quinta-feira, 20 de junho de 2019

“Comeram e ficaram saciados”


Era a frase lapidar que se lia na Igreja Seminário Santa Cruz, dos Passionistas, em Santa Maria da Feira, como tema deste Dia da Eucaristia na Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, no Ano C, citando da perícopa do Evangelho de Lucas (Lc 9,11b-17), proclamada na Liturgia, o seu versículo 17. 
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Segundo a reflexão de Dom António Couto, Bispo de Lamego, publicada a 19 no “Jornal da Madeira”, a Liturgia da Palavra abre com um trecho do Génesis (Gn14,18-20), que delineia a rota que passa pelo Salmo 110, em que Deus consagra o Messias Senhor como “sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedec” (malkî-tsedeq) – rei e sacerdote de Shalem, a futura Jerusalém, yerûshalaim (cidade da paz – shalôm –, embora o seu nome signifique ‘Shalem a edificou’) – consagração que ressoa na Carta aos Hebreus, que exalça Jesus como “sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedec” (5,6.10; 6,20; 7,11.15.17), que “trouxe a Abraão, pão e vinho, paz e bênção”, e cujo sacerdócio não tem fim, pelo que pode salvar para sempre quem se aproxima de Deus, porque Se ofereceu (anaphérô) a Si próprio de uma vez por todas (ephápax) (Heb 7,24-25.27). Melquisedec aparece em Gn 14, no Salmo 110 (com a adição do segmento para sempre) e na Carta aos Hebreus, lá onde o sacerdócio de Jesus é para sempre, segundo a ordem de Melquisedec, e não segundo a de Aarão e Levi, em que os sacerdotes se sucediam e se fiavam nos sacrifícios dos animais.
E, tendo em conta a “lex orandi lex credendi”, é de notar que no Cânone Romano, a Igreja reza:
Olhai com benevolência e agrado para esta oferenda, e dignai-vos aceitá-la, como aceitastes os dons do justo Abel, vosso servo, o sacrifício de Abraão, nosso pai na fé, e a oblação pura e santa do sumo-sacerdote Melquisedec”.
Mas, como diz António Couto, “esta avenida bela e florida passa também pelo Cenáculo, e transparece no belo hino intitulado Lauda Sion Salvatorem [= «Louva, Sião, o Salvador»], em que cantamos assim: “Eis aqui o pão dos anjos,/ feito pão dos peregrinos,/ que não deve profanar-se.// Em figuras proclamado,/ como Isaac hoje imolado,/ é Cordeiro e maná puro.”.
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O Bispo do Porto, sublinhando a importância da celebração desta Solenidade, aliou-lhe, na sua homilia, na Igreja da Trindade, os deveres do cristão de adorar o Sacramento, de comungar o Corpo e o Sangue de Cristo, fazendo da celebração da Eucaristia o centro da vida, mas também a rampa de lançamento para a atenção solidária para com aqueles que mais precisam – à semelhança de Jesus e dos discípulos.
Jesus acolheu as multidões que O seguiram e pôs-se a falar-lhes do Reino de Deus, curando os que necessitavam. Porém, como dia chegava ao fim, os discípulos antevendo a necessidade de comer da multidão, ficaram preocupados e sugeriram ao Mestre que despedisse a multidão para que pudessem as pessoas arranjar pão nas redondezas.
Ao invés, Jesus, assinalando a responsabilidade do cuidado dos corpos famintos inerente à pregação, prescreveu que lhe dessem de comer os discípulos. E estes, como só tinham consigo 5 pães e 2 peixes, dispunham-se a ir comprar comida para este povo. Mas Jesus tinha a solução, porque os discípulos estavam dispostos a resolver o problema e a partilhar o que tinham e o que poderiam vir a ter, e decidiu:
Disse aos discípulos: ‘Mandai-os sentar por grupos de cinquenta’. Assim procederam e mandaram-nos sentar a todos. Tomando, então, os cinco pães e os dois peixes, ergueu os olhos ao céu, abençoou-os, partiu-os e deu-os aos discípulos, para que os distribuíssem à multidão. Todos comeram e ficaram saciados; e, do que lhes tinha sobrado, ainda recolheram doze cestos cheios.”.
Dom Manuel Linda chamou a atenção para a importância da partilha e para a ação de Deus que vem em auxílio do pouco valor que possa ter a ação dos homens, desde que se mobilize totalmente, de acordo com as suas possibilidades. E referiu que se alimentaram e se saciaram cinco mil homens e acrescentou – o que Lucas não diz expressamente, mas que Mateus o faz – sem contar as mulheres e as crianças. E tem razão, pois Lucas fala em “hôsei ándres pentakiskhílioi” (em grego) ou “fere viri quinque milia” (em latim), ou seja, quase cinco mil varões (não se diz ánthropoi ou homines).
Por consequência, lançando o olhar para o mundo atual e a degradação do devir civilizacional, denunciou dois casos graves. O primeiro é o do matemático português, que arrisca 20 anos de prisão por ser apanhado a salvar vidas de refugiados no Mediterrâneo, em virtude da nova lei italiana, que proíbe o apoio aos refugiados. E lamenta-se o prelado portuense, dizendo que é como se, ao invés do que é razoável, fôssemos premiados por deixar morrer as pessoas, quando já se tinha avançado no reconhecimento do dever de socorrer quem está em perigo e que se tornou plausível. Por outro lado, expôs, baseado em dados do INE, as centenas de milhares de desempregados que habitam o território português, de que duas centenas de milhares estão em risco de cair na pobreza, e referiu os casos de pessoas que vivem magramente dum trabalho que as deixa muito aquém da satisfação das necessidades pessoais e familiares e das suas capacidades de trabalho, por exemplo, em limpezas e alguns consertos.
E, por tudo isto, alertou os cristãos para a obrigação de, alinhados com o Evangelho e a Eucaristia, proverem a estas situações sociais num mundo em que impera o deus bem-estar.
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Por seu turno, o Bispo de Lamego, comentando este passo evangélico, rejeita a tese da multiplicação dos pães e aponta a divisão e partilha dos pães, dizendo que só Jesus sabe de uma divisão fazer uma multiplicação, não se tratando de aumentar a quantidade do pão e do peixe (“que permanece a mesma”), mas de abrir os olhos aos discípulos e a nós que “só conhecemos e pensamos na lógica do vender e do comprar, e não chegamos a saborear a lógica da gratuitidade” do Pai. Ora, esta lógica leva a crer no dom, a estar em saída e a ir por este mundo a partir o pão e a partilhá-lo, com a certeza de que “onde isto acontecer, não só se instaura o necessário para todos (“todos comeram e foram saciados”), como se instaura também o ‘excesso’, a superabundância da graça, caraterística fundamental do Reino de Deus (os discípulos encheram doze cestos).
O prelado lamecense frisa que aquele dia da vida de Jesus “se situa imediatamente a seguir ao regresso dos Doze da sua primeira missão e aponta, por tópicos, as notas fundamentais do seu diário do dia: “Jesus acolhia toda a gente (1), explicava a todos o Reino de Deus (2), curava os necessitados (3).”. Isto era “todo o afazer de Jesus”, a envolver “as pessoas todas no manto da ternura de Deus”, a ponto de “nem Jesus nem as pessoas” se aperceberem de que “o tempo passa e começa a cair a noite”. Todavia, os Doze, apercebendo-se, “intervêm e ditam a Jesus indicações, senão mesmo ordens, precisas”. A réplica de Jesus estonteia-os (Dai-lhes vós de comer!”) e “respondem às apalpadelas” (mais duro e talvez mais realista que o Bispo do Porto):
Primeiro esboço: ‘Só temos cinco pães e dois peixes’, que é como quem diz, mal chegam para nós… Segundo esboço: ‘A menos que vamos nós mesmos comprar comida para eles’…” (Lc 9,14).
Porque as considera desajustadas, o Mestre não equaciona “as indicações dos Doze”, mas “dá e faz ordens novas e surpreendentes, como faz sempre Deus”. E os apóstolos devem ter pensado: mandá-los reclinar à mesa (kataklínô), neste lugar ermo, “para comer o quê?!”.
Tal como Dom António Augusto Azevedo, Bispo eleito de Vila Real, na Igreja dos Passionistas, em Santa Maria da Feira, Dom António Couto, aponta a “Ação Eucarística de Jesus”:
Tendo recebido os cinco pães e os dois peixes, levantou os olhos para o céu (gesto de oração), pronunciou a bênção, partiu-os e dava aos discípulos para servirem à multidão”.
E diz o Bispo de Lamego:
Salta à vista que os gestos que Jesus faz naquele entardecer são um claro decalque daqueles que fará um ou dois anos mais tarde no interior da sala do Cenáculo na última tarde da sua vida terrena. Basta apenas acostar aqui o relato Eucarístico do Cenáculo: ‘Jesus recebeu o pão, deu graças, partiu-o e deu-o a eles’ (Lc 22,19a). O novo nesta Ceia do Cenáculo é o dizer de Jesus sobre o pão partido e a eles dado: ‘Isto é o meu corpo dado por vós. Fazei isto em memória de mim’ (Lc 22,19b). E sobre o vinho: ‘Este é o cálice da nova aliança no meu sangue, por vós derramado’ (Lc 22,20).”.
Dom António Azevedo dizia que a celebração da Eucaristia – adorante e comungante – postula a redescoberta da centralidade da Eucaristia (para ela nos dirigimos da vida de cada dia e dela partimos para a vida) na vida da Igreja e na de cada cristão e apontava a força anímica do levantar os olhos ao céu e do abençoar, tal como a do partir o pão e partilhá-lo. Por outro lado, em Ano Missionário, sublinha que importa perceber as duas dimensões da Eucaristia: a espiritual, que nos leva a orar, saborear e adorar; e a missionária, testemunhando que Jesus, que morreu e ressuscitou, está vivo e vive entre nós; que, por Si e através de nós, continua a pregar o Reino de Deus, a compadecer-se e a colmatar as necessidades do mundo dos homens.     
Dom António Couto vê, na perícopa em referência, “o lado subversivo do Evangelho”:
Jesus não se contenta, nem quando nós nos propomos comprar pão para alimentar os outros. Para Jesus não é compreensível que uns tenham mais, outros menos e outros nada, e que esta situação se possa amenizar pontualmente. Dar tudo é a medida de Deus e a lógica do Evangelho. Por isso, Jesus diz: ‘Isto é o meu corpo dado por vós. Fazei isto em memória de mim’ (Lc 22,19b); ‘Este é o cálice da nova aliança no meu sangue, por vós derramado’ (Lc 22,20). Vida partida, repartida e dada por amor. Eis o inteiro programa de Jesus. Eis tudo o que devemos fazer, imitando-o.”.
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O Bispo de Lamego considera a graça de hoje podermos “escutar um dos mais antigos e intensos relatos da Ceia do Senhor”, que foi assumido como 2.ª leitura. E traduziu:
O Senhor Jesus, na noite em que ia ser entregue (paredídeto), recebeu (élaben) o pão (árton), e dando graças (eucharistêsas), partiu-o (éklasen) e disse: ‘Isto é o meu corpo, que é para vós; isto fazei para memória de mim’. Do mesmo modo fez com o cálice, depois da ceia, dizendo: ‘Este cálice é a nova Aliança no meu sangue; isto fazei, sempre que o beberdes, para memória de mim’. Portanto, sempre que comerdes este pão e beberdes este cálice, estais a anunciar (kataggéllete) a morte do Senhor até que Ele venha (áchris hoû élthê)”. (1Cor 11,23-26).”.
E, sublinhando que “a vivência da Eucaristia transforma a nossa vida desde dentro”, fixa os verbos que perpassam o relato: receber, dar graças e partirpartilhar o pão. De receber diz que “é a base da nossa vida, vocação e missão sempre de Deus recebidas”. Pensa dar graças como fundamental porque só reconhecendo “que a Graça tomou conta de nós”, é que “podemos e sabemos dar graças” e o percebemos e assumimos como “atitude que transforma a nossa vida”. E ensina que partirpartilhar o pão implica saber que nada é nosso nem a vida, pelo que “tudo é para partilhar com alegria com tantos irmãos”.
Depois, assenta em que é preciso agir eucaristicamente em memória de Jesus ou ao jeito de Jesus porque Ele está “no centro da nossa da nossa vida e das nossas atitudes”; e que anunciar a morte do Senhor não é “chorar ou de vestir de luto”, mas “saber ver bem a Cruz de Jesus e o caminho da Cruz de Jesus”. Na verdade, trata-se de anunciar que “Jesus viveu e morreu para a dar a vida por amor, para sempre e para todos”.
Jesus sintetizou em Si o sacrifício de Melquisedeque, no pão e no vinho, e o de Aarão, no sacrifício de animais. Qual imaculado cordeiro pascal, entregou-Se no patíbulo da cruz, mas depois de Se entregar na Ceia sob as espécies de pão e de vinho. Na cruz, fez-se ponto de atração redentora; na Ceia, fez-se banquete tornando-se o “Pão repartido para a vida do mundo”.  
A Eucaristia cumpre em pleno a figura veterotestamentária do banquete de carnes gordas e vinhos finos preparado sobre o monte pelo Senhor dos Exércitos (cf Is 25,6), para o qual a Sabedoria manda anunciar nos pontos altos da cidade: “Vinde, comei do meu pão, bebei do vinho que preparei” (Pr 9,5) – “banquete que se entrevê na carne preparada em abundância e nos 60 quilos de farinha que, lado a lado, Sara e a mãe de família do Evangelho, metem ao forno (Gn 18,6-7; Mt 13,33; Lc 13,21)”.
E Dom António Couto, tal como Dom António Azevedo, salientou o significado da procissão pelas ruas da Cidade como presidência e bênção facultadas pela presença do Senhor da nossa vida, que decide caminhar connosco. Mas faz um aporte interessante sobre o pálio (pallium), referindo que “o pálio de Deus é o manto (pallium) de Deus, os braços carinhosos com que nos abraça e nos envolve, e nos pede para fazermos outro tanto, enchendo de graça e de esperança todos os nossos irmãos, sobretudo os mais sofridos e marginalizados” – aspeto em que as mensagens dos Bispos do Porto e de Lamego se tocam.
E, citando um autor italiano, desenvolve:
Jesus Cristo é Deus presente no nosso mundo e no nosso meio todos os dias. E o pálio é o manto, o abraço, com que nos acarinha e envolve. De pálio (pallium) vêm os cuidados paliativos, que não são apenas os cuidados médicos que são prestados aos nossos doentes terminais; são sobretudo a expressão de um amor maior, de um manto maior, que nos envolve e nos salva em todas as situações” (Gianluigi Peruggia, L’abbraccio del mantello, Saronno, Monti, 2004).
Enfim, temos, pois, que aprender as lições que nos traz a Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo. Com efeito, vivendo unidos e reunidos, em Igreja, à volta do Senhor, “que por nós parte e reparte a sua vida”, capacitar-nos-emos para a partilha solidária com todos e semearemos a esperança num mundo egoísta negativamente competitivo, em que “os pobres não podem esperar” (Dom António Francisco dos Santos) e são espezinhados por aqueles que os exploram e cinicamente os acusam de serem eles os culpados da sua própria pobreza.
Que Deus perdoe os males que fazemos e nos dê a sabedoria para apreciarmos o mistério e nos empenharmos na missão.  
2019.06.20 – Louro de Carvalho

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