Passei,
há dias, por uma determinada cidade e entrei num café. Pedi um croissant e uma água ao natural sem gás.
Paguei, comi e bebi. Depois, fui à casa de banho e vi o aviso: “Estas instalações sanitárias são
disponibilizadas só para os nossos clientes exclusivos”. Obviamente,
hesitei. Não sou cliente exclusivo daquela casa: sou cliente de muitas outras.
Porém, lá entendi que o gerente queria explicar que aquelas instalações
sanitárias eram disponibilizadas exclusivamente para os clientes, ou seja, não
é possível, chegar lá uma pessoa e ir à casa de banho sem que pretenda fazer
qualquer aquisição de bens consumíveis.
Lembrei-me
de que, no tempo de estudante em Lamego, havia lá uma casa que tinha o
frontispício com o seguinte adorno “Fabrico
de calçado manual”. Ora, calçado manual são-no, por exemplo as luvas ou as
quirotecas (luvas que os bispos usavam nas mãos nos Pontificais,
tal como usavam nos pés as cáligas),
mas a predita casa de Lamego, pelos vistos, fabricava manualmente o calçado,
tendo, pois, este um fabrico manual. Assim, o adorno do frontispício devia
rezar: “Fabrico manual de calçado”.
Em 1997,
na predita cidade onde passei há dias, entrei num café e, após o lanche na
companhia de pessoa distinta, fui às instalações sanitárias e, depois de
entrar, vi um aviso que dizia: “Só pode
utilizar estas instalações sanitárias quem se comprometer a consumir o produto”.
Livra!
Como é
óbvio, estamos em presença de situações de “ambiguidade” ou “anfibologia”, vício de linguagem de que emerge duplicidade de sentido em palavras ou expressões
textuais, bem como na ordem transposta das palavras na frase. Neste último
caso, recordo o exemplo do miúdo que, no tempo dos tostões, foi à farmácia e
pediu: “Senhor Santos, dê-me dez tostões de
aguardente prà minha mãe canforada que partiu uma perna dentro desta garrafa
por favor”. Quer dizer que o miúdo queria que o farmacêutico, por favor,
lhe pusesse naquela garrafa dez tostões de aguardente canforada para a mãe, que
partiu uma perna.
A ambiguidade é um vício parente da confusão, que resulta da
utilização de palavras inadequadas ao que se quer exprimir ou da incorreta
pontuação e/ou acentuação ou, no discurso oral, na falta ou excesso de pausas
ou inadequada entoação da frase. Por isso, o
seu uso não é recomendado em casos de escrita mais objetiva, em textos
informativos e em redação de cunho científico ou técnico. Não obstante, é alternativa linguística admissível na linguagem coloquial,
na linguagem literária, sobretudo na que reproduz o discurso falado, e em contexto
poético.
Camões, na dedicatória da sua epopeia a Dom Sebastião,
aconselhava:
Os olhos da
real benignidade
Ponde no
chão: vereis um novo exemplo
De amor dos
pátrios feitos valerosos,
Em versos divulgado numerosos.
Os exemplos
são mais que muitos: “A menina disse à colega que sua mãe havia chegado”. Quem chegou: a mãe da menina ou a mãe da colega? “O atleta conversou com o
treinador caído no chão”. Quem está caído: o atleta ou o treinador? “Espantaram o cão do meu primo”. Quem foi espantado: o cão animal ou o
primo que está a ser chamado cão? “Há pentes para senhoras de osso! Vendem-se
chapéus para homens de palha! Fazem-se amuletos para homens e mulheres de
chifre!” Obviamente, que de osso são os pentes, não as senhoras; de palha são
os chapéus, não os homens; e de chifre são os amuletos, não os homens ou as
mulheres.
***
Etimologicamente, o vocábulo “ambiguidade” tem origem no termo
latino “ambiguitas” que significa
equívoco, incerteza, obscuridade, rodeio. É cognato de “ambio”, que se compõe
de “amb” (radical
de “ambo, ae, o” – um e outro; os dois ao mesmo tempo) + “eo” (vou) e significa: ando em volta,
rodeio, cerco, procuro obter, disputo, solicito, peço o voto, ambiciono. Temos:
“ambi” como primeiro elemento de palavras compostas (a significar de cada lado, em
volta); “ambadedo”, roo em volta,
como; “ambages, um” (plural),
rodeios; “ambagiosus, a, um”, cheio de obscuridades ou digressões; “ambago,
inis”, rodeio; “ambarvalis, e”, que é levado em roda dos campos (antes de ser imolado –
relacionado com as “ambarvalia, ium”, festas em honra de Ceres); “ambecisus, us”, corte em
roda; “ambedo”, como em roda; “ambestrix, icis”, devoradora; “ambesus, a, um”,
roído em volta, rasgado; “ambidens, entis”, ovelha que tem dois dentes em cada
maxilar; “ambiegena, ae” e “ambegena, ae”, vítima acompanhada de dois
cordeiros, ovelha que pariu dois cordeiros gémeos; “ambie” e “ambiter”,
avidamente, com zelo; “ambifarius, a, um”, ambíguo, de dois sentidos;
“ambifariam” e “ambifarie”, de dois modos, ambiguamente; “ambiformiter”,
ambiguamente, de modo equívoco; “ambigenter”, com indecisão; “ambigo”, duvido,
hesito, disputo, impilo para os dois lados, ponho nos pratos da balança;
“ambigue” e “ambiguo”, ambiguamente, de modo duvidoso, com resultado duvidoso;
“ambiguus, a, um”, ambíguo, de dois sentidos, duvidoso, incerto, variável,
perigoso, pérfido, contrário; “ambiguum, i”, dúvida, incerteza, perigo;
“ambitio, onis”, ação de rodear, ambição, pretensão, solicitação, lisonja,
desejo de agradar, ostentação, dignidade, categoria; “ambitiose”, com afetação,
com ostentação, com lisonja, com solicitação; “ambitiosus, a, um”, ambicioso,
intrigante, pretendente, que rodeia, que faz um circuito, faustoso, cheio de ostentação,
que procura agradar, que deseja ser solicitado; “ambitor, oris”, candidato; “ambitudo,
inis”, circuito; “ambitus, a, um”, rodeado, solicitado, cortejado, disputado; “ambitus,
us”, caminho em volta de, circuito, período, circunlóquio, ambição, pretensão, disputa
legal de cargo público, tentativa de corrupção, fausto, ostentação.
A anfibologia, que é
considerada sinónimo de ambiguidade, tem significado semelhante. A palavra vem
do grego “amphibolia” (de amphi
– ao redor, à volta, à volta de, sobre, entre, ao redor de, por causa de + bolia,
de bállô – atiro, coloco, deito por terra, deixo, faço cair, lanço, ponho;
lanço-me), que
significava: ataque dos dois lados ao mesmo tempo, equívoco, duplo sentido, dúvida,
incerteza. Desta formou-se
“amphibologia”, que quer dizer “duplicidade
de sentido”.
Porque um excursus
no grego semelhante ao do latim seria excessivamente longo, devo referir que o dicionário
de Isidro Pereira, SJ dedica mais de 150 entradas a palavras cognatas de “amphibolia”, sendo a primeira destas palavras (depois dos elementos “amph”, “amphí” a “anaph” – ao
redor, à volta) “amphagapázô (rodeio de
afeto, trato com afeto, recebo com afeto) e as últimas “amphoudís” (levantado da terra por ambos os lados ou por ambos
os pés), “ámphô” (ambos), “amphôbolos, on” (de duas pontas) e “ámphôtos, on” (de duas orelhas, de dupla asa). Entretanto, destaque-se “amphibállô”,
envolver, atacar, lançar ao redor; e “amphíbolos, on”, rodeado, atacado por
dois lados, ambíguo, equívoco, duvidoso, incerto.
***
Para entender a entrada da ambiguidade no quadro dos vícios
de linguagem, é preciso ter em conta o alcance desta classificação. Os vícios
de linguagem são formações textuais, sentenças ou orações, que fogem da
normatização gramatical e/ou sintática da língua. Regra geral, ocorrem por via
do desconhecimento das normas linguísticas ou por falta de atenção.
Como alguns dos exemplos acima apresentados, os seguintes mostram como a ambiguidade pode
induzir o mau entendimento ou a duplicidade de interpretação da mensagem:
“A cachorra da minha tia está na
rua”. É o animal que está na rua ou a tia que pelo designativo do animal? “O
miúdo olhou o pai deitado na cama”. Quem está na cama: o miúdo ou o pai?
Nestes exemplos, vemos que as frases deixam dúvidas quanto à
entidade em referência. Mas há outros casos de ambiguidade. A ambiguidade não
ocorre sempre da mesma forma e num mesmo contexto. Ela pode ocorrer quando
várias interpretações decorrem da estrutura da frase.
Vejamos casos e exemplos de ambiguidade em modalidades e contextos diferentes.
A “ambiguidade
sintática” surge
quando a frase não e bem estruturada. Exemplos:“Ouvi falar da festa no restaurante”. Falou-se da
festa que houve no restaurante ou, no restaurante (quando eu lá
estava), falou-se da festa?
A “ambiguidade
lexical” ocorre com palavras que possuem vários sentidos. Exemplos:
O uso indevido de determinantes
possessivos. Em vez de “A mãe pediu à filha que arrumasse o seu
quarto”, deveria dizer-se “A mãe pediu à
filha que arrumasse o próprio quarto”.
A colocação inadequada das
palavras ou o uso incorreto da ordem transposta. Em vez de “A criança feliz foi ao parque”, deveria dizer se “Feliz, a criança foi ao parque”.
O uso de forma indistinta entre o
pronome relativo e a conjunção subordinativa integrante. Em vez de “A estudante falou com o garoto que estudava
enfermagem”, deveria dizer-se “A
estudante de enfermagem falou com o garoto” ou “A estudante falou com o garoto sobre o curso de enfermagem”.
O uso indevido de formas nominais. Em vez da
frase “A rapariga reconheceu a amiga
frequentando a academia”, deveria dizer-se “A rapariga reconheceu a amiga que estava frequentando a academia”
ou “A rapariga, na academia, reconheceu a
amiga”.
“A
vaca diverte-se com a pata na lama”. A
palavra “pata” se refere à pata-animal ou à pata-pé de vaca? “O pato é o único
animal que faz os filhos com a pata”. Entende-se a pata como a fêmea do pato.
Mas na questão “quantas patas tem um casal de patos?”, com a resposta “Cinco”,
temos a palavra “pata” entendida como pé de pato ou de pata e como fêmea do
pato.
“Os rapazes jogam futebol no
campo”. A palavra campo pode referir-se ao campo como o retângulo onde se joga
futebol ou ao campo como zona rural.
“Cortaram a rede”. “Rede” pode
entender-se como vedação, conexão à Internet, estrutura para dormir, rede
elétrica ou rede de colaboradores, de empresas, de distribuição, etc.
“A menina estava perto do banco”.
“Banco” pode ser banco da praça, da casa, ou instituição financeira.
A ambiguidade, ao contrário das figuras de linguagem, que são ferramentas à disposição do
usuário da língua e dão realce e beleza às mensagens emitidas, integra o grupo
dos vícios de linguagem, a par do pleonasmo
vicioso ou redundância (repetição desnecessária duma informação
na frase – v.g: Hoje fizeram-me uma surpresa inesperada); do barbarismo (desvio
da norma ao nível da pronúncia silabada – erro da pronúncia do acento
tónico, v.g: rúbrica em vez de
rubrica; cacoépia, erro na pronúncia dos fonemas, v.g: poblemas em vez de problemas; e cacografia, erro
na grafia ou na flexão duma palavra v.g: o segurança deteu aquele homem, em vez de “deteve”; da morfologia, v.g:
“se eu ir aí, vou me atrasar”, em vez de
“for”; e da semântica, v.g: “José comprimentou seu vizinho ao sair de casa”, em
vez de “cumprimentou”);
do estrangeirismo (o emprego desnecessário de palavras
estrangeiras, ou seja, quando há palavra ou expressão correspondente na língua,
v.g: “O show é hoje!”, em vez de
“espetáculo”; “Vamos tomar um drink?”,
em vez de “bebida”); e
do solecismo (desvio de sintaxe, podendo ocorrer nos
seguintes níveis: concordância, v.g: “Haviam muitos alunos naquela sala”, em vez de “havia”;
da regência, v.g: “Eu assisti o filme
em casa”, em vez de “ao”; e da colocação, v.g: “Dancei tanto na festa que não
aguentei-me em pé”, em vez de “não me aguentei em pé”).
A inadequação
ou má colocação de elementos como pronomes, advérbios e expressões adverbiais,
ouras expressões e mesmo enunciados inteiros podem acarretar duplo sentido,
comprometendo a clareza do texto. Na publicidade, observamos o uso e o abuso da
linguagem plurissignificante, por meio dos trocadilhos e jogos de palavras,
para chamar a atenção do interlocutor para a mensagem. Caso o autor não se
julgue preparado para utilizar corretamente a ambiguidade, é preferível uma
linguagem mais objetiva, com expressões e vocábulos mais adequados às
finalidades requeridas.
Os tipos
comuns de ambiguidade, como vício de linguagem são:
Em vez de “Vi o João a andar no seu carro”,
dirigindo-se a um interlocutor que se trata por você, deveria dizer-se “Vi o João a andar no carro dele”.
O não uso correto da pontuação
ou, no discurso oral, a falta de pausas e a incorreta entoação. Ex.: “Um caçador tinha um cão e a mãe do caçador era também o pai do cão”
merece o seguinte esclarecimento pela pontuação/entoação: “Um caçador tinha um cão e a mãe. Do caçador era também o pai do cão”.
E “Maria toma banho porque sua mãe disse
ela pegue a toalha” merece o mesmo esclarecimento: “Maria toma banho porque sua. Mãe, disse ela, pegue a toalha”. Mas
há mais exemplos: “Morra Salazar não faz
falta à nação” – dizia o rebelde. Mas quando o iam a manietar e lhe diziam
que ofendeu o Presidente do Conselho, retorquiu: “Não. Eu disse. Morra Salazar? Não. Faz falta à nação!”.
Ou, quando era acoimado o herege por relatar um alegado passo do Evangelho “Jesus está aí não ressuscitou”,
esclareceu que dissera: “Jesus está aí?
Não. Ressuscitou.” E não o que os esbirros pensavam: “Jesus está aí. Não ressuscitou”. E, em “Se a mulher soubesse o valor que tem o homem rastejaria à sua volta”.
Com desprimor pelo verbo rastejar, deve distinguir-se entre: “Se a mulher soubesse o valor que (ela) tem, o homem rastejaria à sua volta” e “Se a mulher soubesse o
valor que tem o homem, (ela)
rastejaria à sua volta” (à volta do homem).”.
***
A ambiguidade tem raízes e tradições
histórico-mitológicas. No templo de Delfos dedicado a Apolo, face ao
consulente, as
sacerdotisas, em êxtase, profetizavam sem erro. Só que a profecia era ambígua. Um
erro aparente era do intérprete. Por exemplo: o oráculo diz “Vejo uma grande colheita na sua vida”. A
pessoa saía feliz. Alguns dias depois, vários familiares da pessoa morrem. A “colheita”
era a morte, não a abundância de produtos da terra. A pessoa indignada não
soube interpretar o oráculo. Se o oráculo diz “Deus diz-me que te vai promover”. O consulente sai feliz, mas daí uma
semana, morre. A promoção era ir para o céu, não a subida de escalão na
profissão. O oráculo nunca errava, pelo que nunca poderia ser julgado.
***
Concluindo, a ambiguidade, como vemos, pode levar à interpretação dupla ou duvidosa de
uma mensagem. Apesar disto, é permitido o seu uso como recurso ou alternativa
linguística, para chamar a atenção num ou para um determinado contexto.
2019.06.22 –
Louro de Carvalho
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