domingo, 23 de junho de 2019

A ambiguidade na frase, modalidades e consequências


Passei, há dias, por uma determinada cidade e entrei num café. Pedi um croissant e uma água ao natural sem gás. Paguei, comi e bebi. Depois, fui à casa de banho e vi o aviso: “Estas instalações sanitárias são disponibilizadas só para os nossos clientes exclusivos”. Obviamente, hesitei. Não sou cliente exclusivo daquela casa: sou cliente de muitas outras. Porém, lá entendi que o gerente queria explicar que aquelas instalações sanitárias eram disponibilizadas exclusivamente para os clientes, ou seja, não é possível, chegar lá uma pessoa e ir à casa de banho sem que pretenda fazer qualquer aquisição de bens consumíveis.
Lembrei-me de que, no tempo de estudante em Lamego, havia lá uma casa que tinha o frontispício com o seguinte adorno “Fabrico de calçado manual”. Ora, calçado manual são-no, por exemplo as luvas ou as quirotecas (luvas que os bispos usavam nas mãos nos Pontificais, tal como usavam nos pés as cáligas), mas a predita casa de Lamego, pelos vistos, fabricava manualmente o calçado, tendo, pois, este um fabrico manual. Assim, o adorno do frontispício devia rezar: “Fabrico manual de calçado”. 
Em 1997, na predita cidade onde passei há dias, entrei num café e, após o lanche na companhia de pessoa distinta, fui às instalações sanitárias e, depois de entrar, vi um aviso que dizia: “Só pode utilizar estas instalações sanitárias quem se comprometer a consumir o produto”. Livra!  
Como é óbvio, estamos em presença de situações de “ambiguidade” ou “anfibologia”, vício de linguagem de que emerge duplicidade de sentido em palavras ou expressões textuais, bem como na ordem transposta das palavras na frase. Neste último caso, recordo o exemplo do miúdo que, no tempo dos tostões, foi à farmácia e pediu: “Senhor Santos, dê-me dez tostões de aguardente prà minha mãe canforada que partiu uma perna dentro desta garrafa por favor”. Quer dizer que o miúdo queria que o farmacêutico, por favor, lhe pusesse naquela garrafa dez tostões de aguardente canforada para a mãe, que partiu uma perna.
A ambiguidade é um vício parente da confusão, que resulta da utilização de palavras inadequadas ao que se quer exprimir ou da incorreta pontuação e/ou acentuação ou, no discurso oral, na falta ou excesso de pausas ou inadequada entoação da frase. Por isso, o seu uso não é recomendado em casos de escrita mais objetiva, em textos informativos e em redação de cunho científico ou técnico. Não obstante, é alternativa linguística admissível na linguagem coloquial, na linguagem literária, sobretudo na que reproduz o discurso falado, e em contexto poético.
Camões, na dedicatória da sua epopeia a Dom Sebastião, aconselhava:
Os olhos da real benignidade 
Ponde no chão: vereis um novo exemplo 
De amor dos pátrios feitos valerosos, 
Em versos divulgado numerosos.
Os exemplos são mais que muitos: “A menina disse à colega que sua mãe havia chegado”. Quem chegou: a mãe da menina ou a mãe da colega? “O atleta conversou com o treinador caído no chão”. Quem está caído: o atleta ou o treinador? “Espantaram o cão do meu primo”. Quem foi espantado: o cão animal ou o primo que está a ser chamado cão? “Há pentes para senhoras de osso! Vendem-se chapéus para homens de palha! Fazem-se amuletos para homens e mulheres de chifre!” Obviamente, que de osso são os pentes, não as senhoras; de palha são os chapéus, não os homens; e de chifre são os amuletos, não os homens ou as mulheres.   
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Etimologicamente, o vocábulo “ambiguidade” tem origem no termo latino ambiguitas que significa equívoco, incerteza, obscuridade, rodeio. É cognato de “ambio”, que se compõe de “amb” (radical de “ambo, ae, o” – um e outro; os dois ao mesmo tempo) + “eo” (vou) e significa: ando em volta, rodeio, cerco, procuro obter, disputo, solicito, peço o voto, ambiciono. Temos: “ambi” como primeiro elemento de palavras compostas (a significar de cada lado, em volta); “ambadedo”, roo em volta, como; “ambages, um” (plural), rodeios; “ambagiosus, a, um”, cheio de obscuridades ou digressões; “ambago, inis”, rodeio; “ambarvalis, e”, que é levado em roda dos campos (antes de ser imolado – relacionado com as “ambarvalia, ium”, festas em honra de Ceres); “ambecisus, us”, corte em roda; “ambedo”, como em roda; “ambestrix, icis”, devoradora; “ambesus, a, um”, roído em volta, rasgado; “ambidens, entis”, ovelha que tem dois dentes em cada maxilar; “ambiegena, ae” e “ambegena, ae”, vítima acompanhada de dois cordeiros, ovelha que pariu dois cordeiros gémeos; “ambie” e “ambiter”, avidamente, com zelo; “ambifarius, a, um”, ambíguo, de dois sentidos; “ambifariam” e “ambifarie”, de dois modos, ambiguamente; “ambiformiter”, ambiguamente, de modo equívoco; “ambigenter”, com indecisão; “ambigo”, duvido, hesito, disputo, impilo para os dois lados, ponho nos pratos da balança; “ambigue” e “ambiguo”, ambiguamente, de modo duvidoso, com resultado duvidoso; “ambiguus, a, um”, ambíguo, de dois sentidos, duvidoso, incerto, variável, perigoso, pérfido, contrário; “ambiguum, i”, dúvida, incerteza, perigo; “ambitio, onis”, ação de rodear, ambição, pretensão, solicitação, lisonja, desejo de agradar, ostentação, dignidade, categoria; “ambitiose”, com afetação, com ostentação, com lisonja, com solicitação; “ambitiosus, a, um”, ambicioso, intrigante, pretendente, que rodeia, que faz um circuito, faustoso, cheio de ostentação, que procura agradar, que deseja ser solicitado; “ambitor, oris”, candidato; “ambitudo, inis”, circuito; “ambitus, a, um”, rodeado, solicitado, cortejado, disputado; “ambitus, us”, caminho em volta de, circuito, período, circunlóquio, ambição, pretensão, disputa legal de cargo público, tentativa de corrupção, fausto, ostentação.
A anfibologia, que é considerada sinónimo de ambiguidade, tem significado semelhante. A palavra vem do grego “amphibolia” (de amphi – ao redor, à volta, à volta de, sobre, entre, ao redor de, por causa de + bolia, de bállô – atiro, coloco, deito por terra, deixo, faço cair, lanço, ponho; lanço-me), que significava: ataque dos dois lados ao mesmo tempo, equívoco, duplo sentido, dúvida, incerteza. Desta formou-se “amphibologia”, que quer dizer “duplicidade de sentido”.

Porque um excursus no grego semelhante ao do latim seria excessivamente longo, devo referir que o dicionário de Isidro Pereira, SJ dedica mais de 150 entradas a palavras cognatas de “amphibolia”, sendo a primeira destas palavras (depois dos elementos “amph”, “amphí” a “anaph” – ao redor, à volta) “amphagapázô (rodeio de afeto, trato com afeto, recebo com afeto) e as últimas “amphoudís” (levantado da terra por ambos os lados ou por ambos os pés), “ámphô” (ambos), “amphôbolos, on” (de duas pontas) e “ámphôtos, on” (de duas orelhas, de dupla asa). Entretanto, destaque-se “amphibállô”, envolver, atacar, lançar ao redor; e “amphíbolos, on”, rodeado, atacado por dois lados, ambíguo, equívoco, duvidoso, incerto.   
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Para entender a entrada da ambiguidade no quadro dos vícios de linguagem, é preciso ter em conta o alcance desta classificação. Os vícios de linguagem são formações textuais, sentenças ou orações, que fogem da normatização gramatical e/ou sintática da língua. Regra geral, ocorrem por via do desconhecimento das normas linguísticas ou por falta de atenção.
Como alguns dos exemplos acima apresentados, os seguintes mostram como a ambiguidade pode induzir o mau entendimento ou a duplicidade de interpretação da mensagem:
“A cachorra da minha tia está na rua”. É o animal que está na rua ou a tia que pelo designativo do animal? “O miúdo olhou o pai deitado na cama”. Quem está na cama: o miúdo ou o pai?
Nestes exemplos, vemos que as frases deixam dúvidas quanto à entidade em referência. Mas há outros casos de ambiguidade. A ambiguidade não ocorre sempre da mesma forma e num mesmo contexto. Ela pode ocorrer quando várias interpretações decorrem da estrutura da frase.
Vejamos casos e exemplos de ambiguidade em modalidades e contextos diferentes. 

A ambiguidade sintática surge quando a frase não e bem estruturada. Exemplos:Ouvi falar da festa no restaurante”. Falou-se da festa que houve no restaurante ou, no restaurante (quando eu lá estava), falou-se da festa?
A ambiguidade lexical ocorre com palavras que possuem vários sentidos. Exemplos:
O uso indevido de determinantes possessivos. Em vez de “A mãe pediu à filha que arrumasse o seu quarto”, deveria dizer-se “A mãe pediu à filha que arrumasse o próprio quarto”.
A colocação inadequada das palavras ou o uso incorreto da ordem transposta. Em vez de “A criança feliz foi ao parque”, deveria dizer se “Feliz, a criança foi ao parque”.
O uso de forma indistinta entre o pronome relativo e a conjunção subordinativa integrante. Em vez de “A estudante falou com o garoto que estudava enfermagem”, deveria dizer-se “A estudante de enfermagem falou com o garoto” ou “A estudante falou com o garoto sobre o curso de enfermagem”.
O uso indevido de formas nominais. Em vez da frase “A rapariga reconheceu a amiga frequentando a academia”, deveria dizer-se “A rapariga reconheceu a amiga que estava frequentando a academia” ou “A rapariga, na academia, reconheceu a amiga”.
A vaca diverte-se com a pata na lama”. A palavra “pata” se refere à pata-animal ou à pata-pé de vaca? “O pato é o único animal que faz os filhos com a pata”. Entende-se a pata como a fêmea do pato. Mas na questão “quantas patas tem um casal de patos?”, com a resposta “Cinco”, temos a palavra “pata” entendida como pé de pato ou de pata e como fêmea do pato. 
“Os rapazes jogam futebol no campo”. A palavra campo pode referir-se ao campo como o retângulo onde se joga futebol ou ao campo como zona rural.
“Cortaram a rede”. “Rede” pode entender-se como vedação, conexão à Internet, estrutura para dormir, rede elétrica ou rede de colaboradores, de empresas, de distribuição, etc.
“A menina estava perto do banco”. “Banco” pode ser banco da praça, da casa, ou instituição financeira.
A ambiguidade, ao contrário das figuras de linguagem, que são ferramentas à disposição do usuário da língua e dão realce e beleza às mensagens emitidas, integra o grupo dos vícios de linguagem, a par do pleonasmo vicioso ou redundância (repetição desnecessária duma informação na frase – v.g: Hoje fizeram-me uma surpresa inesperada); do barbarismo (desvio da norma ao nível da pronúncia silabada – erro da pronúncia do acento tónico, v.g: brica em vez de rubrica; cacoépia, erro na pronúncia dos fonemas, v.g: poblemas em vez de problemas; e cacografia, erro na grafia ou na flexão duma palavra v.g: o segurança deteu aquele homem, em vez de “deteve”; da morfologia, v.g: “se eu ir aí, vou me atrasar”, em vez de “for”; e da semântica, v.g: “José comprimentou seu vizinho ao sair de casa”, em vez de “cumprimentou”); do estrangeirismo (o emprego desnecessário de palavras estrangeiras, ou seja, quando há palavra ou expressão correspondente na língua, v.g: “O show é hoje!”, em vez de “espetáculo”; “Vamos tomar um drink?”, em vez de “bebida”); e do solecismo (desvio de sintaxe, podendo ocorrer nos seguintes níveis: concordância, v.g:Haviam muitos alunos naquela sala”, em vez de “havia”; da regência, v.g: “Eu assisti o filme em casa”, em vez de “ao”; e da colocação, v.g: “Dancei tanto na festa que não aguentei-me em pé”, em vez de “não me aguentei em pé”).
O uso da ambiguidade pode resultar na má interpretação da mensagem, ocasionando múltiplos sentidos. É de lembrar que toda a comunicação tem uma finalidade, uma intenção para com o interlocutor e que, para isso ocorrer, a mensagem tem de ser una, clara, precisa e coerente.
A inadequação ou má colocação de elementos como pronomes, advérbios e expressões adverbiais, ouras expressões e mesmo enunciados inteiros podem acarretar duplo sentido, comprometendo a clareza do texto. Na publicidade, observamos o uso e o abuso da linguagem plurissignificante, por meio dos trocadilhos e jogos de palavras, para chamar a atenção do interlocutor para a mensagem. Caso o autor não se julgue preparado para utilizar corretamente a ambiguidade, é preferível uma linguagem mais objetiva, com expressões e vocábulos mais adequados às finalidades requeridas.
Os tipos comuns de ambiguidade, como vício de linguagem são:
Em vez de “Vi o João a andar no seu carro”, dirigindo-se a um interlocutor que se trata por você, deveria dizer-se “Vi o João a andar no carro dele”.
O não uso correto da pontuação ou, no discurso oral, a falta de pausas e a incorreta entoação. Ex.: “Um caçador tinha um cão e a mãe do caçador era também o pai do cão” merece o seguinte esclarecimento pela pontuação/entoação: “Um caçador tinha um cão e a mãe. Do caçador era também o pai do cão”. E “Maria toma banho porque sua mãe disse ela pegue a toalha” merece o mesmo esclarecimento: “Maria toma banho porque sua. Mãe, disse ela, pegue a toalha”. Mas há mais exemplos: “Morra Salazar não faz falta à nação” – dizia o rebelde. Mas quando o iam a manietar e lhe diziam que ofendeu o Presidente do Conselho, retorquiu: “Não. Eu disse. Morra Salazar? Não. Faz falta à nação!”. Ou, quando era acoimado o herege por relatar um alegado passo do Evangelho “Jesus está aí não ressuscitou”, esclareceu que dissera: “Jesus está aí? Não. Ressuscitou.” E não o que os esbirros pensavam: “Jesus está aí. Não ressuscitou”. E, em “Se a mulher soubesse o valor que tem o homem rastejaria à sua volta”. Com desprimor pelo verbo rastejar, deve distinguir-se entre: “Se a mulher soubesse o valor que (ela) tem, o homem rastejaria à sua volta” e “Se a mulher soubesse o valor que tem o homem, (ela) rastejaria à sua volta” (à volta do homem).”.  
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A ambiguidade tem raízes e tradições histórico-mitológicas. No templo de Delfos dedicado a Apolo, face ao consulente, as sacerdotisas, em êxtase, profetizavam sem erro. Só que a profecia era ambígua. Um erro aparente era do intérprete. Por exemplo: o oráculo diz “Vejo uma grande colheita na sua vida”. A pessoa saía feliz. Alguns dias depois, vários familiares da pessoa morrem. A “colheita” era a morte, não a abundância de produtos da terra.  A pessoa indignada não soube interpretar o oráculo. Se o oráculo diz “Deus diz-me que te vai promover”. O consulente sai feliz, mas daí uma semana, morre. A promoção era ir para o céu, não a subida de escalão na profissão. O oráculo nunca errava, pelo que nunca poderia ser julgado.
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Concluindo, a ambiguidade, como vemos, pode levar à interpretação dupla ou duvidosa de uma mensagem. Apesar disto, é permitido o seu uso como recurso ou alternativa linguística, para chamar a atenção num ou para um determinado contexto.
2019.06.22 – Louro de Carvalho


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