Obviamente
que me revejo na postura dos académicos que, por ocasião da morte, velório e
exéquias de Agustina Bessa Luís, porque evidentemente sabem do que falam,
estudaram a obra e captaram aspetos relevantes da personalidade da escritora.
Também aceito a postura da atual Ministra da Cultura, que disse em nome do
Governo, na sua atitude discreta, embora assertiva, o que a um governante de
bom senso cabe salientar.
Assim,
gostei de ouvir Isabel Pires de Lima, professora catedrática que se dedica ao
estudo e divulgação da nossa Literatura, a considerar a romancista (integrou Conselho Diretivo da Comunitá Europea degli Scrittori – 1961-1962) como “uma contadora de histórias absolutamente
compulsiva” e a assegurar que “a obra romanesca de Agustina Bessa-Luís é de uma
singularidade e torrencialidade que configuram uma espécie de apetência quase
descontrolada pela ficção”.
Em
declarações à Lusa, o Professor
Arnaldo Saraiva, investigador
científico e literário, ensaísta, cronista, crítico e poeta, refere que Agustina ocupa “o espaço da maior escritora que Portugal já teve” na memória do
país. E explicitou:
“Tivemos algumas escritoras importantes no
século XX, de Florbela Espanca a Sophia de Mello Breyner Andresen e Maria Velho
da Costa, mas de longe a maior figura feminina da literatura portuguesa será
sempre Agustina”.
O insigne
professor universitário, que fundou o Centro de Estudos Pessoanos e é um
especialista na obra de Eugénio de Andrade, lembra a “escritora muito
produtiva, que só em romances deixou cerca de quatro dezenas de obras e também
inúmeras crónicas”, mas cujo legado também se vê em “livros infantis, teatro,
contos, com um selo de qualidade invulgar em todas essas obras” – trabalho de “uma
escritora absolutamente excecional”.
Apesar de,
internacionalmente, não ser a “mais conhecida”, de que é exemplo o “Brasil, que
a conhece pouco e onde Saraiva tentou, “desde 1965”, ajudar a revelá-la, é uma
“personalidade humana invulgar, uma mulher sábia, bem portuguesa e bem ligada
às coisas portuguesas”.
Arnaldo
Saraiva conheceu esta mulher “atenta às relações humanas e laços sociais”, a
destacada “conhecedora de espaços rurais e urbanos, sobretudo no Norte”, que
procurou “entender algumas figuras da cultura portuguesa, de Santo António a
Florbela Espanca e Vieira da Silva”.
Salta à
memória “a companheira fabulosa para viagens ou para conversas risonhas, sobre
isto e aquilo”, além da “excelente cozinheira” que fazia “doces maravilhosos”
ou a mulher “muito irreverente”, mas “extremamente séria e intensa”, que tem na
sua carreira “páginas incríveis, de escrita exaltante, envolvente, profunda e
densa”, como recorda o ensaísta e crítico.
Deixa uma
obra que será “cada vez mais objeto de estudo, análise, referência e citações”,
por ser “muito rica e complexa, que fala muito de nós mesmos, mesmo quando parece
falar do homem universal” – diz o professor, que reforça que “faz bem ler
Agustina, mesmo quando alguns dos seus livros parecem ter alguns obstáculos”,
até porque nos leva “para mundos que são
afinal os mundos do desconhecido, os mundos enigmáticos que queremos perceber e
que nos ajudam a perceber”, pois “encontramos ali, talvez, o que possamos
definir como a alma portuguesa, se é que isso existe” ou, por outras palavras, “um
espaço muito nosso”.
***
Porém, quem lhe presta melhor justiça é o Professor José Carlos Seabra
Pereira, Diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, que nela vê, com António José
Saraiva, “o segundo milagre do século XX português e, a par do brasileiro Guimarães Rosa, a mais original das contribuições da prosa
lusa para a literatura mundial” – com romance, novela e conto, teatro e
guião fílmico, biografia romanceada e crónica, ensaio e especulação
aforismática, literatura infanto-juvenil –,
pois “o mundo sortílego que a sua imaginação, a sua penetração psicológica e a
sua magia verbal erguem, não deixa de ser um universo existencial
sintomaticamente revelado” logo com Mundo Fechado (1948).
E este
lustroso académico desfia, embora em linhas sintéticas, mas pertinentes, as caraterísticas
mais marcantes dos livros da escritora pluriforme, cuja obra abraça o romance
que assume as feições histórico-corográficas com o espelho do realismo ou a
construção ficcionista, sempre com cor e unção e, por vezes, até com a vidência
e a oracularidade. E diz o professor:
“O universo romanesco de Agustina é
atravessado pela volúpia ante o sentido trágico da vida, mas também por um
sentido de orgulho perante o insondável abismo da morte (decisivo, afinal,
porque «Ah, sim, a verdadeira presença está na morte!»). No entanto, vislumbra-se porventura outro sentido em
momentâneas fulgurações do fluxo congeminativo e sentencioso que distingue o
discurso de Agustina.”.
Assenta em
que as personagens de Agustina “parecem pulverizar-se ou enredar-se na
disseminação que o mundo nelas provoca”, porém, ao assumirem a crise, “parecem
dispor-se a partir”, vindo “a imaginação mediatriz do narrador (e da autora
textual) a advertir contra a verosimilhança
fácil do senso comum” e a libertar “para o salto, a cargo das personagens ou do
leitor, do existir nas situações para o Ser da origem transcendente”.
Agustina,
segundo Seabra Pereira, “sobressai pela singularidade genial, eticamente
norteada e esteticamente criativa, que é a da seriedade brincada da escrita sob
o princípio da incerteza – com seus estilemas de cognição inferencial e
sentenciosa, que dotam o discurso de uma aura sapiencial e conferem à sua
receção um índice abissal de profundidade ou um índice sideral de projeção (mas também
certamente, de quando em vez, motivos de reticente questionação)”. E a arte do texto “deslumbra quase sempre pela
feição fulgurante, desconcerta, às vezes, pelo salto epistemológico sem grandes
preocupações de irrepreensível nexo ou insofismável motivação na cadeia
textual, leva outras vezes a suspeitar, além do rasgo de autoparódia, de certa
componente lúdica em que a enunciação se compraz e que deixa o leitor dividido
entre julgar-se privilegiado pela partilha do rito iniciático e julgar em risco
a sua confiada boa-fé”.
Depois,
frisa que a obra agustiniana “não pretende insinuar-se como literatura
edificante”, mas “levantar e trazer à perceção estética um mundo que
supostamente tem uma força íntima como impulso pregnante e como tecido
conjuntivo”. E, “pensando na particular forma (nela subentendidamente literária) do testemunho que o homem deve deixar na História,
cada um iluminando ‘com paixão uma realidade’, Agustina estatui que ‘O escritor, desde os seus começos, tem que
obedecer a uma ideia, que é a mesma pela vida fora’, como dizia em 1979”,
tendo frisado noutra oportunidade a urgência de “primeiro escolher uma ética”,
que “não exclui a estética” e onde “a nossa personalidade está centralizada”.
Chamando a
atenção para “a coerência da obra de Agustina”, diz que “é tal que os vetores
fundamentais que a distinguem até A Ronda da Noite (2006) podem vislumbrar-se já nas suas primícias”, sendo
que, “em dois textos seminais, até há pouco conservados inéditos – o
conto Colar de Flores Bravias, de 1947, e a novela Cividade,
de 1951 – já germina a conexão matricial a uma opção ética que é congénita da
criação estética ou que nem sequer existe fora da configuração estética”,
conexão que “toma a forma de tensão, se não de antinomia, entre um princípio do
desejo (de ser) e um princípio da conservação (da ordem
social) e da consequente tensão entre a
ética/estética da singularidade sibilina e a ética social”. Enfim, conclui o
professor, “questão de ética do desejo estético e questão de estética da ética
do desejo”.
Salientando
que, na ficção agustiniana, as relações humanas dependem sobretudo “de pressupostos familiares, sentimentais,
etnográficos, eróticos, temporais, e de afinidades ou repulsões filhas de uma
eletividade nascida em profundezas inconscientes” (e pouco da “hierarquia
económico-social”) – “porque
o que se revelava essencial nessa ficção agustiniana era a sondagem aberta e a
expressão plástica das possibilidades nos circuitos de analogias cognitivas e
cósmicas” – acrescenta a tudo isso “as consequências do espaço, físico e
humano, percetivo e imaginário, empírico e simbólico, em que se realizam cada
personalidade e suas relações interpessoais – em especial, aquela peculiar
correlação entre tempo ritual e espírito do lugar que distinguirá a ficção da
autora de A Brusca e o interseccionismo visionário da sua
escrita, tal como a valoração de “mundo fechado” e a relação com um “mundo
fechado”.
Por fim,
destaca-se a alusão “à irónica duplicidade de primazia atribuída à linguagem
como meio supremo de proximidade humana e de primazia da opção pertinente pelo
silenciar da fala”, que surge “na abstenção do agir e do avançar” (no sentido
hoje polarizador da narrativa de Gonçalo M. Tavares). Mas o lustroso professor anota que, “mesmo aí, é
indelével o tom nietzschiano da liberdade na Necessidade e, oriundo do
Romantismo originário, o grande sopro de saga do Espírito humano, na peculiar
fenomenologia da imaginação arquetípica (forma do conteúdo) e na forte intromissão da consciência narradora e
sua voz imperiosa, torrencial, a um tempo ácida e lírica, cruel e
misericordiosa (forma da expressão) – correlatos da tematização axial de ‘o anterior tempo anónimo, o tempo
do sangue, dos presságios, do ancestral cuidado’ (Eduardo
Lourenço) e da ‘refração do inconsciente
coletivo’ (António Quadros).
***
Em comunicado, a Ministra da Cultura lamentou a morte de
Agustina Bessa-Luís, “autora de uma obra tantas vezes virada para o passado,
mas sempre contemporânea, sempre presente, [que] marcou a
escrita em português a partir dos anos 50, inaugurando um novo espaço
ficcional, à imagem de outras grandes mulheres e que, em conjunto com ela,
revolucionaram radicalmente a prosa em português, como Maria Velho da Costa ou
Maria Gabriel Llansol”. E Graça Fonseca descreveu a longa carreira da escritora
como “o legado de Agustina” que é “vasto, composto por personagens, visões
da história, lugares e, acima de tudo, um percurso pessoal e autoral, únicos e
exemplares”.
***
Entretanto, vieram figuras gradas da sociedade a elogiar a
escritora, o que nunca tinham feito, mas que fizeram agora em nome do social e
politicamente correto. Não esqueço que chegou a ser uma das três estrelas (Agustina, Fernando Pessoa e Bernardo Santareno) do programa de
Literatura Portuguesa do 4.º Curso de Literatura Portuguesa do 12.º ano, quando
este foi criado. A reforma de Roberto Carneiro deixou-a no acervo de obras que
a escola podia adotar, mas a simplificação dos programas de Português de
Manuela Ferreira Leite, com vista aos exames nacionais que passaram a realizar-se
a partir de 1996, deixou A Sibila
fora das prateleiras do supermercado. Por isso, sabe a pouco e a hipocrisia o
hodierno elogio rasgado vindo de alguns.
A revista Sábado,
saída hoje, dia 6 de junho, realça que a escritora, que escrevera à mão todos
os seus livros, “esteve mais de uma década doente e retirada da vida pública,
ao ponto de ser ostensivamente ignorada pelo meio cultural e pela generalidade
dos media”, tanto assim que, “durante
a participação na feira do livro de Guadalajara (México,
2018)
– com uma comitiva de 40 escritores e mais de um milhão de euros gastos – não
houve qualquer menção à maior escritora portuguesa, ainda viva”. Aliás, a
Guimarães Editores pôs fim a uma relação com a autora que datava de 1954 (Parece que já não lhe reconheci interesse editorial!).
Era, segundo a Sábado,
aquela que, vendo um papel em branco, lhe apetecia a escrever, “muitas vezes
até na folha de rosto dos livros” em que lhe pediam “para fazer um autógrafo” e
que, apesar de nunca ter frequentado a Universidade, as movidas estudantis, as
tertúlias de literatos”, se tornou “mais culta, mais preparada, mais
inteligente”, porque, na mulher que considerava a escrita como “uma confissão
espontânea que coloco no papel, “não havia espaço para informações’, mas
sim para conhecimento com todo o cortejo de glória e tragédias que ele traz”.
A escritora Hélia Correia recordava num colóquio na UTAD (Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro), em dezembro
pp, quão assombroso era o conhecimento de Agustina, “que parecia saber tudo e
sobre tudo tinha uma opinião, uma piada, uma tirada irreverente, uma conclusão
na ponta da língua, como as suas personagens”. E, num encontro de escritores no
Brasil, o poeta Hélder Macedo perguntou-lhe o que ela fazia que não tinha inimigos,
ao que Agustina respondeu, gargalhando, que não os tinha, mas que os fazia. Ora,
durante as seis décadas em que escrevia romances, peças de teatro, biografias, memórias,
literatura infanto-juvenil, ensaios, guiões para filmes, crónicas, artigos de
opinião, “foi sempre difícil de engolir pelo meio literário que tende a
desdenhar dos que insistem em não idolatrar os deuses que ele insiste em
proclamar”. Mesmo entre aqueles de quem o desdém não era de esperar, ele
aflorava. Assim, a Sábado relata:
“Quando, em 1948,
publica o seu primeiro romance, ‘Mundo Fechado’, tinha apenas 26 anos, mas não
se recolheu ao anonimato à espera de elogios. Mandou o livro para os maiores
escritores vivos da altura: Miguel Torga, Aquilino Ribeiro, Teixeira de Pascoais.
Torga foi o único que não lhe respondeu. Ofendida, Agustina mandou-lhe nova
missiva onde o informava de que, quando passava junto à casa dele, tinha
vontade de lhe atirar pedras aos vidros das janelas”.
***
Enfim, morreu a escritora portuguesa de maior fôlego
romanesco (tanto no romance histórico como no
da pura ficção), das mais genuínas em literatura infanto-juvenil e a mais
intensa e plurifacetada; a mulher completa que alternava a escrita com a
costura, sendo ela própria quem arranjava os seus vestidos e chegou a fazer
peças de lingerie; a romancista de A Sibila ou de A Ronda da Noite; aquela que foi mandatária nacional da candidatura
presidencial de Freitas do Amaral, diretora de O Primeiro de Janeiro, membro da Academia de Ciências de Lisboa, na Classe das Letras, da
Academie Européenne des Sciences, des Arts et des Lettres, de Paris, e da
Academia Brasileira de Letras; aquela que
recebeu inúmeros prémios, algumas condecorações e o doutoramento honoris causa pela Universidade do Porto
e pela UTAD – mas que dizia que “nenhum prémio,
nem sequer o Nobel, a fazia tão feliz como comprar um vestido novo”.
Dom Manuel Linda, Bispo do Porto, que presidiu à missa exequial
na Catedral do Porto, evocou, na homilia, a religiosidade da escritora natural
de Vila Meã, Amarante, destacando “a condição humana” como uma das “marcas” da sua
“vastíssima obra literária”, afirmando saber que “se prostrava muitas vezes
sobre um oratório que tinha em casa”. E o prelado rezou:
“Obrigado, meu Deus, que nos deste uma
pessoa com tão alta categoria intelectual, religiosa e cristã, e obrigado,
Agustina, por esta extraordinária lição de teologia que a tua vida acabou por
nos dar”.
***
Resta aguardar pela publicação dos inéditos que a única filha
de Agustina, Mónica Baldaque, anunciou que seriam em breve publicados, ela que,
em 2013, referiu que estava a ser organizado o
arquivo de Agustina, onde há “centenas de papelinhos escritos por si”, notas
que registava em faturas ou agendas e “aforismos, pensamentos que iria utilizar
na obra”.
2019.06.06
– Louro de Carvalho
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