Apesar do Acordo Provisório, de 22 de setembro de
2018, entre a Santa Sé e a República Popular da China, sobre a nomeação dos
bispos, a relação do Estado com a comunidade católica apresenta graves
fricções. Ainda há dias, a comunicação social denunciava que as autoridades
impediram a celebração pública dos funerais dum bispo que falecera e que estava
detido por via de sempre se ter recusado a aderir à Igreja Patriótica, sendo
que o seu sucessor também está com residência fixa por idêntico motivo. Acresce
que, para lá do que o Estado determina, outras entidades tomam iniciativas “não
oficiais” que dificultam o exercício da atividade católica.
Recentemente,
o Estado publicou nova regulamentação das atividades religiosas que implica o
registo civil do clero e das atividades religiosas, a que deve ser aposta uma
declaração escrita em como o requerente do registo se dispõe a aceitar, entre
outras coisas, o princípio da independência, autonomia e autogestão da Igreja
na China.
Perante a
perplexidade de muitos clérigos, extensiva aos fiéis crentes, os bispos
solicitaram à Santa Sé uma palavra de orientação sobre a atitude a tomar, dado
que podem estar em conflito as exigências da fé e da unidade da Igreja e as do
Estado chinês. E o Vaticano responde focando quatro pontos basilares: a tutela constitucional
da liberdade religiosa; a interpretação da independência da Igreja na China não
em sentido absoluto, mas no atinente à esfera política, nos termos do Acordo Provisório; o diálogo consolidado
que enforma atualmente as relações entre a Santa Sé e a China; e o facto de
muitos bispos ordenados sem mandato apostólico terem pedido e obtido a reconciliação
com o sucessor de Pedro.
Assim, hoje,
dia 28 de junho, a Santa Sé publicou o solicitado documento cujo teor é o
seguinte (em tradução
livre):
***
Há algum tempo, os Bispos da China Continental apresentaram à Santa Sé
uma orientação concreta sobre a atitude a tomar face à obrigação de requerer o
registo civil do clero e das atividades religiosas. Com efeito, muitos
Pastores estão profundamente perplexos porque a modalidade de tal registo –
obrigatória de acordo com os novos regulamentações das atividades religiosas
sob pena de não se poder agir pastoralmente – quase sempre envolve a assinatura
dum documento em que, não obstante o compromisso das autoridades chinesas em
respeitarem a doutrina católica, se deve declarar a aceitação, entre outras
coisas, do princípio da independência, autonomia e autogestão da Igreja na
China.
Face à complexidade da realidade chinesa e ao facto de não haver no país uma
prática de aplicação única dos regulamentos para assuntos religiosos, torna-se
particularmente difícil uma tomada de posição sobre o assunto. Por um
lado, a Santa Sé não pretende forçar a consciência de ninguém; e, por
outro, considera que a experiência da clandestinidade não faz parte da
normalidade da vida da Igreja e que a história mostra que os pastores e os
fiéis têm recorrido a ela apenas no desejo sofrido de manter intacta a fé (vd n. 8 da Carta de Bento XVI aos católicos chineses de 27 de maio de
2007). No entanto, a Santa Sé continua a exigir que o
registo civil do clero ocorra com a garantia de respeito pela consciência e
pelas profundas convicções católicas das pessoas envolvidas. Só assim, de
facto, se promove a unidade da Igreja e o contributo dos católicos para o bem
da sociedade chinesa.
No atinente à avaliação da eventual declaração que deve ser assinada no
momento do registo, é de ter em conta que a Constituição
da República Popular da China declara formalmente a proteção da liberdade
religiosa (art.º 36.º) e que o Acordo Provisório, de
22 de setembro de 2018, reconhece o papel peculiar do Sucessor de Pedro – o que
logicamente leva a Santa Sé a entender e a interpretar a “independência” da
Igreja Católica na China não em sentido absoluto, isto é, como uma separação da
Papa e da Igreja universal, mas na conexão com a esfera política, de acordo com
o que sucede em todas as partes do mundo no quadro das relações entre o Papa e
uma Igreja particular ou entre Igrejas particulares. Além disso, afirmar
que na identidade católica não pode haver separação do Sucessor de Pedro não
significa querer fazer duma Igreja particular um corpo estranho à sociedade e à
cultura do país em que vive e atua. Depois, o contexto atual das relações
entre a China e a Santa Sé, caraterizado por um diálogo consolidado entre as duas
Partes, é diferente do que viu o nascimento de organizações patrióticas nos
anos 50. Por fim, acresce o relevante facto de, ao longo dos anos, muitos
bispos ordenados sem o mandato apostólico terem solicitado e obtido a
reconciliação com o Sucessor de Pedro, para que todos os bispos chineses estejam
em comunhão com a Sé Apostólica e desejem uma integração cada vez maior com os
Bispos Católicos de todo o mundo.
Assim, é legítimo esperar uma nova atitude por parte de todos, mesmo
quando se trata de questões práticas sobre a vida da Igreja. Por seu
turno, a Santa Sé continua a dialogar com as autoridades chinesas sobre o registo
civil de bispos e sacerdotes para encontrar uma fórmula que, no ato do registo,
respeite não apenas as leis chinesas, mas também a doutrina católica.
Entretanto, à luz do acima exposto, se um Bispo ou um padre decidir registar-se
civilmente e o texto da declaração para registo não parecer respeitoso para a
fé católica, o declarante especificará por escrito, no momento da assinatura,
que o faz sem prejuízo da fidelidade aos princípios da doutrina
católica. Se não for possível fazer este esclarecimento por escrito, o requerente
fá-lo-á verbalmente e, se possível, na presença de uma testemunha. Em
qualquer caso, é aconselhável que o requerente certifique o seu Ordinário da
intenção com que procedeu ao registo. Isto, na verdade, deve ser
sempre entendido com o único propósito de favorecer o bem da comunidade
diocesana e o seu crescimento no espírito de unidade, assim como uma
evangelização adaptada às novas necessidades da sociedade chinesa e à gestão
responsável dos bens da Igreja.
Ao mesmo tempo, a Santa Sé entende e respeita a escolha daqueles que,
conscientemente, decidem não se registar nas condições atuais. Permanece
perto deles e pede ao Senhor que os ajude a preservar a comunhão com os irmãos na
fé, mesmo ante as provações que todos enfrentarão. Por sua vez, o Bispo, “nutra
e manifeste publicamente a sua estima pelos presbíteros, demonstrando confiança
e elogiando-os se o merecerem; respeite e faça respeitar os seus direitos
e defenda-os contra críticas infundadas; dirima prontamente controvérsias
para evitar que as inquietações prolongadas possam obscurecer a caridade
fraterna e prejudicar o ministério pastoral” (Apostolorum
Successores, Diretório para o ministério pastoral
dos Bispos, 22 de fevereiro de 2004, n. 77).
É, pois, importante que os fiéis leigos não apenas compreendam a
complexidade da situação acima descrita, mas também aceitem com grande entusiasmo
a dolorosa decisão tomada pelos seus Pastores, seja ela qual for. Que a
comunidade católica local os acompanhe com espírito de fé, com oração e com a afeição,
abstendo-se de julgar as escolhas dos outros, guardando o vínculo da unidade e
usando de misericórdia para com todos.
Em qualquer caso, à espera de um diálogo franco e construtivo entre as
duas partes, conforme acordado, com vista a um modo de registo civil do clero
mais respeitoso da doutrina católica e, por conseguinte, da consciência das
pessoas envolvidas, a Santa Sé pede que as pressões intimidatórias “não
oficiais” contra as comunidades católicas não sejam postas em prática, como
infelizmente já tem acontecido.
Finalmente, a Santa Sé confia em que todos possam aceitar estas
orientações pastorais como uma ferramenta para ajudar aqueles que se encontram
a fazer escolhas difíceis, a realizá-las num espírito de fé e unidade. Todos
– Santa Sé, bispos, sacerdotes, religiosos e fiéis leigos – são chamados a
discernir a vontade de Deus com paciência e humildade nesta parte do caminho da
Igreja na China, marcada por tantas esperanças, mas também por dificuldades
duradouras.
***
O documento
responde às muitas perguntas que os bispos reiteradamente dirigiram ao Vaticano,
que se reduzem ao seguinte:
“Qual o comportamento adequado face ao
pedido urgente de se inscrever no registo civil do clero segundo o estipulado
por lei pelas autoridades políticas? O que fazer em relação ao dilema de
consciência representado por alguns textos problemáticos para que é com
frequência solicitada a assinatura?”.
Na sua
resposta, a Santa Sé reafirma o princípio fundamental do respeito pela liberdade
de consciência, pelo que ninguém pode ser obrigado a dar um passo que, indo
contra a sua consciência, não tenha intenção de dar. Por outro lado, recorda o
passo dado com o predito Acordo
Provisório, de setembro de 2018, sobre a nomeação dos Bispos, que deu
início a um novo caminho nas relações sino-vaticanas e levou ao importante
resultado da plena comunhão de todos os bispos chineses com o Papa. Contudo, nem
de longe foram ultrapassadas todas as dificuldades: o Acordo Provisório só representa o início dum percurso. E, entre as
dificuldades subjacentes, conta-se a obrigação de os sacerdotes e bispos se registarem
oficialmente junto das autoridades, como prescrito pela lei chinesa,
apresentando o respetivo requerimento. Apesar do compromisso de querer encontrar
uma solução aceitável e compartilhada, em várias regiões da República Popular
da China, é exigido aos sacerdotes a subscrição de declaração cujos itens nem
sempre são conformes com a doutrina católica, criando dificuldades de
consciência, por exemplo, no atinente à aceitação do princípio de
independência, autonomia, e autogestão da Igreja na China.
As Orientações
Pastorais da Santa Sé para Bispos e sacerdotes face à exigência das autoridades
governamentais para que se registem civilmente articulam a salvaguarda da
doutrina católica e a liberdade de consciência com a resposta às necessidades
da China e à de cooperar no bem comum daquela sociedade.
Assim, propõe-se
o absoluto respeito pela liberdade de consciência de cada um, a proximidade e a
compreensão da situação que atualmente as comunidades católicas vivem, algumas
sugestões de escolhas de opções concretas que permitam ao clero chinês registar-se
sem deixar de lado o que a Igreja Católica sempre acreditou sobre a comunhão
com o Sucessor de Pedro.
Obviamente,
o documento parte do olhar realista sobre a situação existente e as
dificuldades ainda presentes, configura a intenção de ajudar os que se
encontram na dúvida respeitando sempre a consciência de cada um na vivência dos
sofrimentos, manifesta a vontade de contribuir para unidade dos católicos
chineses e de favorecer o exercício público do ministério episcopal e sacerdotal
para o bem dos fiéis. De facto, a clandestinidade, como escrevia Bento XVI na
sua Carta (citada mais abaixo), “não pertence à normalidade da vida da Igreja”
e esta Nota da Santa Sé deixa perceber a lei suprema da “salus animarum”, a salvação das almas, e a intenção de cooperar
pela unidade das comunidades católicas chinesas, segundo um olhar evangélico
que manifesta proximidade e compreensão pelo que viveram e estão a viver os católicos
na China. Na verdade, a mensagem de Francisco, de 26 de setembro de
2018, aos católicos chineses expressava, por parte do Papa, os “sentimentos de
gratidão ao Senhor e de sincera admiração – que é a admiração de toda a Igreja
Católica – pelo dom da vossa fidelidade, da constância na provação,
da arraigada confiança na Providência de Deus, mesmo quando certos
acontecimentos se revelaram particularmente adversos e difíceis”.
***
É verdade
que a situação atual é diferente da vivida nos anos Cinquenta, quando se
originou a criação duma Igreja nacional chinesa separada de Roma. Hoje, pelo Acordo Provisório, as autoridades de
Pequim reconhecem o papel peculiar do Bispo de Roma na escolha dos candidatos
ao episcopado e tacitamente o seu múnus de Pastor da Igreja Universal; e a
Santa Sé continua a trabalhar todas as declarações, solicitadas no âmbito do registo,
a fim de serem consonantes não só com as leis chinesas, mas também com a
doutrina católica e, portanto, aceitáveis para Bispos e sacerdotes. Assim,
considerando a situação peculiar que vivem as comunidades cristãs no país e
esperando superar definitivamente o problema, a Santa Sé sugere uma possível
modalidade concreta para permitir à pessoa que se encontra em dúvida, com a
intenção de se registar, que exprima as suas reservas. É uma sugestão que
encaixa na rota inaugurada pela Carta
aos Católicos da China publicada em maio de 2007 (já referida), em que Bento XVI reconhecia:
“Em numerosos casos concretos, aliás quase
sempre, no procedimento de reconhecimento intervêm organismos que obrigam as
pessoas envolvidas a assumir posições, a realizar gestos e a assumir
compromissos que são contrários aos ditames da sua consciência de católicos”.
E,
considerando as dificuldades existenciais dos católicos, acrescentava:
“Por isso, compreendo como nestas diversas
condições e circunstâncias seja difícil determinar a escolha correta a ser
feita. Por este motivo, a Santa Sé, depois de ter reafirmado os princípios,
deixa a decisão a cada Bispo que, ouvido o seu presbitério, tem melhores
condições para conhecer a situação local, para medir as concretas
possibilidades de escolha e para avaliar eventuais consequências dentro da
comunidade diocesana”.
Como se vê,
já há 12 anos, o Papa mostrava compreensão e autorizava cada bispo a decidir
pensando em primeiro lugar no bem das respetivas comunidades. E hoje a Santa Sé
realiza uma ulterior etapa pastoral no caminho percorrido em contexto
objetivamente diferente do passado.
Estas Orientações Pastorais sugerem a possibilidade
de os Bispos e os sacerdotes pedirem, no momento da inscrição – o acréscimo,
por escrito ou verbalmente, se possível com a presença de uma testemunha – da
asserção de que independência, autonomia e autogestão da Igreja sejam entendidas
sem deixar de lado a doutrina católica, ou seja, como independência política,
autonomia administrativa e autogestão pastoral, como sucede com todas as
Igrejas locais do mundo. E também instam a que o sacerdote informe
imediatamente o respetivo Ordinário sobre a sua inscrição e as circunstâncias
em que foi realizada. Por outro lado, quem não se queira registar nestas
condições, não deve ser submetido a indevidas pressões.
Por fim,
deve anotar-se que não há ingenuidade nestas Orientações pastorais. A Santa Sé está
consciente dos limites e das “pressões intimidatórias” que sofrem muitos
católicos chineses, mas quer mostrar que se pode olhar em frente e caminhar sem
desvios dos princípios fundamentais da comunhão eclesial. É a solicitude papal
que permite ancorar estas Orientações na esperança cristã seguindo o Espírito que
leva a Igreja a escrever páginas novas aqui e agora.
Por outro
lado, a China evidencia para a Igreja as consequências da incarnação do
mistério eclesial na sociedade em que, a par dos sinais de Deus, emerge o
mistério iniquidade a causar sofrimento ou a desviar os crentes da verdadeira
rota. Foram também as tentações, a que Ele não cedeu, e os sofrimentos que a
hostilidade, a negação, a traição ou incredulidade, de que foi vítima, os
custos da incarnação do Filho de Deus para estar no mundo dos homens, próximo
deles, vivendo a nossa vida.
Resta que se
ore a Deus para que a Igreja na China saiba encontrar a forma de prevalecer
incarnada e inculturada naquela sociedade, mas bem conectada com o desígnio e a
força do Alto e muito firme no seu agir missionário.
2019.06.28 –
Louro de Carvalho
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