Não, o título não vem a despropósito, já
que a maior parte dos paramentos, insígnias e alguns gestos litúrgicos, que
tiveram origem no uso comum ou no de determinados grupos de pessoas e/ou em
necessidades permanentes ou pontuais, passaram a ser assumidos na Liturgia –
muitos deles pelo comum dos clérigos e outros, com o decurso do tempo, apenas
por alguns. E o uso litúrgico deu-lhes significado espiritual como consta do
teor das orações que acompanham a sua assunção antes da ação litúrgica (orações que a reforma litúrgica de São Paulo
VI deixou de impor, mas que também não aboliu) ou das palavras que acompanham a sua
imposição, nomeadamente no rito da ordenação de diácono, presbítero e bispo (Vd Cerimonial dos Bispos e Pontifical
Romano, de Paulo VI).
Porque o antigo ritual da paramentação do
Bispo para solene Pontifical as impunha ao Bispo, há que revisitar a origem
dessas peças e as orações concomitantes à sua vestição, orações que as conotam
com um grande significado espiritual e arredam toda a ideia de luxo, pompa ou
poder.
As cáligas, calçado de meio cano em forma
de sandálias feitas de couro e com pregos, usado pelos militares romanos,
nomeadamente os legionários e até os centuriões (algumas vezes também os escravos), eram símbolo da expansão do
Império. A Igreja preservou o modelo, embora decorado, na forma de bota que
chega até meio das pernas e que é fechada por fios atados.
Antes da paramentação, o Bispo desfaz-se
dos sapatos usuais, calça as cáligas e diz:
“Calçai, Senhor, os meus
pés na preparação do Evangelho da paz e protegei-me à sombra de vossas asas”.
A mozeta,
murça ou mantelete é uma capa curta que
cobre os ombros, parte das costas e dos braços. Não sendo veste litúrgica é
usada sobre a sobrepeliz como parte da roupa coral de alguns
clérigos. É fechada na frente, sendo que a capa similar, mas aberta
na frente, é denominada pregrineta. Depondo a mozeta, o Bispo reza:
“Livrai-me, Senhor, do
homem velho com as suas obras e costumes e revesti-me do homem novo, criado
segundo Deus na justiça e santidade da verdade”.
Lavar
as mãos
é um gesto normalíssimo higienicamente recomendado. Mas Pilatos lavou-as em
sinal de desresponsabilização pela morte de Jesus. O Bispo lavava-as antes da
Missa dizendo:
“Dai,
Senhor, força às minhas mãos para lavar toda a iniquidade e poder para servir-Vos
sem culpa no corpo e na alma”.
Na Missa, o celebrante lava as mãos
dizendo:
“Lavai-me,
Senhor, da minha iniquidade e purificai-me do meu pecado”.
O amito
surge no século VIII para cobrir a cabeça e o pescoço do celebrante e ministros (dantes usava-se sobre a alva e sobre
a casula para cobrir a cabeça na ida para o altar), e, passando debaixo dos braços, para
apertar a alva ao peito. Quando no século X apareceu o barrete, o amito passou a
cobrir só o pescoço. Contudo, em ritos de certas ordens religiosas, conserva-se o uso
primitivo do capuz. Usa-se por baixo todas as vezes que se vestir o amito. Também se põe imediatamente sobre o roquete
ou sobrepeliz todas as vezes que se deva vestir, sem a alva, a dalmática,
pluvial ou casula, como para assistir ao Bispo na Missa e Vésperas Pontificais. Com o amito, reza-se:
“Ponde, Senhor, sobre a
minha cabeça o capacete da salvação para rejeitar todas as tentações do diabo e
armadilhas do inimigo”.
A alva
era a túnica interior que os romanos usavam no século VI. Agora usa-se na missa e outras ações
litúrgicas, sobretudo nas procissões e exposições solenes
do SS.mo Sacramento.
Enquanto se veste a alva, reza-se:
“Purificai-me,
Senhor, e limpai meu coração, para que como aqueles que lavaram as suas vestes
no sangue do Cordeiro, possa eu desfrutar das alegrias eternas”.
O cíngulo (branco ou da cor dos paramentos) passou a apertar aos rins a alva depois
do século VIII.
Enquanto se cinge com o cíngulo, o
sacerdote ou o Bispo diz:
“Cingi-me, Senhor, com o
cíngulo da fé e da virtude da castidade e apagai de meus membros o ardor da
concupiscência, para permanecer sempre em mim a força da castidade”.
A cruz
peitoral (insígnia episcopal desde o século
XIII) costuma conter
relíquias de mártires
e o seu uso foi herdado dos primeiros cristãos. Depois de a beijar e receber do crucífero, o Bispo reza:
“Senhor
Jesus Cristo, dignai-Vos proteger-me de todas as ciladas do inimigo com o sinal
santíssimo da Vossa Cruz, e dignai-Vos conceder a mim, Vosso indigno servo, que,
assim como levo em meu peito esta Santa Cruz com todos os Vossos Santos, sempre
tenha em minha mente a memória da Paixão e as vitórias dos Mártires”.
A estola, peça de tecido de linha, terminada
com franjas,
que os homens usavam para resguardo do pescoço do frio, era aberta por diante e ornada duma
orla de bordado precioso, que dava a volta ao pescoço e descia até aos
pés. O uso religioso antecede o cristianismo (vd Ex 25,7 – o ephod usando-se vestido ou como símbolo ou bandeira). Entre
os povos pré-romanos itálicos há menções do seu uso por sacerdotes umbros nas
Tábuas Inguvinas. No cristianismo,
data do século IV no Oriente e por volta do século VI no
Ocidente. Era conhecida como orarium
(perto
da boca).
Mais tarde, passou a designar-se no Ocidente de stola, (em grego,
στολή – stolé, “vestido”). Originalmente, era um lenço ou xale
estreito usado para enxugar o rosto das pessoas. Depois de adotada no vestuário litúrgico como insígnia de dignidade e poder (nas liturgias oriental, visigótica e
galicana no século VI; e na romana no século IX), para poder ser revestida por baixo da dalmática e da
casula, a estola perdeu a sua parte mais importante – a túnica, e conservou
apenas o bordado (orarium). Deve ter uma cruz grega no meio e
nas duas extremidades. Os sacerdotes usavam-na cruzada ao peito debaixo da
casula já que a cruz peitoral era (e continua reservada aos Bispos), mas usavam-na pendendo
paralelamente no peito, quando sobre a sobrepeliz. Ao tomar a estola, diz-se:
“Dai-me, Senhor, a
estola da imortalidade que perdi com a desobediência de meus pais, e ainda
quando dos Vossos sagrados Mistérios me aproximo sem ser digno, com este
ornamento eu mereça a alegria eterna”.
A tunicela
era um vestido comprido em forma de T, estreito, com ou sem mangas, que as personalidades oficiais de Roma, no século V, traziam sob a poenula (de que derivou a casula litúrgica) ou da toga. Liturgicamente, usavam-na os subdiáconos e podiam
usá-la os Bispos sob a dalmática. Ao vestir a tunicela, diz o Bispo:
“Que o Senhor me revista
com a túnica do gozo e as vestes da alegria”.
A dalmática,
a princípio, vestido de escravos ou vestido interior, passou a ser vestido
exterior luxuoso na Dalmácia. E os romanos adotaram-no, entre o século II e
fins do século III sobretudo para as mulheres da classe alta sobretudo na
última parte do século III. Muitas são assim retratadas
em alguns retratos funerários em mortalhas de Antinoópolis, no Egito romano. Fontes
literárias registam a dalmática como presente imperial para os indivíduos. Vestia-se por cima da túnica inferior e por baixo
da poenula ou da toga. Embora, já usada no serviço do
altar no tempo de São Cipriano, Bispo de Cartago (249-258), o Papa Silvestre I (314-335) adotou-a como veste litúrgica para quem lesse a Epístola ou o Evangelho.
E, desde o fim do século V,
foi adotada pelo Papa como insígnia própria e, depois, concedida por ele
como distinção honorífica aos bispos e presbíteros da Igreja de Roma e, mais
tarde, aos de outras Igrejas. Todavia, este privilégio foi-se estendendo aos diáconos das
diversas Igrejas.
Hoje só o Bispo nas Missas pontificais se conserva fiel ao costume (antigamente comum também aos
sacerdotes) de vestir a
tunicela e a dalmática por baixo da casula. De resto, por um desejo de simetria
– pouco respeitador da tradição e das regras litúrgicas –, a tunicela e a
dalmática tornaram-se iguais, indistinguíveis. Contudo, alguns dão à dalmática
duas faixas horizontais (segmentae) a unir as duas verticais (claves) e à tunicela duas verticais e uma horizontal.
Como peça de
vestimenta bizantina foi adotada pelo czar Paulo I do Império Russo como vestimenta
de coroação e vestimenta litúrgica. Nos ícones ortodoxos de Jesus Cristo como
Rei e Grande Sumo Sacerdote, Cristo enverga uma dalmática. Por ordem
do Papa Eutiquiano (275 a 283), os mártires eram enterrados vestidos com
dalmática. Ao
vestir a dalmática, o Bispo diz:
“Revesti-me,
Senhor, com a veste da salvação e da alegria, e rodeai-me com a dalmática da
justiça”.
As chirotecas (luvas para proteção das mãos) são de seda, da cor litúrgica e com bordados nas costas – insígnia de distinção em uso desde a
época carolíngia.
O Bispo usava-as até ao ofertório, exceto na Sexta-feira Santa e na Missa dos
Defuntos. Ao
calçar as chirotecas, rezava:
“Envolvei,
Senhor, minhas mãos com a pureza do Homem novo que desceu do céu, para que, como
o seu amado Jacob, que com as mãos cobertas com pele de cabra, pediu a bênção
paterna, uma vez oferecidas a seu pai comida e bebida muito agradáveis, também
a oferenda da salvação doada por nossas mãos mereça a bênção da Vossa graça.
Por nosso Senhor Jesus Cristo, Vosso Filho, que em semelhança pela carne
pecadora, Se ofereceu a Si mesmo por nós.”.
A casula
era um manto de
lã ou de couro, em forma de saco ou de sino, destinada nas viagens a resguardar do mau
tempo. Era
a poenula adotada pelos romanos no século II.
Tinha só uma abertura por onde se passava a cabeça e, caindo dos ombros até aos
pés, envolvia todo o corpo, simulando uma pequena casa (casula). Ampla e majestosa, flutuava ao mais ligeiro
movimento do corpo, pelo que se designou por planeta (no grego, significa “errante”). Se o povo a abandonou no século VI, o clero continuou a usá-la. Pouco a pouco, os membros da
Hierarquia inferior renunciaram a ornamento tão caro, que ficou reservado aos
presbíteros e aos bispos. A sua forma variou bastante a partir do século XIII,
devido a sucessivas reduções que, para facilitar os movimentos do Celebrante,
transformaram a ampla, ágil e majestosa planeta na inestética, desgraciosa e
pesada casula romana tridentina até
que o movimento litúrgico do século XX a recuperou como gótica. Havia o costume de tirá-la quando o sacerdote pregava do
púlpito, porque o sermão, no rito antigo, não era considerado parte integrante
da Missa. O costume de suspender a parte da casula que cai das costas do
Celebrante durante as Elevações, antes do significado teológico, tinha o
sentido prático de ajuda no trato do paramento originado quando este era mais
amplo. Ao
vestir a casula, o Bispo reza:
“Senhor, que dissestes
‘O meu jugo é suave e o meu fardo é leve’, concedei-me que eu o leve de tal
modo que possa obter a sua graça”.
A mitra era uma touca
branca, de forma alongada, cónica e sem ornato. No século XII, em Roma, toma a
forma de coroa (regnum),
e sofre, no decorrer dos séculos, várias modificações. O mais antigo documento da
concessão aos Bispos data do século XI. Segundo Tomás de Aquino, as duas pontas que formam a
mitra significam o Antigo e o Novo Testamentos; as ínfulas, que descem sobre as
espáduas, expressam o resplendor que saía da cabeça de Moisés após a visão de
Deus, o brilho da sabedoria dada aos bons pastores, como prometido ao profeta
Jeremias (3,15). Até São Paulo VI os Papas usavam a
tiara (triregnum), mas com este Sumo Pontífice estabeleceu-se o uso da
mitra papal. Ao
assumir a mitra quando o mitrífero lha entrega, o Bispo reza:
“Imponde, Senhor, em
minha cabeça a mitra e o capacete da salvação, para que não caia nas ciladas do
antigo inimigo e de todos os demais adversários”.
Aquando da ordenação episcopal, o Bispo
ordenante principal utiliza a seguinte fórmula na entrega da mitra:
“Recebe
a mitra, e brilhe em ti o esplendor da santidade, para que, ao aparecer o
príncipe dos pastores, mereças receber a coroa imperecível da glória”.
O anel
deve ter uma pedra preciosa respetiva à dignidade do prelado. No Bispo, é o
símbolo da união com a sua Igreja. É diferente do anel com que os antigos Bispos selavam
as suas cartas, como faz o Papa com o Anel
do Pescador. O anel episcopal do Vaticano II é simples. Ao receber o anel, o Bispo reza:
“Adornai,
Senhor, os dedos do meu coração e de meu corpo, e envolvei-me sete vezes com o
Espírito santificador”.
Por seu turno, o Bispo ordenante, aquando da
ordenação episcopal utiliza a seguinte fórmula na entrega do anel ao novo
Bispo:
“Recebe
este anel, sinal de fidelidade; sê fiel à Igreja e guarda-a como esposa santa
de Deus”.
O manípulo (mappula,
sudarium), lenço de cerimónia integrava o vestido do aparato dos romanos, servia para cobrir o rosto, limpar o suor, transmitir ordens, dar o sinal do
princípio dos jogos, aclamar os vencedores. O presidente da assembleia litúrgica
adotou-o, a princípio como toalha (posta junto à mão) para desanuviar as lágrimas com que ouvia, compungido,
a confissão pública dos pecados. E os ministros imitaram-no. Ao envergar o manípulo, o
celebrante diz:
“Fazei, Senhor, que eu
mereça levar o manípulo com espírito humilde, para que com alegria tenha eu
parte entre os Santos”.
O báculo era um tipo
de cajado usado pelos pastores para se apoiarem ao andar e
conduzirem o rebanho. Muitas vezes tinha a extremidade curva para segurar
a rês pela perna e aguçada a ponta inferior para ferir o lobo. No sentido
eclesiástico, é um bordão usado pelos dignitários da Igreja Católica,
simbolizando o seu papel de pastores do rebanho divino. Configura,
ao lado da mitra, uma das principais insígnias dos Bispos e dos antigos
abades, sendo um símbolo da jurisdição: a parte curva do báculo episcopal era
voltada para fora, mercê da jurisdição do Bispo, que abrange todo o território
da diocese; a do báculo abacial era voltada para dentro, pelo facto de a
jurisdição do abade respeitar apenas ao mosteiro. Assomou historicamente como
símbolo do poder político superior ao poder temporal dos imperadores e reis.
Embora não haja oração que o Bispo
reze enquanto o caulífero lhe oferece o báculo para a procissão de ingresso, o
seu significado pastoral está plasmado na fórmula que o Bispo ordenante
principal utiliza aquando da ordenação episcopal:
“Recebe
o báculo, símbolo do múnus de pastor, e cuida de todo o rebanho no qual o
Espírito Santo te constituiu como Bispo, para regeres a Igreja de Deus”.
***
Trata-se de aproveitamento de peças
do uso comum, habitualmente profano para elevar, na descoberta histórica e
enditante dos valores simbólicos, fazer perceber o sentido da beleza do culto
público e instilar piedade e noção do mistério. Mas não devem ter lugar os
excessos.
Reportando-me ao título, percebo que
a Covid-19 tenha generalizado o uso da máscara como forma de proteção pessoal e
comunitária e entendo que os liturgistas poderiam formular uma declaração ou um
discurso orante que refira a sua assunção celebrante (presidencial, concelebrante ou
participante) do género:
“Recebe a máscara da virtude para que te
protejas das insídias do mal que te venha do exterior e não contagies os teus irmãos
com o mal que a mente e o coração possam querer difundir através da tua boca”.
Não é verdade que o Senhor purificou os lábios do profeta com uma brasa viva (Is 6,6-7) e que isso deu origem a bênção ou a
oração antes do anúncio do Evangelho (Vd “Ordo Missae”, Missale
Romanum, de Paulo VI)?
Porém, um hipotético uso litúrgico da
máscara evocaria um surto pandémico de má memória. Para isso, temos a invocação
ao Mártir São Sebastião para nos livre da peste da fome e da guerra ou a
rogação da Ladainha de Todos os Santos: A peste, fame et bello libera nos, Domine.
Não, não quero a máscara por muito
tempo: quero as pessoas como são e mostrar-me como sou.
2020.06.03 – Louro de Carvalho
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