quinta-feira, 25 de junho de 2020

Testes e jovens não justificam recrudescimento de covid-19


Tanto o Primeiro-Ministro como o Presidente da República têm mostrado o seu claro desagrado perante os comportamentos dos mais jovens, apontando-os como uma das fortes justificações para o aumento do número de novos casos de covid-19, especialmente na região de Lisboa e Vale do Tejo, e têm enfatizado o papel da testagem nos números totais, pois, quanto mais se puder testar, mais casos encontrarão. E este é o argumento que o Governo, a diversas vozes, tem usado para criticar as reservas levantadas por outros países europeus.
Pelos vistos, os especialistas não sustentam tal postura. Como adianta o jornal Observador, as teses apresentadas por Costa e Marcelo foram contrariadas na reunião do dia 24 na sede do Infarmed, em Lisboa. Baltazar Nunes, epidemiologista do Instituto Nacional de Saúde Pública (INSA), e Rita Sá Machado, da Direção-Geral de Saúde (DGS), “desconstruíram o argumento dos testes” e alertaram para o facto de o problema ser real. Com efeito, embora o país esteja a testar mais, ocupando o nono lugar do top de testes feitos por milhão de habitantes, essa não será a grande razão para o crescente aparecimento de novos casos confirmados de infeção. Haverá outros fatores a ter em conta, designadamente “o número de testes positivos por teste realizado”, caso em que a nossa “taxa de positivos é muito elevada” – por cada 28 testes realizados Portugal regista um caso positivo –, ficando atrás de Portugal apenas a Bulgária e a Suécia, no contexto da UE a 27. E não pode diminuir-se a capacidade de testagem.
Quanto aos jovens, não existem sinais relativamente a contágio mais elevado junto deste grupo etário, sendo a única exceção conhecida a festa de Lagos, onde a maioria dos infectados é jovem – totalizando já mais de 100 infetados.
Também as festas e ajuntamentos não serão o maior problema. Dificilmente as festas ilegais – que levaram o Governo a prometer mão pesada para os prevaricadores – podem ser usadas como catalisadores determinantes. Na verdade, o primeiro fator de contágio em Lisboa tem sido a coabitação; o segundo, o contexto laboral; e o terceiro, o contexto social, nomeadamente aquele em que vivem os doentes. Nas freguesias da Grande Lisboa assinaladas pelas autoridades, o mais lógico, como assumiram os especialistas, é que o aumento de casos esteja relacionado com as condições de habitação e de trabalho.
Posto isto e desconstruídos os argumentos, os especialistas alertam para uma possível segunda vaga, que pode ter Lisboa como epicentro. Existe já pressão sobre os hospitais, mas, por exemplo, o Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central, só tem uma taxa de ocupação de 25% para doentes de covid-19, pelo que há margem de resposta.
O problema é real, pois o número médio de internados aumentou, o número de pessoas em cuidados intensivos e continua a haver pessoas que morrem.
Em termos globais, o R situa-se em 1,08, com algumas variações, o que, isoladamente, não seria fator alarmante. Porém, os técnicos de saúde ouvidos pelo Governo e pelos líderes partidários não souberam avançar com explicações concretas sobre o aumento de contágios registado.
Parece que a predita reunião, supostamente de técnicos que os políticos quereriam ouvir para sustentar a tomada de medidas política e diplomáticas, mostrou o começo dum novo momento político: a pandemia e os dados a ela inerentes passaram a ser motivo de luta partidária. Com efeito, PSD, CDS, Bloco e PAN fizeram críticas no final, com um discurso sobre o conteúdo da reunião de tom diferente do discurso presidencial. E Marcelo Rebelo de Sousa manteve a linha que traçou, sem descolar do Governo, pois a tese que prevalece em Belém é a de que no topo do poder não pode haver divergências públicas sobre a pandemia.
Segundo os observadores, ainda que de forma elegante, “os especialistas acabaram por desmentir o Primeiro-Ministro”, que “tentou colocar a hipótese, de forma quase afirmativa” no aumento da nossa capacidade de testagem. Porém, houve um dado assumido pelos epidemiologistas: a diminuição do número de testes nos últimos 15 dias, atribuída ao período dos feriados e a reforçar a notícia avançada, no dia 23, pelo Jornal de Negócios: de acordo com os dados oficiais divulgados pelas autoridades de saúde, o número médio de testes de diagnóstico de covid-19 realizados diariamente caiu 24% desde o início da reabertura da economia, a 4 de maio. Por outro lado, Portugal está, de momento, a fazer em média um teste por cada mil habitantes, mas a 18 de maio estava a fazer 1,5 testes por cada mil habitantes.
E António Costa mostrou desagrado com a falta de dados disponíveis e criticou a informação sobre testagem, nomeadamente o facto de o INSA só compilar dados do SNS e não dos laboratórios privados – a que muitas empresas, sobretudo de construção civil, têm recorrido (e que o fazem num sentido de cooperação com a saúde pública).
Marcelo Rebelo de Sousa tentou, à saída da reunião, desdramatizar a situação. Não só garantiu que a situação estava controlada, como justificou o número de infetados com o aumento de testes e assegurou que “temos adotado a metodologia da verdade”, sem ocultar números. Na reunião, o Presidente tinha perguntado se os novos casos podem ser de população trabalhadora que nunca chegou a confinar e se a situação só se conheceu por causa dos testes entretanto realizados. Costa acompanhou a ideia do Presidente, mas aduziu que só com mais estudos será possível apurar melhor o que se passou.
Acabada a reunião, Ricardo Baptista Leite (PSD), Moisés Ferreira (BE) e Francisco Rodrigues dos Santos (CDS) alinharam pela explicação dos especialistas: o aumento de testes não justifica por si o fenómeno que se regista em Lisboa e Vale do Tejo, sendo de reconhecer o problema e adotar medidas para travar um aumento exponencial de casos. Por seu turno, PAN, Verdes, Iniciativa Liberal e Chega limitaram-se a tecer críticas ao Governo.
O Chefe de Estado expôs a intenção de articular o discurso público e todos concordaram com a hipótese de se afinar a articulação do discurso político com marketing social para passar mensagens à população ou subpopulações tendo em conta fatores específicos.
Manuel Carmo Gomes, professor de Epidemiologia da Universidade de Lisboa e conselheiro de Costa, prefere medidas gerais como mais ineficazes às mais direcionadas. E o Primeiro-Ministro pediu explicações concretas sobre o surto, não se tendo avançado com medidas concretas.
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Cientistas, na incerteza, dividem-se nas asserções; políticos (que devem e querem ouvir os especialistas) têm dificuldade em acertar nas medidas e, permeáveis a pressões dos agentes económicos, mas defensores da saúde, oscilam entre avanços e recuos e insistem nas suas teses. As conferências de imprensa diárias desacreditaram-se, os dados diários de infetados por município foram estigmatizantes e os números atinentes a aumentos de casos do dia anterior (e não dum conjunto de dias anteriores) geraram alarmismos. Os avanços na testagem viram-se contra o país; os critérios devem incidir sobre mortos, internados em UCI, internados, infetados e recuperados. 
E a diplomacia não fez o seu papel de explicação. Ainda vai a tempo, mas não com futebóis!
2020.06.25 – Louro de Carvalho

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