em países onde tradicionalmente éramos mais numerosos, como a Europa, a América do Norte. Entretanto, a qualidade é muito alta, posso garantir, mesmo que sejamos menos do que no passado. Temos um grande número de candidatos na África e em algumas áreas da Ásia e fazemos o grande esforço para uma formação, que é o que sempre se sonhou para um jesuíta. É uma formação longa, complexa e exigente, que se mantém inalterada.”.
Por fim, reponde à questão se Santo Inácio não pensou em um ramo feminino da Companhia, apontando que “a Ordem é o que ela é, mas a espiritualidade ilumina muitas outras realidades religiosas”, sendo que, nas suas escolas, centros de espiritualidade e formação e centros sociais, “um grande número de mulheres participa em nível gerencial, como inspiradoras de algumas atividades, compartilham a espiritualidade e a missão” jesuíta. Embora não haja mulheres jesuítas, trabalham “juntos na mesma missão”.
E porque não instituir um ramo feminino jesuíta nos tempos atuais? Quem pergunta não ofende, digo eu, como diz o povo.  
2020.07.31 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário