Durante os
domingos XI-XIII do Tempo Comum no Ano A, em que habitualmente se proclama e
medita o Evangelho de Mateus, está sobre a mesa da Palavra o conjunto de textos
que, segundo os biblistas, configuram o “Discurso Missionário” (Mt 9,36-10,42) e que a “Bíblia Sagrada” dos Capuchinhos intitula “Missionários do Reino”, sendo que, neste Domingo XI, se escutou a
passagem de Mateus 9,36-10,8.
O
Evangelista, depois de referir que “Jesus
percorreu as cidades e as aldeias e ensinava nas sinagogas proclamando o
Evangelho do Reino e curando todas as enfermidades e doenças”, regista uma
atitude nevrálgica da personalidade do grande pregador do Reino de Deus, que já
dera abundante testemunho do dinamismo do Reino (vd Mt 8,1 – 9,34): “Contemplando a multidão, encheu-se de compaixão por ela (esplankhísfthê
perì autôn), pois
estava cansada e abatida como ovelhas sem pastor (hôseì próbata mê
ékhonta poiména).
Segundo Dom
António Couto, Bispo de Lamego, “tudo começa pelo princípio”, que “é sempre a
compaixão de Jesus”, textualmente expressa pelo verbo “splanchnízomai”, a “implicar um movimento visceral,
maternal, de Jesus à vista das multidões”. É a mesma comoção que se encontra em
muitos outros momentos que o prelado lamecense elenca a título de exemplo: as
cenas da viúva de Naim (Lc
7,13), do bom samaritano
(Lc 10,33), do pai da parábola da misericórdia (Lc 15,20). E, segundo São Beda, o Venerável,
poderíamos lembrar a mesma compaixão de Jesus aquando do chamamento de Mateus (Mt 9,9). Com efeito, Beda lê o versículo 9 nos termos
seguintes: “Vidit
ergo lesus publicanum et, quia miserando atque eligendo vidit, ait illi Sequere
me” (Viu Jesus a um publicano e, como o olhou com sentimentos de
misericórdia, o elegeu e disse-lhe: Segue-me).
O segmento
“como ovelhas sem pastor” exprime a dispersão, o desalento e o desencanto das
pessoas (Nm 27,17; 1 Rs
22,17; Jdt 11,19; Ez 34,5-6). E, como consequência da compaixão pelas ovelhas dispersas, Jesus
exclama para os discípulos: “A messe é
grande, mas os trabalhadores são poucos; pedi, pois, ao Senhor da messe que
mande trabalhadores para a sua messe”. A primeira ação de Jesus não foi pôr
os discípulos em marcha para a missão, embora tenha sido essa a finalidade para
que os chamara – segui-Lo, viver e aprender com Ele e tomar com Ele o mesmo cálice.
Mas, de imediato, impunha-se rogar ao Senhor da messe o chamamento, seleção e
envio de mais trabalhadores para a messe. Rezar é a grande tarefa discipular.
Continuando a
citar Dom António Couto a partir do Jornal
da Madeira, deste dia 14, é de enfatizar que “messe” (no grego therismós) “qualifica a colheita, não a sementeira”, desenhando, “não o
tempo da espera e preparação, mas o tempo da realização do Reino de Deus, com a
vinda do Messias”, configuradora de “um tempo novo, de alegria e de canções”, contraposto
ao tempo do jejum, referido em Mateus 9,14-15. Com efeito, enquanto “os
discípulos de João Batista e os fariseus jejuam para apressar a vinda do
Messias”, os de Jesus “não jejuam, porque o Messias já está com eles” como “o
Reino-de-Deus em Pessoa, a Autobasileía, no dizer certeiro e contundente de Orígenes”.
Depois,
Mateus esclarece qual é a missão para que Jesus chamara os Doze: “expulsar os
espíritos malignos e curar todas as enfermidades e doenças” – a mesma de Jesus.
E, a seguir, recorda em sumário, os nomes e identificação de cada um dos Doze,
para de imediato lhes dar as instruções e o envio.
Que
instruções? Ir, primeiro, às ovelhas perdidas de Israel, não seguindo a via dos
gentios nem entrando em cidade dos samaritanos; proclamar, pelo caminho, que o
Reino dos Céus está perto; e curar os enfermos, ressuscitar os mortos,
purificar os leprosos e expulsar os demónios.
Tendo em
conta que o Messias é “o Reino-de-Deus em Pessoa, a Autobasileía”, o Bispo de Lamego, traduz
o segmento referente ao Reino em “Fez-se próximo o Reino dos Céus”, pois “fez-se
próximo” está grafado em grego com “éggiken”, pretérito perfeito do verbo “eggízô” e sabe-se que o perfeito grego começa e continua, não é transitório.
Os discípulos
têm efetivamente de se aplicar à oração rogando ao Senhor da messe pela messe,
mas não podem deixar de partir (e os que não podem partir fazem oração apostólica). Na verdade, o Senhor chamou-os
pelos nomes (ónomata), deu-lhes autoridade (exousían), enviou-os (verbo pempô) a
anunciar (verbo kêrýssô) – o que lhes imprime a marca da fidelidade: os ditos que eles
devem proclamar são os mesmos que Jesus proferiu, tal como João Batista o
fizera; as obras que devem realizar são as mesmas que Jesus realiza e que
funcionam como sinais de que Ele é o Messias; devem ir, antes de mais, em
demanda das ovelhas perdidas – e não dos que estão bem; devem começar pelas da
Casa de Israel, não deixando ninguém para trás; têm a força e poder que Jesus
lhes outorgou para o eficaz desempenho da missão; não podem esperar mercês pelo
trabalho que realizam, pois, uma vez que receberam de graça, devem dar de
graça; não vão à procura de protagonismo ou espetáculo ou a vergar as pessoas,
porque o Reino é de paz e cresce na discrição; não devem levar nada que os
estorve na caminhada, mas apenas o necessário; e devem estar preparados para a
rejeição, pois as pessoas são livres de aceitar ou de recusar, mas sabendo que
quem acolher os discípulos acolherá Jesus e o Pai.
A missão não consiste
– diz o Bispo de Lamego – em “resguardar-se no seu grupo de pertença” e “fazer
proselitismo e propaganda” (paradigma identitário e totalitário), mas em “mudança de lugar e de modo” e em “ir à procura do
outro perdido em qualquer margem da vida, acolhê-lo e velar por ele” (paradigma alteritário).
Também a
passagem do livro do Êxodo assumida como 1.ª Leitura (Ex 19, 2-6) desta dominga mostra que o Senhor
escolhe um profeta, um líder sempre para uma missão em prol dos demais. Assim
aconteceu com Moisés, figura de Jesus, o profeta por excelência. Moisés foi
chamado e enviado a tirar o povo da escravidão do Egito para o conduzir pelo
deserto rumo à Terra prometida. No Sinai, estabeleceu uma aliança com este povo
que, sendo fiel à Lei, gozaria da proteção divina e seria propriedade de Deus –
reino de sacerdotes (que
se oferecem a Deus) e
nação santa (selecionada
para o serviço de Deus) –
e exemplo para os outros povos.
Por seu
turno, Paulo, na Carta aos Romanos (vd Rm 5,6-11), sublinha a nossa passagem de desgarrados (pecadores) graças à morte e ressurreição de
Jesus, que tomou a iniciativa de assumir como suas as nossas faltas para que,
tirando-no-las dos ombros, nos reconciliasse com Deus. É sempre Deus que toma a
iniciativa contemplando a nossa miséria e deixando-se mover pela compaixão. Sucedeu
com o povo hebreu no Egito, sucedeu com as multidões por quem Jesus se compadeceu
e sucede convosco com quem Deus está sempre. É, pois, Cristo que se debruça amorosamente sobre a nossa debilidade,
como surge na passagem do Evangelho de Mateus, susoevocada, compadecendo-se
maternalmente das pessoas e multidões cansadas e abatidas.
Enfim, “miserando atque eligendo vidi, ait illi: ‘Sequere me’.”.
2020.06.14 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário