quarta-feira, 3 de junho de 2020

Não queria que a máscara viesse a ser assumida liturgicamente


Não, o título não vem a despropósito, já que a maior parte dos paramentos, insígnias e alguns gestos litúrgicos, que tiveram origem no uso comum ou no de determinados grupos de pessoas e/ou em necessidades permanentes ou pontuais, passaram a ser assumidos na Liturgia – muitos deles pelo comum dos clérigos e outros, com o decurso do tempo, apenas por alguns. E o uso litúrgico deu-lhes significado espiritual como consta do teor das orações que acompanham a sua assunção antes da ação litúrgica (orações que a reforma litúrgica de São Paulo VI deixou de impor, mas que também não aboliu) ou das palavras que acompanham a sua imposição, nomeadamente no rito da ordenação de diácono, presbítero e bispo (Vd Cerimonial dos Bispos e Pontifical Romano, de Paulo VI).
Porque o antigo ritual da paramentação do Bispo para solene Pontifical as impunha ao Bispo, há que revisitar a origem dessas peças e as orações concomitantes à sua vestição, orações que as conotam com um grande significado espiritual e arredam toda a ideia de luxo, pompa ou poder.
As cáligas, calçado de meio cano em forma de sandálias feitas de couro e com pregos, usado pelos militares romanos, nomeadamente os legionários e até os centuriões (algumas vezes também os escravos), eram símbolo da expansão do Império. A Igreja preservou o modelo, embora decorado, na forma de bota que chega até meio das pernas e que é fechada por fios atados.
Antes da paramentação, o Bispo desfaz-se dos sapatos usuais, calça as cáligas e diz: 
Calçai, Senhor, os meus pés na preparação do Evangelho da paz e protegei-me à sombra de vossas asas”.
A mozeta, murça ou mantelete é uma capa curta que cobre os ombros, parte das costas e dos braços. Não sendo veste litúrgica é usada sobre a sobrepeliz como parte da roupa coral de alguns clérigos.  É fechada na frente, sendo que a capa similar, mas aberta na frente, é denominada pregrineta. Depondo a mozeta, o Bispo reza:
Livrai-me, Senhor, do homem velho com as suas obras e costumes e revesti-me do homem novo, criado segundo Deus na justiça e santidade da verdade.
Lavar as mãos é um gesto normalíssimo higienicamente recomendado. Mas Pilatos lavou-as em sinal de desresponsabilização pela morte de Jesus. O Bispo lavava-as antes da Missa dizendo:
Dai, Senhor, força às minhas mãos para lavar toda a iniquidade e poder para servir-Vos sem culpa no corpo e na alma.
Na Missa, o celebrante lava as mãos dizendo:
Lavai-me, Senhor, da minha iniquidade e purificai-me do meu pecado”.
O amito surge no século VIII para cobrir a cabeça e o pescoço do celebrante e ministros (dantes usava-se sobre a alva e sobre a casula para cobrir a cabeça na ida para o altar), e, passando debaixo dos braços, para apertar a alva ao peito. Quando no século X apareceu o barrete, o amito passou a cobrir só o pescoço. Contudo, em ritos de certas ordens religiosas, conserva-se o uso primitivo do capuz. Usa-se por baixo todas as vezes que se vestir o amito. Também se põe imediatamente sobre o roquete ou sobrepeliz todas as vezes que se deva vestir, sem a alva, a dalmática, pluvial ou casula, como para assistir ao Bispo na Missa e Vésperas Pontificais. Com o amito, reza-se:
Ponde, Senhor, sobre a minha cabeça o capacete da salvação para rejeitar todas as tentações do diabo e armadilhas do inimigo.
A alva era a túnica interior que os romanos usavam no século VI. Agora usa-se na missa e outras ações litúrgicas, sobretudo nas procissões e exposições solenes do SS.mo Sacramento.
Enquanto se veste a alva, reza-se: 
Purificai-me, Senhor, e limpai meu coração, para que como aqueles que lavaram as suas vestes no sangue do Cordeiro, possa eu desfrutar das alegrias eternas”.
O cíngulo (branco ou da cor dos paramentos) passou a apertar aos rins a alva depois do século VIII.
Enquanto se cinge com o cíngulo, o sacerdote ou o Bispo diz: 
Cingi-me, Senhor, com o cíngulo da fé e da virtude da castidade e apagai de meus membros o ardor da concupiscência, para permanecer sempre em mim a força da castidade.
A cruz peitoral (insígnia episcopal desde o século XIII) costuma conter relíquias de mártires e o seu uso foi herdado dos primeiros cristãos. Depois de a beijar e receber do crucífero, o Bispo reza:
“Senhor Jesus Cristo, dignai-Vos proteger-me de todas as ciladas do inimigo com o sinal santíssimo da Vossa Cruz, e dignai-Vos conceder a mim, Vosso indigno servo, que, assim como levo em meu peito esta Santa Cruz com todos os Vossos Santos, sempre tenha em minha mente a memória da Paixão e as vitórias dos Mártires”.
A estola, peça de tecido de linha, terminada com franjas, que os homens usavam para resguardo do pescoço do frio, era aberta por diante e ornada duma orla de bordado precioso, que dava a volta ao pescoço e descia até aos pés. O uso religioso antecede o cristianismo (vd Ex 25,7 – o ephod usando-se vestido ou como símbolo ou bandeira). Entre os povos pré-romanos itálicos há menções do seu uso por sacerdotes umbros nas Tábuas Inguvinas. No cristianismo, data do século IV no Oriente e por volta do século VI no Ocidente. Era conhecida como orarium (perto da boca). Mais tarde, passou a designar-se no Ocidente de stola, (em grego, στολή – stolé, “vestido”). Originalmente, era um lenço ou xale estreito usado para enxugar o rosto das pessoas. Depois de adotada no vestuário litúrgico como insígnia de dignidade e poder (nas liturgias oriental, visigótica e galicana no século VI; e na romana no século IX), para poder ser revestida por baixo da dalmática e da casula, a estola perdeu a sua parte mais importante – a túnica, e conservou apenas o bordado (orarium). Deve ter uma cruz grega no meio e nas duas extremidades. Os sacerdotes usavam-na cruzada ao peito debaixo da casula já que a cruz peitoral era (e continua reservada aos Bispos), mas usavam-na pendendo paralelamente no peito, quando sobre a sobrepeliz. Ao tomar a estola, diz-se: 
Dai-me, Senhor, a estola da imortalidade que perdi com a desobediência de meus pais, e ainda quando dos Vossos sagrados Mistérios me aproximo sem ser digno, com este ornamento eu mereça a alegria eterna”.
A tunicela era um vestido comprido em forma de T, estreito, com ou sem mangas, que as personalidades oficiais de Roma, no século V, traziam sob a poenula (de que derivou a casula litúrgica) ou da toga. Liturgicamente, usavam-na os subdiáconos e podiam usá-la os Bispos sob a dalmática. Ao vestir a tunicela, diz o Bispo: 
Que o Senhor me revista com a túnica do gozo e as vestes da alegria”.
A dalmática, a princípio, vestido de escravos ou vestido interior, passou a ser vestido exterior luxuoso na Dalmácia. E os romanos adotaram-no, entre o século II e fins do século III sobretudo para as mulheres da classe alta sobretudo na última parte do século III. Muitas são assim retratadas em alguns retratos funerários em mortalhas de Antinoópolis, no Egito romano. Fontes literárias registam a dalmática como presente imperial para os indivíduos. Vestia-se por cima da túnica inferior e por baixo da poenula ou da toga. Embora, já usada no serviço do altar no tempo de São Cipriano, Bispo de Cartago (249-258), o Papa Silvestre I (314-335) adotou-a como veste litúrgica para quem lesse a Epístola ou o Evangelho. E, desde o fim do século V, foi adotada pelo Papa como insígnia própria e, depois, concedida por ele como distinção honorífica aos bispos e presbíteros da Igreja de Roma e, mais tarde, aos de outras Igrejas. Todavia, este privilégio foi-se estendendo aos diáconos das diversas Igrejas. Hoje só o Bispo nas Missas pontificais se conserva fiel ao costume (antigamente comum também aos sacerdotes) de vestir a tunicela e a dalmática por baixo da casula. De resto, por um desejo de simetria – pouco respeitador da tradição e das regras litúrgicas –, a tunicela e a dalmática tornaram-se iguais, indistinguíveis. Contudo, alguns dão à dalmática duas faixas horizontais (segmentae) a unir as duas verticais (claves) e à tunicela duas verticais e uma horizontal.
Como peça de vestimenta bizantina foi adotada pelo czar Paulo I do Império Russo como vestimenta de coroação e vestimenta litúrgica. Nos ícones ortodoxos de Jesus Cristo como Rei e Grande Sumo Sacerdote, Cristo enverga uma dalmática. Por ordem do Papa Eutiquiano (275 a 283), os mártires eram enterrados vestidos com dalmática. Ao vestir a dalmática, o Bispo diz: 
Revesti-me, Senhor, com a veste da salvação e da alegria, e rodeai-me com a dalmática da justiça”.
As chirotecas (luvas para proteção das mãos) são de seda, da cor litúrgica e com bordados nas costas – insígnia de distinção em uso desde a época carolíngia. O Bispo usava-as até ao ofertório, exceto na Sexta-feira Santa e na Missa dos Defuntos. Ao calçar as chirotecas, rezava: 
“Envolvei, Senhor, minhas mãos com a pureza do Homem novo que desceu do céu, para que, como o seu amado Jacob, que com as mãos cobertas com pele de cabra, pediu a bênção paterna, uma vez oferecidas a seu pai comida e bebida muito agradáveis, também a oferenda da salvação doada por nossas mãos mereça a bênção da Vossa graça. Por nosso Senhor Jesus Cristo, Vosso Filho, que em semelhança pela carne pecadora, Se ofereceu a Si mesmo por nós.”.
A casula era um manto de lã ou de couro, em forma de saco ou de sino, destinada nas viagens a resguardar do mau tempo. Era a poenula adotada pelos romanos no século II. Tinha só uma abertura por onde se passava a cabeça e, caindo dos ombros até aos pés, envolvia todo o corpo, simulando uma pequena casa (casula). Ampla e majestosa, flutuava ao mais ligeiro movimento do corpo, pelo que se designou por planeta (no grego, significa “errante”).  Se o povo a abandonou no século VI, o clero continuou a usá-la. Pouco a pouco, os membros da Hierarquia inferior renunciaram a ornamento tão caro, que ficou reservado aos presbíteros e aos bispos. A sua forma variou bastante a partir do século XIII, devido a sucessivas reduções que, para facilitar os movimentos do Celebrante, transformaram a ampla, ágil e majestosa planeta na inestética, desgraciosa e pesada casula romana tridentina até que o movimento litúrgico do século XX a recuperou como gótica. Havia o costume de tirá-la quando o sacerdote pregava do púlpito, porque o sermão, no rito antigo, não era considerado parte integrante da Missa. O costume de suspender a parte da casula que cai das costas do Celebrante durante as Elevações, antes do significado teológico, tinha o sentido prático de ajuda no trato do paramento originado quando este era mais amplo. Ao vestir a casula, o Bispo reza: 
Senhor, que dissestes ‘O meu jugo é suave e o meu fardo é leve’, concedei-me que eu o leve de tal modo que possa obter a sua graça”.
A mitra era uma touca branca, de forma alongada, cónica e sem ornato. No século XII, em Roma, toma a forma de coroa (regnum), e sofre, no decorrer dos séculos, várias modificações. O mais antigo documento da concessão aos Bispos data do século XI. Segundo Tomás de Aquino, as duas pontas que formam a mitra significam o Antigo e o Novo Testamentos; as ínfulas, que descem sobre as espáduas, expressam o resplendor que saía da cabeça de Moisés após a visão de Deus, o brilho da sabedoria dada aos bons pastores, como prometido ao profeta Jeremias (3,15). Até São Paulo VI os Papas usavam a tiara (triregnum), mas com este Sumo Pontífice estabeleceu-se o uso da mitra papal. Ao assumir a mitra quando o mitrífero lha entrega, o Bispo reza:  
Imponde, Senhor, em minha cabeça a mitra e o capacete da salvação, para que não caia nas ciladas do antigo inimigo e de todos os demais adversários”.
Aquando da ordenação episcopal, o Bispo ordenante principal utiliza a seguinte fórmula na entrega da mitra:
Recebe a mitra, e brilhe em ti o esplendor da santidade, para que, ao aparecer o príncipe dos pastores, mereças receber a coroa imperecível da glória”.
O anel deve ter uma pedra preciosa respetiva à dignidade do prelado. No Bispo, é o símbolo da união com a sua Igreja. É diferente do anel com que os antigos Bispos selavam as suas cartas, como faz o Papa com o Anel do Pescador. O anel episcopal do Vaticano II é simples. Ao receber o anel, o Bispo reza:
Adornai, Senhor, os dedos do meu coração e de meu corpo, e envolvei-me sete vezes com o Espírito santificador”.
Por seu turno, o Bispo ordenante, aquando da ordenação episcopal utiliza a seguinte fórmula na entrega do anel ao novo Bispo:
Recebe este anel, sinal de fidelidade; sê fiel à Igreja e guarda-a como esposa santa de Deus”.
O manípulo (mappula, sudarium), lenço de cerimónia integrava o vestido do aparato dos romanosservia para cobrir o rosto, limpar o suor, transmitir ordens, dar o sinal do princípio dos jogos, aclamar os vencedores. O presidente da assembleia litúrgica adotou-o, a princípio como toalha (posta junto à mão) para desanuviar as lágrimas com que ouvia, compungido, a confissão pública dos pecados. E os ministros imitaram-no. Ao envergar o manípulo, o celebrante diz:
Fazei, Senhor, que eu mereça levar o manípulo com espírito humilde, para que com alegria tenha eu parte entre os Santos”.
O báculo era um tipo de cajado usado pelos pastores para se apoiarem ao andar e conduzirem o rebanho. Muitas vezes tinha a extremidade curva para segurar a rês pela perna e aguçada a ponta inferior para ferir o lobo. No sentido eclesiástico, é um bordão usado pelos dignitários da Igreja Católica, simbolizando o seu papel de pastores do rebanho divino. Configura, ao lado da mitra, uma das principais insígnias dos Bispos e dos antigos abades, sendo um símbolo da jurisdição: a parte curva do báculo episcopal era voltada para fora, mercê da jurisdição do Bispo, que abrange todo o território da diocese; a do báculo abacial era voltada para dentro, pelo facto de a jurisdição do abade respeitar apenas ao mosteiro. Assomou historicamente como símbolo do poder político superior ao poder temporal dos imperadores e reis.
Embora não haja oração que o Bispo reze enquanto o caulífero lhe oferece o báculo para a procissão de ingresso, o seu significado pastoral está plasmado na fórmula que o Bispo ordenante principal utiliza aquando da ordenação episcopal: 
Recebe o báculo, símbolo do múnus de pastor, e cuida de todo o rebanho no qual o Espírito Santo te constituiu como Bispo, para regeres a Igreja de Deus”.
***
Trata-se de aproveitamento de peças do uso comum, habitualmente profano para elevar, na descoberta histórica e enditante dos valores simbólicos, fazer perceber o sentido da beleza do culto público e instilar piedade e noção do mistério. Mas não devem ter lugar os excessos.
Reportando-me ao título, percebo que a Covid-19 tenha generalizado o uso da máscara como forma de proteção pessoal e comunitária e entendo que os liturgistas poderiam formular uma declaração ou um discurso orante que refira a sua assunção celebrante (presidencial, concelebrante ou participante) do género: “Recebe a máscara da virtude para que te protejas das insídias do mal que te venha do exterior e não contagies os teus irmãos com o mal que a mente e o coração possam querer difundir através da tua boca”. Não é verdade que o Senhor purificou os lábios do profeta com uma brasa viva (Is 6,6-7) e que isso deu origem a bênção ou a oração antes do anúncio do Evangelho (Vd “Ordo Missae”, Missale Romanum, de Paulo VI)?
Porém, um hipotético uso litúrgico da máscara evocaria um surto pandémico de má memória. Para isso, temos a invocação ao Mártir São Sebastião para nos livre da peste da fome e da guerra ou a rogação da Ladainha de Todos os Santos: A peste, fame et bello libera nos, Domine. 
Não, não quero a máscara por muito tempo: quero as pessoas como são e mostrar-me como sou.
2020.06.03 – Louro de Carvalho

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