sexta-feira, 5 de junho de 2020

É preciso que os pobres não venham a ficar mais pobres após a crise


Está a vulgarizar-se a “ideia de que, depois da crise, os pobres vão ficar mais pobres”, ideia que, segundo o Padre José Manuel Pereira de Almeida “tem de ser contrariada”.
Este padre médico, pároco de Santa Isabel, em Lisboa, vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa (UCP), secretário da Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade Humana e assistente eclesiástico da Comissão Nacional Justiça e Paz, fez esta e outras pertinentes declarações em entrevista à Renascença e à Ecclesia, publicada neste dia 5 de junho.
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Começou por enfatizar que o regresso à celebração com fiéis, em comunidade, “foi uma experiência esperada” e desejada e que “foi um grande entusiasmo”. Com a utilização do espaço público em frente da igreja paroquial de Santa Isabel, as pessoas que participavam habitualmente na missa puderam ir nos horários habituais “sem outras restrições”, pois, correspondendo aos dois metros à volta de cada pessoa ou família, a área disponível pode acolher “um número de pessoas maior do que as que habitualmente vêm a uma celebração grande em Santa Isabel, em que a igreja, que não é pequena, fica cheia”.
Crê que o confinamento enquanto tempo de ‘proximidade da distância’ (mormente pela capacidade de resposta da Igreja, com recurso a  transmissões online) nos trouxe muitos ensinamentos, embora ainda não nos tenhamos provavelmente dado conta de todos eles. Por conseguinte, na volta explícita à nova normalidade, as coisas não podem ser tal como eram dantes, sendo necessário que “haja coisas novas”. E exemplificou com “a valorização da Igreja doméstica” (tão enaltecida do ponto de vista teórico, mas pouco concretizada), pois a experiência celebrativa das famílias em casa “correu muito bem”. Porém, frisou que isto também apresenta “dificuldades”, sendo que a “relação em permanência de todos os membros da família” pode implicar “situações de conflito”. Mas, segundo o entrevistado, também “o conflito é chamado a ser lugar de crescimento de humanidade, de aprendizagem na resolução pacífica” dos problemas.
Pensa que os bispos “foram exemplares” no atinente à “relação com a autoridade de saúde”, tendo-se até antecipado a suspender as celebrações com a participação presencial dos fiéis a partir do terceiro domingo da Quaresma, “para que em Portugal, como tem sido até agora (…) haja um comportamento em que se procura cuidar dos mais vulneráveis da forma como temos sabido cuidar no Serviço Nacional de Saúde”. Adverte que, ao falar-se dos “mais vulneráveis, sob o ponto de vista de saúde”, impõe-se “recordar todas as situações em que os pobres ficaram mais pobres”, devendo-se “recorrer a todos os meios para ajudar”. E “os voluntários continuaram a sair à rua e a levar alimentos a quem mais precisava, para que a dificuldade por que passam seja minorada, tanto quanto de nós depende, e depende muito”.
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Tendo em conta que a crise social e económica se agravou com a pandemia, reconhece que também na sua paróquia os pedidos de ajuda aumentaram, não tanto do lado das “pessoas abrangidas pela conferência vicentina, que distribui os bens do Banco Alimentar e da comunidade, enquanto tal”, mas no âmbito do verificado pelo “grupo de proximidade”, o chamado “Família a família”, que “é outra componente da Cáritas paroquial” a apoiar “famílias insuspeitas de situação de carência”, a chamada habitualmente “pobreza envergonhada”. Ora, essas situações aumentaram em “mais de 50 por cento”.
Considerando que todas as instituições solidárias estão a receber mais pedidos de auxílio, sendo muitos de pessoas que sempre trabalharam, mas que agora, com a perda dos rendimentos, estão a pedir ajuda às instituições pela primeira vez, assente que isto é um desafio para as instituições católicas, crendo que “estamos capazes de responder”. E, acompanhando a Cáritas diocesana de Lisboa e a Cáritas Portuguesa, supõe que “os programas que entretanto foram desenvolvidos pretendem responder a essas necessidades”. Até verifica que as paróquias em Lisboa “têm procurado, tanto quanto delas depende, conseguir responder e deixando para uma segunda etapa o pedido de apoio à Cáritas do Patriarcado”. Coisa parecida sucede na Cáritas Portuguesa: “algumas Cáritas diocesanas ainda não se socorreram dos projetos existentes a nível nacional”. Assim, conclui que “há muito de subsidiariedade neste sistema”, o que “é sinal da vitalidade da proximidade e da solicitude”.
Sendo que nestes meses de pandemia se voltou a falar de ‘novos pobres’ e de ‘fome’ em vários setores e que voltou a haver barracas em Lisboa, entende que todos estamos conscientes de que “a situação não é fácil”, mas confia na “capacidade de mobilização dos serviços públicos”, na assunção “das responsabilidades públicas a este propósito, e também da comunidade cristã”.
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Quanto ao adiamento do Encontro Nacional da Pastoral Social para outubro de 2021, quando o seu agendamento estava feito para outubro deste ano, e as alternativas de reflexão que podem existir neste espaço de tempo, salienta o Ano Laudato Si’ proposto pelo Papa, dada a urgência de reflexão sobre as questões abordadas pela encíclica em torno do binómio: “ouvir e responder ao grito da terra” e “ouvir e responder ao grito dos pobres”. Considera que “as situações em que nos encontramos também permitem uma extensão da reflexão, com os meios informáticos, à distância, que temos ao dispor”. E aproveitou o ensejo para agradecer à Rádio Renascença a transmissão da Missa dominical das 11 horas, em Santa Isabel, desde o III domingo da Quaresma até ao domingo da Ascensão.
Concedendo que o ano especial Laudato Si’ se liga ao projeto sobre a Economia de Francisco, em que está envolvida a UCP, refere que esta universidade e as outras instituições que se mobilizaram em torno do tema “têm sido um lugar onde emerge a reflexão proposta pelo Papa: a Economia é para as pessoas e não para o lucro, portanto é preciso trazer as pessoas para o centro”, pois há que “perceber que as pessoas são mais importantes do que os números”. E, atendo-se à etimologia do termo “economia” (no grego “oíkos”, casa + “nómos”, lei) como “lei da casa”, diz que se deve conseguir que “as pessoas vivam melhor na casa comum que é a nossa”. Assim, no quadro deste “desafio permanente, em termos de outra maneira de entender a Economia”, frisa que “não estamos sozinhos”. Com efeito, 50 jovens “participam neste encontro de Assis” e que, mesmo depois de ter sido adiado, em março, têm continuado os seus encontros e a sua reflexão”, o que “tem sido muito oportuno”.
Interpelado na qualidade de assistente eclesiástico da Comissão Nacional Justiça e Paz, que em recente nota apelou à responsabilidade social das empresas no sentido de os dividendos e prémio empresariais serem canalizados para quem mais precisa, observou:
Essa foi uma das frases da mensagem, há coisas que podem ser legais, mas não legítimas, sob o ponto de vista ético. Esta ideia de que, depois da crise, os pobres vão ficar mais pobres tem de ser contrariada por todos os meios existentes. E há muitos modos de corrigir as desigualdades, para que o poço não se torne ainda mais fundo, como tudo indica.”.
Sobre a “indignação” face às notícias de “prémios de gestão ou distribuição de dividendos”, em particular no Novo Banco, em contraste com os sacrifícios que a nossa sociedade atravessa, destaca a necessidade de “uma formação ética mais aprofundada” na sociedade em geral, pois, se nos deixarmos “contagiar” pelo indiferentismo no modo de encarar as coisas, “corremos o risco de nos habituarmos à ideia de que as coisas são como são”. E, a este respeito, desenvolve com notável pertinência:
Elas só são como são se nós não fizermos diferente, se não procurarmos esta árdua tarefa de ler a realidade e de a confrontarmos com o que é desejável, o que é preferível, no que diz respeito a sermos verdadeiramente atentos ao bem do outro, porque é bem e não porque eu ganho alguma coisa com isso. É uma formação que se tem de fazer, desde a mais tenra idade.”.
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Por fim, é abordado o posicionamento da Igreja face aos desafios que a atual situação lhe trouxe em termos de pastoral social e de acompanhamento espiritual, com relevo para as muitas restrições nos velórios e funerais, o que deixou muitas feridas abertas neste campo. E à questão se a Igreja podia ter feito mais para acompanhar as pessoas nestes momentos difíceis, o entrevistado limita-se a falar da sua experiência pessoal, referindo que, do seu ponto de vista, “as coisas correram da melhor maneira possível”. Com efeito, “eram poucas pessoas”, mas nunca deixou de as acompanhar, “nunca se deixou de poder celebrar a vida, tão ameaçada nestes tempos”, mas assenta em que “a saudade tem menos espaço para se poder exprimir, por trás de máscaras”. Não obstante, pressupõe que “vamos aprendendo o tipo de explicitação dos nossos sentimentos e da partilha das nossas emoções”. Todavia, confessa que sabe de “famílias muito feridas, com situações mais assépticas, quase de comportamentos cristalizados”, mas assegura que não foi essa a “experiência em Santa Isabel”.
Em relação à existência de muitas pessoas que ainda não encontraram um sentido para o que está a acontecer, visto que estamos perante uma crise económica, mas também espiritual, de sentido e de esperança, diz que muitas pessoas vivem nesta situação crítica. Por isso, é preciso “acompanhamento, não para ensinar quem não sabe – como se nós soubéssemos –, mas para aprendermos uns dos outros como se faz este caminho, no meio da incerteza”.
E diz o Padre José Manuel Pereira de Almeida que, neste campo,a Igreja Católica tem um lugar, fundamentalmente de cuidado, do acolhimento, do não julgar, do partir, com confiança”, pois a confiança “está na base da nossa experiência de fé”.
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Em suma, há que repensar o ser e agir da Igreja, nomeadamente a forma de celebrar, comunicar com as pessoas, acompanhá-las, nem sempre sob a forma de mestria, mas de aprendizagem conjunta na forma de enfrentar as crises multiformes, equacionar o seu papel na sociedade atual gerando humanidade e lutando pela melhoria de condições de vida das pessoas de modo que ninguém fique para trás nesta rota humana de peregrinos em que, por vezes, a poeira nem deixa ver o caminho, quanto mais a necessidade de acompanhar o outro e de cuidar dele.
Que o Espírito continue a falar à Igreja para que ela saiba, ouça, ensine e faça!
2020.06.05 – Louro de Carvalho    

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