domingo, 14 de junho de 2020

Compadeceu-se da multidão cansada e abatida, como ovelhas sem pastor


Durante os domingos XI-XIII do Tempo Comum no Ano A, em que habitualmente se proclama e medita o Evangelho de Mateus, está sobre a mesa da Palavra o conjunto de textos que, segundo os biblistas, configuram o “Discurso Missionário” (Mt 9,36-10,42) e que a “Bíblia Sagrada” dos Capuchinhos intitula “Missionários do Reino”, sendo que, neste Domingo XI, se escutou a passagem de Mateus 9,36-10,8.
O Evangelista, depois de referir que “Jesus percorreu as cidades e as aldeias e ensinava nas sinagogas proclamando o Evangelho do Reino e curando todas as enfermidades e doenças”, regista uma atitude nevrálgica da personalidade do grande pregador do Reino de Deus, que já dera abundante testemunho do dinamismo do Reino (vd Mt 8,1 – 9,34): “Contemplando a multidão, encheu-se de compaixão por ela (esplankhísfthê perì autôn), pois estava cansada e abatida como ovelhas sem pastor (hôseì próbata mê ékhonta poiména).
Segundo Dom António Couto, Bispo de Lamego, “tudo começa pelo princípio”, que “é sempre a compaixão de Jesus”, textualmente expressa pelo verbo “splanchnízomai”, a “implicar um movimento visceral, maternal, de Jesus à vista das multidões”. É a mesma comoção que se encontra em muitos outros momentos que o prelado lamecense elenca a título de exemplo: as cenas da viúva de Naim (Lc 7,13), do bom samaritano (Lc 10,33), do pai da parábola da misericórdia (Lc 15,20). E, segundo São Beda, o Venerável, poderíamos lembrar a mesma compaixão de Jesus aquando do chamamento de Mateus (Mt 9,9). Com efeito, Beda lê o versículo 9 nos termos seguintes: “Vidit ergo lesus publicanum et, quia miserando atque eligendo vidit, ait illi Sequere me (Viu Jesus a um publicano e, como o olhou com sentimentos de misericórdia, o elegeu e disse-lhe: Segue-me).   
O segmento “como ovelhas sem pastor” exprime a dispersão, o desalento e o desencanto das pessoas (Nm 27,17; 1 Rs 22,17; Jdt 11,19; Ez 34,5-6). E, como consequência da compaixão pelas ovelhas dispersas, Jesus exclama para os discípulos: “A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos; pedi, pois, ao Senhor da messe que mande trabalhadores para a sua messe”. A primeira ação de Jesus não foi pôr os discípulos em marcha para a missão, embora tenha sido essa a finalidade para que os chamara – segui-Lo, viver e aprender com Ele e tomar com Ele o mesmo cálice. Mas, de imediato, impunha-se rogar ao Senhor da messe o chamamento, seleção e envio de mais trabalhadores para a messe. Rezar é a grande tarefa discipular.     
Continuando a citar Dom António Couto a partir do Jornal da Madeira, deste dia 14, é de enfatizar que “messe” (no grego therismós) “qualifica a colheita, não a sementeira”, desenhando, “não o tempo da espera e preparação, mas o tempo da realização do Reino de Deus, com a vinda do Messias”, configuradora de “um tempo novo, de alegria e de canções”, contraposto ao tempo do jejum, referido em Mateus 9,14-15. Com efeito, enquanto “os discípulos de João Batista e os fariseus jejuam para apressar a vinda do Messias”, os de Jesus “não jejuam, porque o Messias já está com eles” como “o Reino-de-Deus em Pessoa, a Autobasileía, no dizer certeiro e contundente de Orígenes”.
Depois, Mateus esclarece qual é a missão para que Jesus chamara os Doze: “expulsar os espíritos malignos e curar todas as enfermidades e doenças” – a mesma de Jesus. E, a seguir, recorda em sumário, os nomes e identificação de cada um dos Doze, para de imediato lhes dar as instruções e o envio.
Que instruções? Ir, primeiro, às ovelhas perdidas de Israel, não seguindo a via dos gentios nem entrando em cidade dos samaritanos; proclamar, pelo caminho, que o Reino dos Céus está perto; e curar os enfermos, ressuscitar os mortos, purificar os leprosos e expulsar os demónios.  
Tendo em conta que o Messias é “o Reino-de-Deus em Pessoa, a Autobasileía”, o Bispo de Lamego, traduz o segmento referente ao Reino emFez-se próximo o Reino dos Céus”, pois “fez-se próximo” está grafado em grego com “éggiken”, pretérito perfeito do verbo “eggízô” e sabe-se que o perfeito grego começa e continua, não é transitório.
Os discípulos têm efetivamente de se aplicar à oração rogando ao Senhor da messe pela messe, mas não podem deixar de partir (e os que não podem partir fazem oração apostólica). Na verdade, o Senhor chamou-os pelos nomes (ónomata), deu-lhes autoridade (exousían), enviou-os (verbo pempô) a anunciar (verbo kêrýssô) – o que lhes imprime a marca da fidelidade: os ditos que eles devem proclamar são os mesmos que Jesus proferiu, tal como João Batista o fizera; as obras que devem realizar são as mesmas que Jesus realiza e que funcionam como sinais de que Ele é o Messias; devem ir, antes de mais, em demanda das ovelhas perdidas – e não dos que estão bem; devem começar pelas da Casa de Israel, não deixando ninguém para trás; têm a força e poder que Jesus lhes outorgou para o eficaz desempenho da missão; não podem esperar mercês pelo trabalho que realizam, pois, uma vez que receberam de graça, devem dar de graça; não vão à procura de protagonismo ou espetáculo ou a vergar as pessoas, porque o Reino é de paz e cresce na discrição; não devem levar nada que os estorve na caminhada, mas apenas o necessário; e devem estar preparados para a rejeição, pois as pessoas são livres de aceitar ou de recusar, mas sabendo que quem acolher os discípulos acolherá Jesus e o Pai.
A missão não consiste – diz o Bispo de Lamego – em “resguardar-se no seu grupo de pertença” e “fazer proselitismo e propaganda” (paradigma identitário e totalitário), mas em “mudança de lugar e de modo” e em “ir à procura do outro perdido em qualquer margem da vida, acolhê-lo e velar por ele” (paradigma alteritário).
Também a passagem do livro do Êxodo assumida como 1.ª Leitura (Ex 19, 2-6) desta dominga mostra que o Senhor escolhe um profeta, um líder sempre para uma missão em prol dos demais. Assim aconteceu com Moisés, figura de Jesus, o profeta por excelência. Moisés foi chamado e enviado a tirar o povo da escravidão do Egito para o conduzir pelo deserto rumo à Terra prometida. No Sinai, estabeleceu uma aliança com este povo que, sendo fiel à Lei, gozaria da proteção divina e seria propriedade de Deus – reino de sacerdotes (que se oferecem a Deus) e nação santa (selecionada para o serviço de Deus) – e exemplo para os outros povos.  
Por seu turno, Paulo, na Carta aos Romanos (vd Rm 5,6-11), sublinha a nossa passagem de desgarrados (pecadores) graças à morte e ressurreição de Jesus, que tomou a iniciativa de assumir como suas as nossas faltas para que, tirando-no-las dos ombros, nos reconciliasse com Deus. É sempre Deus que toma a iniciativa contemplando a nossa miséria e deixando-se mover pela compaixão. Sucedeu com o povo hebreu no Egito, sucedeu com as multidões por quem Jesus se compadeceu e sucede convosco com quem Deus está sempre. É, pois, Cristo que se debruça amorosamente sobre a nossa debilidade, como surge na passagem do Evangelho de Mateus, susoevocada, compadecendo-se maternalmente das pessoas e multidões cansadas e abatidas.
Enfim, “miserando atque eligendo vidi, ait illi: ‘Sequere me’.”.     
2020.06.14 – Louro de Carvalho

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