segunda-feira, 29 de junho de 2020

Motivos por que celebramos na mesma solenidade Pedro e Paulo


A 29 de junho, a Igreja celebra a Solenidade de São Pedro e São Paulo. E a questão que se coloca é porque se juntam os dois apóstolos tão diferentes na mesma celebração.
Diego López Marina, no site do ACI, elenca sete razões ou chaves de interpretação da unicidade desta celebração dual.
A primeira decorre da afirmação de Santo Agostinho de Hipona de que os dois eram como “um só”. Com efeito, num sermão do ano de 395, de que se lê um excerto no Ofício de Leituras da Liturgia das Horas da Solenidade, este Doutor da Igreja afirma que Pedro e Paulo, “na realidade, eram como um só”, pois, embora martirizados em dias diferentes, “deram o mesmo testemunho: Pedro foi à frente e Paulo seguiu-o”. Por isso, “celebramos a festa deste dia para nós consagrado pelo sangue dos dois apóstolos” e, por conseguinte, “amemos e imitemos a sua fé, a sua vida, os seus trabalhos, os sofrimentos, o testemunho que deram e a doutrina que pregaram”.
A segunda razão prende-se com o facto de ambos terem estado detidos na prisão Mamertina ou Tullianum, sita no foro romano na Roma Antiga, e terem sido martirizados na mesma cidade, provavelmente por ordem do imperador Nero. Pedro passou os seus últimos anos em Roma à testa da Igreja durante a perseguição e até ao seu martírio no ano 64. Foi crucificado de cabeça para baixo, a seu pedido, por não se considerar digno de morrer como o Senhor. Foi enterrado na colina do Vaticano e sobre o seu túmulo foi edificada a Basílica de São Pedro. Quanto a Paulo, sabe-se que foi preso e, tendo apelado a César por ser cidadão romano, levado a Roma, onde acabou por ser decapitado no ano 67. Está sepultado na Basílica de São Paulo Extramuros.
Uma terceira razão está espelhada nas palavras de Bento XVI, que na homilia da Solenidade, em 2012, assegurou que “a sua ligação como irmãos na fé adquiriu um significado particular em Roma”, pois esta comunidade cristã “viu neles uma espécie de antítese dos mitológicos Rómulo e Remo, os irmãos a quem se atribui a fundação de Roma”.
Uma quarta razão assenta no facto de serem ex-aequo os “padroeiros principais da Igreja de Roma”, já que, no dizer de Bento XVI, “desde sempre a tradição cristã tem considerado São Pedro e São Paulo inseparáveis: na verdade, juntos, representam todo o Evangelho de Cristo”.
Em quinto lugar, o mesmo Papa Ratzinger apresentou um paralelismo oposto à irmandade entre Caim e Abel no Antigo Testamento, observando:
Enquanto nestes vemos o efeito do pecado pelo qual Caim mata Abel, Pedro e Paulo, apesar de serem humanamente bastante diferentes e não obstante os conflitos que não faltaram no seu mútuo relacionamento, realizaram um modo novo e autenticamente evangélico de ser irmãos, tornado possível precisamente pela graça do Evangelho de Cristo que neles operava”.
Uma sexta chave de leitura decorre do facto de Pedro ter sido escolhido por Cristo – “tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja(Mt 16,18); “apascenta os meus cordeiros” e “as minhas ovelhas” (Jo 21,15.16.17) – e humildemente ter aceitado, apesar das suas fragilidades humanas, a missão de ser “a rocha” da Igreja e apascentar o rebanho de Deus. Assim, o livro dos Atos dos Apóstolos ilustra o seu papel de líder da Igreja depois da Ressurreição e Ascenção de Cristo, pois dirigiu os apóstolos como primeiro Papa, assegurou que os discípulos mantivessem a verdadeira fé e abriu as portas da pregação aos gentios (vd At cap. 10). E Bento XVI, na suprarreferida homilia, desenvolveu:
Na passagem do Evangelho de São Mateus que acabamos de ouvir, Pedro faz a sua confissão de fé em Jesus, reconhecendo-O como Messias e Filho de Deus; fá-lo também em nome dos outros apóstolos. Em resposta, o Senhor revela-lhe a missão que pretende confiar-lhe, ou seja, a de ser a ‘pedra’, a ‘rocha’, o fundamento visível sobre o qual está construído todo o edifício espiritual da Igreja.” (cf Mt 16,16-19).
Por último, é de reconhecer que Paulo também é coluna do edifício eclesial. O apóstolo dos gentios, que, antes da conversão, era chamado Saulo (nome mais grego), depois do encontro com Cristo e conversão, prosseguiu, constituído vaso se eleição, no caminho para Damasco, onde foi batizado e recuperou a visão, que perdera no caminho. Adotou o nome de Paulo (nome latino) e passou o resto da vida pregando o Evangelho sem descanso às nações do mundo mediterrâneo. A respeito de Paulo, é de reter o apontamento iconográfico na predita homilia de Bento XVI:
A iconografia tradicional apresenta São Paulo com a espada, e sabemos que esta representa o instrumento do seu martírio. Mas, repassando os escritos do Apóstolo dos Gentios, descobrimos que a imagem da espada se refere a toda a sua missão de evangelizador. Por exemplo, quando já sentia aproximar-se a morte, escreve a Timóteo: ‘Combati o bom combate’ (2Tm 4,7); aqui não se trata seguramente do combate dum comandante, mas daquele dum arauto da Palavra de Deus, fiel a Cristo e à sua Igreja, por quem se consumou totalmente. Por isso mesmo, o Senhor lhe deu a coroa de glória e o colocou, juntamente com Pedro, como coluna no edifício espiritual da Igreja.”.
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Em dia de São Pedro e de São Paulo é oportuno refletir sobre a apostolicidade da Igreja. Sempre que recitamos o símbolo niceno-constantinoplitano, professamos a fé na Igreja una, santa, católica e apostólica. E, atentando hoje na caraterística eclesial da apostolicidade, entendemo-la em três sentidos: a Igreja foi e continua edificada sobre “o fundamento dos apóstolos” (Ef 2,20), testemunhas escolhidas e enviadas em missão por Cristo; “conserva e transmite, com a ajuda do Espírito que nela habita, o ensinamento, o depósito precioso, as salutares palavras ouvidas da boca dos apóstolos”; e os sucessores dos apóstolos continuam a ensinar, santificar e dirigir esse corpo até a volta de Cristo (vd CIC/Catecismo da Igreja Católica nn. 857-864.869).
Estes sentidos são muito importantes porque configuram para nós a segurança de que a Igreja é hoje a mesma que foi fundada por Jesus, mas não aprofundam o que significa especificamente ser apóstolo. Por isso,  Pedro e Paulo podem lançar luzes sobre as nossas próprias vidas.
Alguém dirá que Paulo não foi apóstolo, pois não esteve no grupo dos doze escolhidos pelo Senhor, desses amigos íntimos que partilharam a vida e aprenderam em primeira mão o que significa a vida cristã. Até perseguiu cristãos, convicto de que estava a fazer a vontade de Deus. Porém, era apóstolo, tal como Pedro. Com efeito, Paulo declara-se “chamado para ser apóstolo, não por qualquer organização ou autoridade humana, mas por Jesus Cristo e por Deus o Pai, que ressuscitou Jesus da morte” (Gl 1,1). E, na relação com os outros apóstolos, explica: 
Não fui logo consultar criatura alguma. (…) Passados três anos, subi a Jerusalém, para conhecer Cefas. (…) O mesmo Deus que trabalhou para que Pedro estivesse ao serviço dos judeus trabalhou para que eu fosse posto ao serviço dos não judeus. Então, Tiago, Pedro e João, considerados como as colunas da igreja, reconhecendo a atribuição que me fora confiada, deram-nos as mãos, a mim e a Barnabé, em demonstração de concordância. Ficou então assente que nós continuaríamos a nossa missão junto dos não-judeus e eles no meio dos judeus.” (Gl 1,16; 2,8-9).
Apóstolo’ vem da palavra grega ‘apóstolos’, que significa ‘enviado para longe. O apóstolo é, pois, alguém que recebe a tarefa de outrem para ir a um lugar entregar uma mensagem ou realizar uma atividade. Jesus, dizendo aos discípulos “Ide por todo o mundo e proclamai o Evangelho a toda criatura(Mc 16,15), transforma-os em apóstolos porque se lhes explicita a missão. Paulo recebe-a após a caminhada de Damasco. E o n.º 860 do CIC esclarece:
No múnus dos Apóstolos há um aspeto intransmissível: serem as testemunhas escolhidas da ressurreição do Senhor e os alicerces da Igreja. Mas há também um aspeto da sua missão que permanece. Cristo prometeu estar com eles até ao fim dos tempos. A missão divina confiada por Jesus aos Apóstolos é destinada a durar até ao fim dos séculos, uma vez que o Evangelho que devem transmitir é, para a Igreja, princípio de toda a sua vida em todos os tempos. Por isso é que os Apóstolos tiveram o cuidado de instituir [...] sucessores.” (LG, 20). 
E nós, que não nos consideramos tecnicamente sucessores dos apóstolos?
Ora, nós, como membros da Igreja pelo Batismo, também recebemos uma missão de Deus, a de sermos santos e de levar a santidade aos que nos rodeiam. Cada um de nós pode entender-se, pois, como um apóstolo, um enviado por Deus para uma missão específica. Cabe a cada um de nós acolher, como Pedro e Paulo, a missão e colocar o nosso grãozinho de areia para cooperar com a missão de Deus de fazer chegar a salvação a todos. Referem o nn 863 e 864 do CIC:  
Toda a Igreja é apostólica, na medida em que, através dos sucessores de Pedro e dos Apóstolos, permanece em comunhão de fé e de vida com a sua origem (…), na medida em que é ‘enviada’ a todo o mundo. Todos os membros da Igreja, embora de modos diversos, participam deste envio. A vocação cristã é também, por natureza, vocação para o apostolado. E chamamos apostolado ‘a toda a atividade do Corpo Místico’ tendente a alargar o Reino de Cristo à terra inteira.” (cf AA, 2) – n.º 863.
Sendo Cristo, enviado do Pai, a fonte e a origem de todo o apostolado da Igreja, é evidente que a fecundidade do apostolado, tanto dos ministros ordenados como dos leigos, depende da sua união vital com Cristo (cf Jo 15,5; AA 4). Segundo as vocações, as exigências dos tempos e os vários dons do Espírito Santo, o apostolado toma as formas mais diversas. Mas é sempre a caridade, haurida principalmente na Eucaristia, que é como que a alma de todo o apostolado.” (cf AA 3) – n.º 864.
E o Papa, como Sucessor de Pedro e Vigário de Cristo, é o princípio e fundamento perpétuo e visível da unidade, tanto dos bispos como da multidão de fiéis. É Pastor de toda a Igreja e tem poder/serviço pleno, supremo e universal. Por isso, também este é apontado como o dia do Sumo Pontífice e oportunidade de oração pelo Santo Padre e pela unidade dos cristãos.
Hoje o Papa abençoa e entrega os pálios (em 2015, Francisco deixou de impor o pálio nos ombros dos arcebispos, apenas o entrega), faixas de lã que simbolizam o vínculo dos arcebispos metropolitanos com o Sucessor de Pedro. Este ano, mercê da pandemia de covid-19, a missa papal foi acessível a um número reduzido de pessoas, pelo que os arcebispos não receberão o pálio, que apesar de benzido agora, ser-lhes-á entregue posteriormente.
A solenidade é também ocasião de praticar a virtude da caridade. Porém, por causa da covid-19, neste ano, a coleta mundial para o Óbolo de São Pedro, geralmente realizada no domingo mais próximo a São Pedro e São Paulo, foi adiada para 4 de outubro, dia de São Francisco de Assis, conforme anunciado por Matteo Bruni, porta-voz do Vaticano.
Conforme escreve o vaticanista Andrea Gagliarducci, da ACI Stampa, a prática do Óbolo é antiga: “Ao final do século VIII, os anglo-saxões, depois da sua conversão, sentiram-se tão ligados ao bispo de Roma que decidiram enviar, de maneira estável, uma contribuição anual ao Santo Padre”. Recebeu o nome de “Denarius Sancti Petri(Esmola a São Pedro) e a sua prática espalhou-se pela Europa ao longo dos séculos. Em 1871, o Papa Pio IX instituiu-a oficialmente.
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Em suma, se Pedro era a princípio o apóstolo dos circuncisos e Paulo o dos incircuncisos – duas vertentes da mesma missão –, Pedro continua o Chefe da Igreja e abre-se à universalidade ou catolicidade; e Paulo, como apóstolo dos gentios, nunca deixa de reconhecer tanto a validade como a insuficiência da narrativa veterotestamentária: encaminhamento pedagógico da Lei para Cristo, mas ineficácia salvífica das obras da Lei, pois a eficácia encontra-se só em Cristo.
2020.06.29 – Louro de Carvalho

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