Di-lo o franciscano Frei
Hermínio Araújo, em entrevista à Renascença e à Ecclesia,
de 26 de junho, onde aborda a temática do guião do “Ano Laudato si” e, no
âmbito dos desafios da pandemia de covid-19, aponta que “não
podemos pensar que vivemos fazendo as mesmas coisas de uma forma diferente”,
diz recear que “acabe
tudo na mesma”, sendo o dinheiro a falar mais alto e acusa os políticos de estarem a “brincar com
coisas sérias” e não quererem saber do sofrimento das pessoas.
***
Referindo-se, em concreto, ao
vademecum de orientação para
aplicação da ‘Laudato Si’ recentemente
divulgado pela Santa Sé sob o título ‘A caminho para o cuidado da Casa Comum’,
considera-o “um excelente guia” que “nos
quer pôr a caminho”, tal como encíclica, que é o seu ponto de partida. Não
se trata dum livro de receitas ou de instruções, mas dum conjunto de propostas
que vêm na esteira da ‘Laudato Si’ e
do ‘Cântico das Criaturas’.
Concorda que uma das observações feitas
a este documento é a falta de uma adequada Teologia da Criação como forma de
olhar para o que nos rodeia, colhendo mais inspiração no ‘Cântico das Criaturas’ e minimizando a ideia do castigo de expulsão
do paraíso terreal. E observa:
“Às vezes encontramos algumas reações a
determinadas posições do magistério pontifício atual, [da parte] de pessoas que
não estão bem informadas, não estão por dentro desta Teologia da Criação. E
corremos o risco de o Papa estar a falar em cebolas e as pessoas entenderem
batatas. A Teologia da Criação, neste manual ‘A Caminho para o cuidado da Casa Comum’, não está muito explícita,
evidentemente, são coisas muito práticas, mas isso também é importante.”.
É preciso que todos
entendam, mas para não se perder o essencial, diz o entrevistado que este manual não deve ser lido sem a encíclica e que esta
se deve ler com o ‘Cântico das Criaturas’,
até porque ela “não integra tudo o que está no ‘Cântico das Criaturas’ e o que aí está é importante para perceber
isto tudo”, sobretudo “para esta fase de pandemia e pós-pandemia”.
Não sendo a “Laudato si’ uma “encíclica verde”, nem
um documento só para católicos (nem só para crentes), mas para chegar às
pessoas, Frei Hermínio julga que “não está a
chegar às pessoas”, mas que “tem chegado a algumas”. De facto, ao apontar as
boas práticas, de Portugal referem-se duas iniciativas: a ‘Casa Velha – Ecologia e Espiritualidade’; e a rede ‘Cuidar da Casa Comum’. Por outro lado,
cita a nossa Conferência Episcopal. Porém, embora apareçamos bem na encíclica,
ainda estamos muito aquém dum “caminho que tem de ser feito” a nível geral e da
Igreja e “em realidades muito concretas”, como por exemplo as paróquias, a
catequese…”.
E importa que se faça esse
trabalho de reflexão, porque o manual “é uma
espécie de dossiê”, onde não está tudo ao nível dos conteúdos, “mas em termos
metodológicos está praticamente tudo ali incluído, para que nada fique de fora”,
pois “o princípio da inclusão é o grande princípio da encíclica, porque tudo
está interligado, tudo deve ser incluído, e esse é o grande princípio
inspirador da Teologia da Criação de São Francisco de Assis”. Não é só “mais um
assunto” na vida da Igreja, da sociedade e do mundo”, mas “o assunto
fundamental”, pois “aborda questões transversais”. Por isso, embora não fale de
tudo, o manual contém tudo o que é essencial e abre “perspetivas numa linha de
inclusão”. Por isso, não é só “mais um assunto entre os diversos assuntos da
vida da Igreja e do mundo”, nem do Pontificado. Na verdade, acentua o
entrevistado, o Papa, logo na inauguração do pontificado, disse ao “que vinha,
que a questão fundamental é o ‘cuidar’: cuidar da Terra e dos pobres, cuidar da
vida frágil”.
Tendo a ideia de que tudo está
interligado e tendo o mundo sido duramente atingido nos últimos meses por um
vírus que, surgindo numa ponta do mundo, pode atingir a população dos cinco
continentes, o franciscano foi questionado se “este é o momento de fazer opções
concretas de vida”, pois, segundo a ‘Laudato
si’ e os apelos do Papa e da Santa Sé, “cada pequeno gesto pode fazer a
diferença. E a resposta vem no sentido de que “a mudança já está a acontecer, mas vai demorar muito tempo”, verificando que
algumas oportunidades “já foram perdidas” e outras “vão ser perdidas,
inclusivamente na vida da Igreja, se os responsáveis mais diretos acharem
que isto é só um tema entre muitos outros, se não perceberem que este é o
tema transversal a todos os temas”. Ora, “se virmos isto como mais um
tópico, vamos perdendo constantemente oportunidades, e então o ‘grito da Terra’
e o ‘grito dos pobres’ não é devidamente acolhido”.
Considerando que, apesar de a
pandemia ser uma ameaça global e de, em teoria, estarmos todos ‘no mesmo
barco’, os seus efeitos colaterais não são iguais para todos, com as populações
mais pobres a serem mais afetadas, Frei Hermínio entende que o ‘grito dos
pobres’ “está a ser escutado, mas precisa de
ser mais e mais, porque de facto aquela que foi uma espécie de máxima da
pandemia naquela fase inicial, o ‘vai ficar tudo bem’, não é verdade”. E
prossegue:
“Há muita coisa que já não está bem, há
muito sofrimento que não está a ser devidamente acolhido, há muito grito que
não está a ser escutado e precisa de ser escutado. Imaginem-se aquelas pessoas
que perderam um ente querido e nem sequer tiveram oportunidade de se
despedir dele de uma forma conveniente. (…) O luto é um processo de adaptação à
perda que tem de ser feito, portanto, há aqui sofrimentos que precisam de ser
devidamente levados a sério.”.
Parte da chave de leitura do pontificado de Francisco, o verbo ‘cuidar’,
para vincar o seu aspeto operativo e concreto e ponderar que, ao visar “a
experiência dos sofredores”, o cuidado “chama-se compaixão” e, como “a
compaixão cristã é algo de essencial”, “o grito da Terra e o grito dos pobres”
são “duas faces da mesma moeda”. E a quem diga que “agora temos que acolher
mais o grito dos pobres, e o grito da Terra tem de esperar um pouco”, o
franciscano responde:
“Se não acolhemos devidamente o ‘grito da
Terra’, vão aumentar os pobres. O grande desafio é perceber que estas duas
coisas estão interligadas, e nesta fase de pandemia e pós-pandemia temos de
levar isto muito a sério, até para mostrar àqueles que dizem – e isto acontece
sempre quando a Igreja aborda questões sociais – que ‘a Igreja deve estar
noutro âmbito’. Não, vamos todos levar isto muito a sério e pensar nisto.”.
Depois, chama à colação dois textos fundamentais para a Igreja – as
bem-aventuranças e Mateus 25 (com as Obras de Misericórdia e a expressão
fundamental: ‘o que fizestes a um dos
meus irmãos mais pequeninos foi a mim que o fizestes’) – para dizer que só percebemos o “irmão mais pequenino
numa perspetiva contemplativa ao jeito das bem-aventuranças, quando nos
disponibilizamos para acolher Deus na vida”, pois não há experiência de Deus “sem
experiência de contacto direto com aquele com quem o próprio Jesus Cristo Se quis
identificar”. E cita Simone Weil, mística de origem judia que se aproximou do
cristianismo (ter-se-á batizado), que diz: ‘A
prova de que alguém encontrou Deus não está no modo como fala de Deus, mas no
modo como fala das coisas terrenas’.
Como, para a ‘Laudato si’, ‘a espiritualidade cristã
propõe como forma alternativa de entender a qualidade de vida um estilo de vida
profético e contemplativo, que gere profunda alegria sem a obcecação pelo
consumo’, Frei Hermínio vê aqui um desafio “profundamente católico” e de “transformação interior das
pessoas e da sociedade”, de modo que “não entender isto é passar
completamente à margem da experiência católica”.
Aproveita para apresentar Francisco de Assis como a sua primeira referência
depois de Cristo, sendo dos modelos mais universais, e para assegurar que “é a
partir das coisas terrenas que nos aproximamos de Deus” e que nada tem
de católico julgar-se em sintonia com Deus fugindo do mundo. É fundamental o
amor a Deus e ao próximo, mas “o próximo são todos os seres”. Assim, “o ‘Cântico das Criaturas’ é o cântico de
todos os seres”: inclui “tudo e todos, todas as criaturas, simbolicamente nos 4
elementos: o ar, a água, a Terra e o fogo”. E o ser humano entra com “os
pacificadores e os compassivos”, e os “que têm uma visão da vida e da morte
numa perspetiva, num horizonte de generosidade. E “isto é muito católico”.
Tendo em conta a grande atualidade desta mensagem, diz que, mesmo se este
Ano ‘Laudato Si’ não servir para mais
nada, já valeu a pena se houver mais uma pessoa que perceba que isto é
transversal, que não é só mais um assunto, mas o assunto de todos os assuntos.
Reconhece que a muito
relevante novidade da noção de pecado ecológico que a encíclica traz ao de cima,
para ajudar as pessoas a perceber o que está em causa na relação com a natureza
e na necessidade de mudar estilos de vida, não está a ser devidamente
trabalhada pela Igreja. Com efeito, na “perspetiva
da ecologia integral, o pecado ecológico não é mais um para somar à lista”,
pois “todos os pecados são ecológicos”. Na verdade, o conceito teológico de
pecado não é o de transgressão duma lei ou norma; “no conceito bíblico, é uma
rutura de relação”. Por isso, “a questão ecológica é, sobretudo, relação”. Assim,
o documento em causa coloca-se no âmbito da Doutrina Social da Igreja, mas é
mais do que isso. “Pensamos nas questões éticas, morais, da prática, mas isto é
antes, é um modo de ser diferente”. E, no contexto da pandemia, é de referir
que, “depois de sair disto, não podemos pensar que vivemos fazendo as
mesmas coisas de uma forma diferente”, nem fazendo “coisas diferentes”, mas
sendo “pessoas diferentes”.
Além das escolhas pessoais,
há as que têm de ser tomadas por quem tem de governar. A isto o entrevistado
diz recear “que acabe por ficar tudo na mesma,
que o dinheiro continue a falar mais alto”, o que sucederá se nos pusermos “ao
nível da mera práxis, do jogo político…”. E chama a atenção para a palavra-chave
subjacente à encíclica e com que o manual começa: ‘conversão’, que “não é,
essencialmente, uma conversão ética”: “se a mudança não é mais a fundo, é
apenas para a gente se “desenrascar”, as coisas não acontecem. Exige-se “uma
mudança ontológica, uma mudança do coração”, que não se limita a mudar
práticas, mas “é mudar atitudes, mudar a forma de ser”, de que derivam as
práticas. “A conversão ecológica de que se fala é, sobretudo, uma conversão
espiritual”, que “pode não ser religião, pois o manual “fala para crentes
e não crentes, numa perspetiva ecuménica, inter-religiosa, (…) para agnósticos e ateus. E adverte:
“Temos de nos entender numa perspetiva de
experiência espiritual, que é essencialmente a experiência de relação da pessoa
com ela própria, da pessoa com os outros, da pessoa com tudo, com todos, e, se
é crente, com Deus. (…) A conversão ecológica é uma conversão para todos,
porque tem a ver com a mudança de formas de ser.”.
O manual contém propostas para
a saúde e defesa da vida e considera que eliminar vidas humanas não é aceitável.
E o franciscano, invocando o facto de ser das pessoas que em Portugal estão mais por dentro desta problemática,
pois é dos padres que está há mais tempo no acompanhamento espiritual em
cuidados paliativos, entende que a “questão da eutanásia é estar a brincar com
coisas sérias”. E, embora respeite os argumentos da liberdade de quem pede para
não continuar a viver, diz que “essa é uma falsa questão”, que temos de levar a
sério as pessoas e o seu sofrimento e que “a maior parte das pessoas nem sabe
do que está a falar, quando fala de paliativos, nem lhe interessa saber…”.
Neste âmbito, acusa os
responsáveis políticos de, salvo algumas exceções, de não saberem nem quererem saber dos cuidados
paliativos e de baralharem as coisas, para concluir que agora “estar a
introduzir o debate da eutanásia é brincar com coisas muito sérias”
contrastando mesmo com tantos e tantas que, no contexto de pandemia, lutaram e lutam para salvar vidas. E
explica:
“Isto é uma questão de espiritualidade,
aliás os próprios cuidados paliativos levam isso muito a sério. Qualquer
profissional de cuidados paliativos, mesmo não crente (…) tem um profundo
respeito por quem está nos cuidados paliativos e leva muito a sério o
acompanhamento espiritual das pessoas, leva muito a sério o acompanhamento da
angústia existencial. O argumento de que ‘tenho o direito de pedir a morte
porque não quero sofrer’ é uma falsa questão. (…) Quem sabe o que são
cuidados paliativos, sabe que isto não é assim.”.
Por fim, esclarece que não se trata de “conversa de padre”, desafiando a
que ouçam os que não são padres e não só os que estão mais ligados à religião,
sendo que, segundo garante, “há evidência científica até à exaustão para
perceber que a espiritualidade é uma mais-valia” e que “o sofrimento
existencial pode ser acompanhado”.
2020.06.27 –
Louro de Carvalho
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