No XII domingo do Tempo Comum, 23 de junho, às 18 horas, horário de Roma, o Papa Francisco
celebrou a Missa de Corpus Christi
no adro da Igreja de Santa Maria Consoladora, no bairro de Casal
Bertone, zona leste de Roma, em cuja homilia acentuou que “o nosso
pouco é sempre tanto aos olhos de Jesus, se não o guardarmos para nós e o
colocarmos em jogo”, e que nunca estaremos sozinhos com “bênção e partilha”. E, após a Celebração
Eucarística, encabeçou a procissão com o Santíssimo Sacramento pelas ruas do
bairro e lançou a bênção eucarística à multidão em testemunho público da presença
bendizente e benfazeja da presença real de Jesus na Santa Eucaristia para a alimentação
espiritual dos crentes e incremento da edificação e cimentação da Igreja.
Comentando
as leituras, destacou dois verbos, por si considerados simples e essenciais
para a vida de cada dia: dizer e dar.
Começou por
se referir ao relato da Génesis (Gn14,18-20) e ao “dizer” de Melquisedeque, sacerdote e rei de Salém, que se exprimiu
perante Abraão nestes termos: “Abençoado
seja Abrão pelo Deus Altíssimo, e bendito seja o Deus Altíssimo”. Por isso,
aquele não é um dizer qualquer, mas um dizer de bênção e paz, falado,
proclamado, pedido a Deus, desejado para os homens com cuja sorte se há de
preocupar e comprometer o sacerdote, o patriarca, o profeta, o apóstolo, o
pastor. É um dizer bem, dizer o bem e promover o bem de todos e de cada um. Ou
seja, Melquisedeque, como Jesus o fará, transforma a palavra em dom, em Dom de
Deus, derramado para salvação do mundo.
Depois,
Francisco vincou que “tudo parte da bênção” e que “as palavras de bem geram uma
história de bem”. E, reportando-se à perícopa evangélica proclamada naquela
celebração (Lc
9,11b-17), referiu
que Jesus, “antes de multiplicar os pães”, os
tomou (eram apenas
cinco), “ergueu os olhos ao Céu,
pronunciou sobre eles a bênção, partiu-os e foi-os dando aos discípulos”. E,
este erguer dos olhos para o Céu, para Deus seu Pai, gera o movimento de bênção
que “faz alimento para uma multidão”, ou seja, a bênção desencadeia “uma
cascata de bem”.
São estas
marcas de olhos levantados ao Céu, de bênção, de partir, de distribuir o pão – a
partilha alongada e sem limites – que enformam celebração da Eucaristia, a
qual, por sua vez, gera estas mesmas marcas na Igreja de discípulos, que nelas reconhece
a presença de Cristo.
A palavra
pronunciada com boa-fé, a que hoje os ocidentais conferem pouca relevância,
sendo palavra de bênção, tem muita força, desperta energias inenarráveis (mais do que
a força de la Parole saussuriana) e transforma a palavra em dom. Assim, abençoar
equivale a fazer bem e a fazer o bem (bene et bonum) por parte de quem quer ser bom, pois, como disse o
Papa, “quando se abençoa, não se está a
fazer uma coisa para si mesmo, mas para os outros”, mesmo que não peçam a
bênção ou não a mereçam: a bênção é
carismática. Nestes termos, é de convir que “abençoar não é dizer palavras bonitas, nem usar palavras de
circunstância, mas é dizer bem, dizer com amor” e comprometer-se na vida com
a coerência que daí decorre. Na verdade, a bênção deve fecundar a vida, que
deve ser fator e expressão e de bênção.
Ora, tal
como Melquisedeque, por sua iniciativa, “diz bem de Abrão, sem que este tenha
dito ou feito algo por ele”, também Jesus, mostrou “o significado da bênção com
a distribuição gratuita dos pães”, sem que alguém se tenha queixado de fome ou
lhe tenha pedido de comer. Provavelmente nem sequer sabiam do seu poder e da
sua disponibilidade para dar de comer.
E o
Pontífice, em tom exclamatório, faz menção de momentos de bênção entre
nós:
“Quantas vezes fomos abençoados, também nós, na igreja ou nas nossas
casas! Quantas vezes recebemos palavras que nos fizeram bem, ou um sinal da
cruz na fronte! Fomos abençoados no dia do Batismo e, no final de cada Missa,
somos abençoados. A Eucaristia é uma escola de bênção. Deus diz bem de nós,
seus filhos amados, encorajando-nos assim a continuar. E nós bendizemos a Deus
nas nossas assembleias (cf Sl 68,27), reencontrando o gosto do louvor, que
liberta e cura o coração. Vimos à Missa com a certeza de sermos abençoados pelo
Senhor, e saímos para, por nossa vez, abençoarmos, para sermos canais de bem no
mundo.”.
Depois, exorta
os Pastores a que se lembrem de abençoar o povo de Deus e que não tenham medo
de abençoar, justificando com o desejo de Deus de “dizer bem do seu povo” e com o facto de ficar “feliz em fazer-nos sentir o seu carinho por nós”. Por outro lado, o
Senhor quer que este seu desejo e esta felicidade tenham larga replicação por
parte dos pastores com o povo e dos membros do povo de Deus uns para com os
outros. Contudo, o Papa alerta para a necessidade de nos sentirmos abençoados,
porque “só depois de abençoados é que podemos abençoar os outros com a mesma
unção de amor”; e lamenta o alastramento da cultura da maldição:
“É triste ver hoje quão facilmente se amaldiçoa, despreza, insulta.
Assaltados por demasiado frenesi, não nos contemos, desafogando a raiva sobre
tudo e todos. Muitas vezes, infelizmente, é quem grita mais e mais forte, é
quem está mais irritado que parece ter razão e obter consensos.”.
Por isso,
exorta, a partir da Eucaristia, que contém a totalidade de Cristo em doação e
da Igreja:
“Não nos deixemos contagiar pela arrogância, não nos deixemos invadir
pela amargura, nós que comemos o Pão que em si contém toda a doçura. O povo de
Deus ama o louvor, não vive de lamentações; está feito para a bênção, não para
a lamentação. Diante da Eucaristia, de Jesus que Se fez Pão, deste Pão humilde
que contém a totalidade da Igreja, aprendamos a bendizer o que temos, a louvar
a Deus, a abençoar e não a amaldiçoar o nosso passado, a dar boas palavras aos
outros.”.
***
Na segunda
parte da homilia, o Santo Padre faz ressaltar o verbo “dar”. De facto, Abrão,
que nada pedira, ao ser abençoado pelo sacerdote e rei de Salém, e, sentindo-se
abençoado, sem que este lho pedisse, compreendeu que tinha a obrigação de “dar”
e “deu-lhe o dízimo de tudo”.
Também Jesus,
depois de o abençoar, deu o pão para ser distribuído, ensinando que “o pão não é apenas produto de consumo, mas
recurso de partilha”. E é de anotar que a narração da multiplicação dos
pães não fala em multiplicar, mas em “partir,
dar, distribuir” (cf Lc 9,16). Assim, a partilha
eclipsa a multiplicação. Não se trata de magia, mas de “confiança em Deus e na
sua providência”. Com efeito, “Jesus
reza, abençoa os cinco pães e começa a parti-los, confiando no Pai e não se
esgotam mais aqueles cinco pães”.
É uma cena
que deve ser encarada como lição a aprender e assumir neste mundo que procura “sempre
aumentar os lucros, aumentar o volume de negócios”, mas não para fazer crescer
o dar, mas para aumentar o ter, para acumular e não para partilhar. Ora, como
diz o Papa Bergoglio, “a ‘economia’ do Evangelho” que “multiplica partilhando,
alimenta distribuindo”, não pode satisfazer, não é para satisfazer, nem
satisfaz “a voracidade de poucos, mas dá vida ao mundo” (cf Jo 6, 33). Na verdade, “o verbo de Jesus não é ter, mas dar”.
Trata-se de um verbo que assume Ele para Si e que prescreve categoricamente aos
discípulos. A ordem “Dai-lhes vós de
comer” (Lc 9,13) ressoa nos
dias de hoje no coração da Igreja como um mandato imperativo a ter em conta na
essencialidade da sua missão.
Entretanto,
Francisco detém-se a fazer-nos imaginar os raciocínios que terão feito os
discípulos:
“Não temos pão para nós, e devemos pensar nos outros? Porque devemos
dar-lhes de comer, se eles vieram para escutar o nosso Mestre? Se não trouxeram
comida, voltem para casa, ou então deem-nos dinheiro e nós compraremos.”.
Não são
raciocínios errados, “mas não são os de Jesus”, que não ouve as razões dos
discípulos. Com efeito, como diz o Papa, “o que temos só produz fruto se o
dermos”, não importando “se é pouco ou muito”, pois o Senhor faz grandes coisas
com o nosso pouquinho”. E o Papa vinca:
“Ele não realiza prodígios com ações espetaculares, mas com coisas
humildes, partindo com as mãos, dando, distribuindo, partilhando. A
omnipotência de Deus é humilde, feita apenas de amor; e o amor faz grandes
coisas com as coisas pequenas. Assim no-lo ensina a Eucaristia: n’Ela, está
Deus encerrado num bocado de pão. Simples e essencial, pão partido e
partilhado, a Eucaristia que recebemos transmite-nos a mentalidade de Deus. E
leva a darmo-nos, a nós mesmos, aos outros. É antídoto contra afirmações como ‘lamento,
mas não me diz respeito’, ‘não tenho tempo, não posso, não é da minha conta’.”.
Não
esquecendo a “cidade faminta de amor e solicitude”, palco de “degradação e
abandono”, com “tantos idosos sozinhos, famílias em dificuldade, jovens que
dificilmente conseguem ganhar o pão e alimentar os seus sonhos”, o Pontífice
personaliza em cada um de nós as palavras do Senhor “Dai-lhes vós de comer”, não valendo retorquir: ‘Tenho pouco, não
sou capaz’. A este respeito, Francisco sentencia: “O teu pouco é tanto aos olhos de Jesus, se não o guardares para ti, mas
o colocares em jogo; e não estás sozinho: tens a Eucaristia, o Pão do caminho,
o Pão de Jesus”.
***
É curioso
que o Papa não destacou nem parece ter valorizado muito o verbo “receber”. Não
obstante e embora se diga que vale mais dar do que receber, receber constitui
um ato de humildade e de aceitação. Faz parte da relação. Quem está em
comunidade, tanto deve estar disponível para dar como para receber. Abrão não
pediu nada a Melquisedeque, mas aceitou, recebeu a bênção e a paz que ele lhe
trouxe. Imagine-se quão desolador seria se Abrão retorquisse a dizer que não
queria a paz e a bênção ou quão desconcertante seria se Melquisedeque não
aceitasse os dízimos que Abrão lhe ofereceu. Imagine-se que a multidão se
levantava em peso a dizer que não queria o pão e o peixe que Jesus mandou
distribuir por todos, porque nada lhe fora pedido, não tinha que se incomodar,
eles não precisavam…
Admitamos
que Jesus, porque os discípulos só tinham cinco pães e dois peixes, não acolhia
o que os discípulos podiam disponibilizar. Ele bem podia prescindir daquilo:
era pouco e Ele bem podia fazer tudo do nada. Mas Jesus não pensa assim. O
pouco que temos é muito se disponibilizado à bênção e à partilha. Ademais, um benefício
de Deus não se pode recusar, como não é lícito rejeitar o que o irmão nos
oferece com amor. Veja-se a reação de Pedro, que não queria que o Mestre lhe
lavasse os pés e como Jesus o repreende: “se não te lavar os pés, não terás
parte comigo” (cf Jo 13,3-10).
Em suma,
dizer e abençoar, distribuir e partilhar, de que faz parte o dar e o receber, e
entrar em sintonia e comunhão são elementos constitutivos da relação, ao passo
que silenciar-se e silenciar, amaldiçoar-se e amaldiçoar, arrecadar
egoisticamente e isolar ou isolar-se são fatores de morte da relação, da
comunhão, da união. E a noção funda de pertença à comunidade referenciada a
Cristo e à Igreja, enquanto espelho da magnanimidade e longanimidade do nosso
Deus, dá aos crentes a alegria de receber e de dar, tudo no ambiente de bênção
e adoração e no propósito de testemunho.
***
Nesse sentido,
o Papa enalteceu o alimento de que os fiéis iam desfrutar naquela tarde, o
Corpo de Cristo entregue, sentindo-se “abençoados e amados” e com a “vontade de
abençoar e amar”, prerrogativa de que dão testemunho nas ruas da cidade acompanhando
o Senhor da hóstia que “diz bem” de nós, nos abençoa e nos dá coragem, mas que,
ao mesmo tempo, nos pede que sejamos também “bênção e dom” numa Igreja forte, disponível
em saída em prol dos pobres e deserdados da sorte.
2019.06.24 – Louro de Carvalho
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