O Cardeal Dom José Tolentino de Mendonça, na
qualidade de presidente da Comissão das Celebrações do Dia de Portugal, de
Camões e das Comunidades Portuguesas, foi o primeiro a discursar na cerimónia
simbólica que ocorreu no Mosteiro dos Jerónimos, Lisboa, neste 10 de
junho de 2020. Da sua intervenção, pela sua relevância, se respigam aqui as linhas
essenciais.
Na memorável
peça em torno do título “O que é amar um país”, começou por
citar “Flash” de Herberto Helder, recordando “como
pesa na água (...) a raiz de uma ilha” e, rebatizando o texto como “reflexão sobre as raízes”,
saudou a raiz da ilha-arquipélago, que “se tornou uma das admiráveis entradas
atlânticas de Portugal” e dirigiu a palavra àquelas e àqueles “que dia a dia
encarnam Portugal onde quer que Portugal seja”.
Para
assegurar que, ao cuidarmos cada um da sua parte de entre as múltiplas,
“estamos juntos a edificar o todo” ou que “cada português é uma expressão de Portugal e é chamado a
sentir-se responsável por ele”, socorreu-se de três imagens: a casa que arquitetamos mostra-nos “a
construir a cidade”; a embarcação que
pilotamos mostra que somos responsáveis por ela e “pelo inteiro oceano”; e a árvore que intentamos interpretar “não
viveria sem as raízes”.
De Camões
diz que “não nos deu só o poema”, mas “deixou-nos em herança a poesia”. Mais: ofereceu-nos
“o mais extraordinário mapa mental do Portugal do seu tempo” e iniciou um inteiro
povo na “inultrapassável ciência de navegação interior que é a poesia”, que “é
um guia náutico perpétuo” ou “um tratado de marinhagem para a experiência
oceânica que fazemos da vida” e “uma cosmografia da alma”. Assim, Os
Lusíadas são “um livro que nos leva por mar até à Índia” e “nos conduz
por terra ainda mais longe: conduz-nos a nós próprios” como “indivíduos e nação”;
leva-nos “àquela consciência última de nós mesmos, ao quinhão daquelas
perguntas fundamentais de cujo confronto um ser humano sobre a terra não se
pode isentar”.
E, estribado
nas palavras de Wittgensteinm de que “os limites da minha linguagem são os
limites do meu mundo”, proclamou que o vate português, hoje comemorado “desconfinou
Portugal” no século XVI e continua a ser “um preclaro mestre da arte do
desconfinamento”, pois desconfinar não é só “voltar a ocupar o espaço
comunitário”, mas é “habitá-lo plenamente”, “modelá-lo de forma criativa, com
forças e intensidades novas, como um exercício deliberado e comprometido de
cidadania”; “é sentir-se protagonista e participante dum projeto mais amplo e
em construção, que a todos diz respeito”, não se conformando com “os limites da
linguagem, das ideias, dos modelos e do próprio tempo”, na ousadia dos “sonhos
grandes” num tempo que “nos coloca no interior turbulento de uma mudança de
época”.
Evocando a
passagem do Canto VI d’Os Lusíadas, que celebra a chegada da expedição à
Índia, assenta em que “o objetivo da missão está assim cumprido”, mas o Canto “tem
uma exigente composição em antítese”: à concretização do sonho “não se chega
sem atravessar uma dura experiência de crise, provocada por uma tempestade
marítima”. De facto, “não há viagem sem tempestades”, nem “demandas que não
enfrentem a sua própria complexificação” ou “itinerário histórico sem crises.
Isto, assegura o cardeal humanista, intelectual e poeta (dele assim
disse o Presidente da República), vem dito
n’Os Lusíadas, nas Metamorfoses (de Ovídio), na Eneida, na Odisseia e
nos Evangelhos. E, sendo “cada geração chamada a viver tempos bons
e maus” e a história “feita de maturações, deslocações, ruturas e recomeços”,
temos de nos encontrar como comunidade, unidos, “na atualização dos valores
humanos essenciais” e capazes da luta por eles.
Depois, o
orador ajustou à sua reflexão sobre as raízes os seguintes versos da estância
79 do Canto VI d’Os Lusíadas:
“Quantas árvores velhas arrancaram/ Do vento bravo as fúrias indignadas/As
forçosas raízes não cuidaram/Que nunca para o Céu fossem viradas”.
A imagem
mostra como, em vez de inabaláveis como pensávamos, somos portadores da
vulnerabilidade causada pela “turbulência da máquina do mundo”, de tal modo que
“ não há superpaíses” nem “super-homens”, pelo que “todos somos chamados a
perseverar com realismo e diligência nas nossas forças e a tratar com sabedoria
das nossas feridas”.
A retomar o título do discurso, Dom José Tolentino cita o ensaio de Simone Weil com vista ao “renascimento da
Europa sob os escombros da II Grande Guerra”, para dizer que “um país pode ser
amado por duas razões” ou por “dois amores distintos”: idealmente, emoldurando-o
de modo a que permaneça fixo numa imagem imutável de glória; ou, pragmaticamente,
vendo-o colocado na história, sujeito aos vários solavancos e riscos. Dito de
outro modo, podemos amar pela força ou pela fragilidade, sendo que, se o
reconhecimento da fragilidade inflamar o nosso amor, torna-o muito mais puro.
Por outro lado, esse amor postula a “prática da compaixão”, mas “vivida como
exercício efetivo da fraternidade. Com efeito, no dizer do cardeal, “compaixão
e fraternidade são permanentes e necessárias raízes de que nos orgulhamos”,
quer “em relação à história passada”, quer àquela “que o nosso presente escreve
– chão onde “precisamos, como comunidade nacional, de fincar ainda novas raízes”.
Considerando
que “a imprevista tempestade global que condicionou radicalmente as nossas
vidas” se iniciou como “uma crise sanitária”, mas se tornou “uma crise
poliédrica”, não podendo nós regressar ao ponto em que estávamos, importa que saibamos,
como sociedade, “para onde queremos ir”. E a tempestade n’Os Lusíadas –
anotou o purpurado – em vez de ter suspendido a viagem, ofereceu o ensejo de
redescobrir o facto de “estarmos no mesmo barco”.
A explicar o
que significa estar no mesmo barco, mencionou a parábola atribuída a Margaret
Mead, segundo a qual, ao perguntar-lhe um estudante “qual seria para ela o
primeiro sinal de civilização”, a antropóloga, em vez de nomear os primeiros “instrumentos
de caça”, as “pedras de amolar” ou “os ancestrais recipientes de barro”,
identificou como primeiro vestígio de civilização “um fémur quebrado e
cicatrizado”. E o orador comentou:
“No reino animal, um ser ferido está automaticamente condenado à morte,
pois fica fatalmente desprotegido face aos perigos e deixa de se poder
alimentar a si próprio. Que um fémur humano se tenha quebrado e restabelecido
documenta a emergência de um momento completamente novo: quer dizer que uma
pessoa não foi deixada para trás, sozinha; que alguém a acompanhou na sua
fragilidade, dedicou-se a ela, oferecendo-lhe o cuidado necessário e garantindo
a sua segurança, até que recuperasse.”.
Por isso,
concluiu que “a raiz da civilização” é “a comunidade”, pois é nela que “a nossa
história começa”, é ela que nos faz passar do “eu” e “tu” ao “nós”, dando-lhe “uma
determinada configuração histórica, espiritual e ética”. E, evocando a etimologia
da palavra “comunidade” (no latim, communitas: cum + munus), anota que ela explica que os membros de uma
comunidade “não estão unidos por uma raiz ocasional qualquer”, mas por “um
múnus” ou “por um comum dever, por uma tarefa partilhada”. E a primeira tarefa
da comunidade é “cuidar da vida”.
Assim, a
primeira consequência da celebração do Dia de Portugal será “reabilitar
o pacto comunitário que é a nossa raiz” e que implica “empenharmo-nos
na qualificação fraterna da vida comum, ultrapassando a cultura da indiferença
e do descarte”, colocando a pessoa humana no centro, tornando concreta a
justiça social, não desistindo de “corrigir as drásticas assimetrias que nos
desirmanam, quando, ao pormos “os olhos postos naqueles que se podem posicionar
como primeiros”, nos esquecemos dos “que são os últimos”. Face à multidão dos “concidadãos
para quem a Covid-19 ficará como sinónimo de desemprego, de diminuição de
condições de vida, de empobrecimento radical e mesmo de fome”, tem esta de ser “hora
de solidariedade”. Vincando que, no surto pandémico, foi “um sinal humanitário
importante a regularização dos imigrantes com pedidos de autorização de residência,
pendentes no SEF”, frisou que o desafio da integração é imenso, “porque se
trata de ajudar a construir raízes”, que “não se improvisam: são lentas, requerem tempo, políticas
apropriadas e uma participação do conjunto da sociedade”. Na verdade, como
bem sublinhou, “sem compaixão e fraternidade fortalecem-se apenas os muros e
aliena-se a possibilidade de lançar raízes”.
A segunda tarefa, decorrente da primeira, é o robustecimento do pacto
intergeracional, ficando contraindicada
a arrumação da sociedade “em faixas etárias”, numa “visão desagregada e
desigual”, como se não fossemos “um todo inseparável”. Precisamos, pois, de “uma
visão mais inclusiva do contributo das diversas gerações”, sendo “um erro
pensar ou representar uma geração como um peso, pois não poderíamos viver uns
sem os outros”. Assim, a Covid-19 obriga-nos como comunidade “a refletir sobre
a situação dos idosos” em Portugal e na Europa. Por um lado, tendo eles sido as
principais vítimas da pandemia, precisamos chorar essas perdas com a dignidade
e o tempo que ainda não disponibilizámos; por outro, temos de rejeitar “a tese
de que uma esperança de vida mais breve determine a diminuição do seu valor”,
porque “a vida é um valor sem variações” e “uma raiz de futuro em Portugal será”,
ao invés, “aprofundar a contribuição dos seus idosos, ajudá-los a viver e a
assumir-se como mediadores de vida para as novas gerações”. Depois, “robustecer
o pacto intergeracional” é também olhar seriamente para a geração dos jovens
adultos, abaixo dos 35 anos, que vê, praticamente numa década, “abater-se sobre
as suas aspirações, uma segunda crise económica grave”. Muitos com alta
qualificação escolar ficam remetidos para uma experiência interminável de
trabalho precário ou de atividades informais que os obrigam “a adiar os
legítimos sonhos de autonomia pessoal, de lançar raízes familiares, de ter
filhos e de se realizarem”.
A terceira tarefa é um novo
pacto ambiental, pois “não podemos continuar a chamar progresso àquilo
que para as frágeis condições do planeta ou para a existência dos outros seres
vivos, tem sido uma evidente regressão”. Assim, a Encíclica Laudato
Sii’, exorta à ecologia integral, “onde o presente e o futuro da nossa
humanidade se pense a par do presente e do futuro da grande casa comum”.
Precisamos, pois, diz o cardeal, de “construir uma ecologia do mundo, onde em vez de senhores despóticos
apareçamos como cuidadores sensatos, praticando uma ética da criação”, com
“expressão jurídica efetiva nos tratados transnacionais” e “nos estilos de
vida, nas escolhas e nas expressões mais domésticas do nosso quotidiano.
Por fim, o orador disse que Os
Lusíadas, além de documentarem o país em viagem, representam “o
próprio país como viagem”. E o seu maior tesouro é a possibilidade
de ser-em-comum, a tarefa “sempre inacabada de plasmar uma comunidade aberta e
justa, de mulheres e homens livres”, onde todos são necessários corresponsáveis
“pelo trânsito que liga a multiplicidade das raízes à composição esperançosa do
futuro” – viagem que, tal como o amor, não se esgota “na temporalidade da
história”, mas é “um rasto do fulgor” que exprime a nossa ardente natureza.
2020.06.10 – Louro de Carvalho
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