sexta-feira, 26 de junho de 2020

“A caminho dos cuidados da casa comum”


No passado dia 18 de junho, pelo 5.º aniversário da publicação da Encíclica ‘Laudato si’, como se pode ler no “Vatican News”, a Santa Sé divulgou um documento sob o título “A caminho dos cuidados da casa comum”, que exorta os cristãos a uma relação saudável com a Criação, oferecendo-lhe uma orientação às ações dos católicos nesta magna causa, concretizada em evidências, apelos, exortações, sugestões e propostas.
A apresentação esteve a cargo de: Paul Paul Gallagher, Secretário de Relações com os Estados, da Secretaria de Estado;  Fernando Vérgez Alzaga, LC, Secretário-geral da Província do Estado da Cidade do Vaticano;  Angelo Vincenzo Zani, Secretário da Congregação para a Educação Católica (dos Institutos de Estudos); Bruno Marie Duffé, Secretário do Dicastério para o Serviço de Desenvolvimento Humano Integral; Aloysius John, Secretário-geral da Caritas Internationalis ; e Tomás Insua, cofundador e diretor executivo do Movimento Global pelo Clima Católico.
Trata-se dum texto redigido pela “Mesa Interdicasterial da Santa Sé sobre ecologia integral”, criada em 2015 para estudar como promover e implementar a ecologia integral, tendo como participantes as instituições ligadas à Santa Sé envolvidas nesta área, algumas Conferências Episcopais e Organismos Católicos. E, ainda que elaborado antes da pandemia da covid-19, este manual ou guia de ação destaca a mensagem principal da Encíclica: tudo está ligado, não há crises separadas, mas uma única e complexa crise socioambiental que postula uma verdadeira conversão ecológica.
Desde logo, vinca a necessidade duma conversão ecológica, que implica a mudança de mentalidade conducente ao cuidado da vida e da Criação, ao diálogo com o outro e à consciência da profunda conexão entre os problemas do mundo. São de valorizar, nesta ordem de ideias, iniciativas como o “Tempo da Criação” e as tradições monásticas que ensinam a contemplação, a oração, o trabalho e o serviço, com vista a educar para o conhecimento da ligação entre o equilíbrio pessoal, social e ambiental.
Reafirmando a centralidade da vida e da pessoa humana, uma vez que “não se pode defender a natureza se não se defende todo o ser humano”, patenteia a indicação para desenvolver, entre as novas gerações, o conceito de “pecado contra a vida humana”, a “cultura do cuidado” e a “cultura do desperdício” – três itens conexos com a vida condigna do ser humano.
Na sequência da valorização da vida e da pessoa humana, vem a família, seu ninho fundamental, como “protagonista da ecologia integral”, alicerçada nos princípios basilares da “comunhão e fecundidade”, podendo tornar-se “lugar educativo privilegiado onde se aprende a respeitar o ser humano e a Criação”. Por isso, os decisores políticos são instados a “promover políticas inteligentes para o desenvolvimento familiar”.
E, ampliando o círculo da responsabilidade pelo cuidado da “Casa Comum”, é instada a escola a ganhar “uma nova centralidade”, tornando-se espaço de desenvolvimento da capacidade de discernimento, pensamento crítico e ação responsável. Assim, o manual sugere a facilitação das conexões casa-escola-paróquia e o lançamento de projetos de formação para a “cidadania ecológica”, isto é, a promoção de “um novo modelo de relacionamento” entre os jovens que vá além do individualismo em prol da solidariedade, da responsabilidade e do cuidado. Também é chamada a universidade – pela sua tripla missão de ensinamento, pesquisa e serviço à sociedade – a girar em torno do eixo da ecologia integral, incentivando os estudantes a assumirem “profissões que facilitem mudanças ambientais positivas”. Por conseguinte, é-lhe deixada a sugestão específica de “estudar a teologia da Criação, na relação do ser humano com o mundo”, consciente de que o cuidado da Criação postula “uma educação permanente”, um verdadeiro “pacto educativo” entre todas as entidades envolvidas.
Este vade mecum, na tradição católica, reafirma categoricamente que o compromisso com o cuidado da casa comum não é uma opção secundária, mas “é parte integrante da vida cristã”. Mais é “uma excelente área” para o diálogo e colaboração ecuménica e inter-religiosa, pois, com a sua “sabedoria”, as religiões podem incentivar um estilo de vida “contemplativo e sóbrio” que leve à “superação da deterioração do Planeta”.
É de relevar o capítulo dedicado à comunicação e à sua “profunda analogia” com o cuidado da casa comum, pois baseiam-se na “comunhão, relacionamento e conexão”. No contexto duma “ecologia dos media”, os meios de comunicação são chamados a destacar as ligações entre “o destino humano e o ambiente natural”, fortalecendo os cidadãos e combatendo as “fake news”.
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No âmbito do tema da alimentação, recordam-se as palavras do Papa Francisco: “A comida que é jogada fora é como se fosse roubada dos pobres(LS, 50). Daí, a condenação do desperdício alimentar como ato de injustiça, o apelo à promoção duma agricultura “diversificada e sustentável”, em defesa dos pequenos produtores e dos recursos naturais, e a necessidade urgente duma educação alimentar saudável quantitativa e qualitativamente.
Depois, vem o forte apelo ao combate a fenómenos como a apropriação de terras, os grandes projetos agroindustriais poluidores, bem como o apelo à proteção da biodiversidade – apelo que se repete no capítulo dedicado à água, cujo acesso é “um direito humano essencial”, pelo que se impõe o combate ao desperdício e aos critérios utilitários que levam à privatização deste bem natural. Na mesma ordem de ideias, se apela à redução da poluição, à descarbonização do setor energético e económico e ao investimento em energia “limpa e renovável”, acessível a todos.
Também estão no coração da ecologia integral os mares e oceanos como “pulmões azuis do planeta”, que exigem uma governança focada no bem comum de toda a família humana e na subsidiariedade. Destaca-se a urgência da promoção duma “economia circular” que não vise a exploração excessiva dos recursos produtivos, mas a sua manutenção a longo prazo, com vista à sua reutilização. E, porque tudo tem o seu valor, deve superar-se o conceito de ‘rejeição’. Ora, tudo isso será possível só através da interação entre inovação tecnológica, investimento em infraestrutura sustentável e crescimento da produtividade dos recursos.
Nestes termos, o setor privado é chamado a operar com transparência na cadeia de suprimentos, urgindo a reforma dos subsídios aos combustíveis fósseis e a tributação das emissões de CO2. E, no campo do trabalho, espera-se a promoção do desenvolvimento socioeconómico sustentável para erradicar a pobreza; caminhos socioprofissionais em prol dos marginalizados; trabalho digno, salários justos, combate ao trabalho infantil e à informalidade; uma economia inclusiva, na promoção do valor da família e da maternidade; e a prevenção e erradicação de “novas formas de escravidão”, como o tráfico.
Também o mundo das finanças deve desempenhar o seu papel em torno do “primado do bem comum” e no esforço de pôr fim à pobreza. Com efeito, como se lê no texto, “a própria pandemia da covid-19 mostra como é questionável um sistema que reduz a assistência ou permite grandes especulações mesmo em infortúnios, voltando-se contra as pessoas mais pobres”. Assim, impõe-se o fim dos paraísos fiscais, a sanção das instituições financeiras envolvidas em operações ilegais e o estabelecimento da ponte entre os que têm acesso ao crédito e os que não o têm. E exorta-se à promoção de “uma gestão dos bens da Igreja inspirada na transparência, coerência e coragem” na perspetiva da sustentabilidade integral.
A nível das instituições, enfatiza-se a “primazia da sociedade civil”, ao serviço da qual se deve dedicar a política, os governos e as administrações; propõe-se a globalização da democracia substantiva, social e participativa, e uma visão de longo prazo baseada na justiça e na moralidade e na luta à corrupção; importa promover o acesso à justiça para todos, incluindo os pobres, os marginalizados, os excluídos; e é preciso “repensar prudentemente” o sistema prisional, promovendo a reabilitação dos reclusos, sobretudo jovens em primeira condenação.
O texto aborda a saúde como “questão de equidade e justiça social” reafirmando a importância do direito ao tratamento. E, porque, ao mesmo tempo que se degradam “as redes ecológicas”, se degradam também “as redes sociais e em ambos os casos são os mais pobres que pagam as consequências”, entre as várias sugestões do manual, há as do exame dos perigos associados à “rápida disseminação de epidemias virais e bacterianas” e da promoção de cuidados paliativos.
Por fim, aborda-se a questão climática, na convicção da sua “profunda “relevância” ambiental, ética, económica, política e social, “afetando acima de tudo os mais pobres”. Por isso, urge “um novo modelo de desenvolvimento” que articule sinergicamente as lutas contra as mudanças climáticas e contra a pobreza “em harmonia com a Doutrina Social da Igreja”. E, porque “não se pode agir sozinho”, apela-se ao compromisso com o desenvolvimento sustentável “com baixo carbono” para reduzir as emissões de gases de efeito estufa. Assim, entre as propostas nessa área, ressalta o reflorestamento de áreas como a Amazónia e o apoio ao processo internacional de definição da categoria de “refugiado climático” para garantir a “proteção jurídica e humanitária necessária”.
E o último capítulo contempla o compromisso do Estado da Cidade do Vaticano, que abrange 4 áreas operacionais a que se aplicam as indicações da “Laudato si”: proteção ambiental, pela recolha seletiva de resíduos em todos os escritórios; proteção dos recursos hídricos, com circuitos fechados para a água das fontes; cuidado de áreas verdes, pela redução progressiva de agrotóxicos; e consumo de recursos energéticos, com a instalação, em 2008, no telhado da Sala Paulo VI, dum sistema fotovoltaico e com os novos sistemas de iluminação com economia de energia na Capela Sistina, na Praça de São Pedro e na Basílica do Vaticano, a reduzirem os custos em 60%, 70% e 80%, respetivamente.
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Enfim, enquanto apela aos Estados, instituições, privados, escolas e universidades, famílias e pessoas no âmbito da ecologia integral, o Papa induziu o Estado da Cidade do Vaticano a dar o exemplo estando na linha da frente. Resta lembrar os propósitos do documento: relançar a riqueza do conteúdo da encíclica, muito atual como fica evidente no contexto da pandemia; oferecer orientação sobre a sua leitura, promovendo os seus elementos operacionais decorrentes das reflexões contidas nela e minimizando os riscos de mal-entendidos; e instar à colaboração entre os departamentos da Cúria Romana e as instituições católicas envolvidas na disseminação e implementação da “Laudato Si” , aumentando as numerosas sinergias.
2020.06.26 – Louro de Carvalho

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