domingo, 9 de junho de 2019

O sopro de Deus e a força do Espírito


A Solenidade do Pentecostes encerra o ciclo pascal não a sete chaves, mas com a cavilha de segurança para o envio apostólico e a marcha pelo mundo inteiro a pregar o Evangelho, que se acomoda em duas vertentes: Cristo Ressuscitado está a interceder por nós junto do Pai, mas a sua presença junto de nós a ajudar e a consolidar a sua obra é permanente e eficaz; e, em seu nome, os cristãos, liderados pelos pastores, fortalecidos pela unção e movidos pela força do Espírito Santo, têm a missão tão honrosa como espinhosa de testemunhar o Ressuscitado e pregar com ardor e amor, pela palavra e pelas obras, o arrependimento e o perdão dos pecados.  
É verdade que aos apóstolos foi confiada a missão de irem por todo o mundo fazer discípulos que repliquem e multipliquem o apostolado e gerem lideranças apostólicas, mas o guia e animador da missão é o Espírito, que está sempre em ação, sem alguma vez tirar férias, folgar ou adormecer. Habitualmente é discreto, mas paira e sopra onde e donde quer (cf Jo 3,8).   
No princípio, quando Deus criou os céus e a terra, a terra era informe e vazia, as trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus movia-se sobre a superfície das águas” (Gn 1,1-2).
É Ele que dá a vida ao homem: “o SENHOR Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo” (Gn 2,7).    
Habitualmente não se arma ao espetáculo, à força  e poder:
Passou diante do Senhor um vento impetuoso e violento, que fendia as montanhas e quebrava os rochedos diante do Senhor; mas o Senhor não Se encontrava no vento. Depois do vento, tremeu a terra. Passou o tremor de terra e ateou-se um fogo; mas nem no fogo Se encontrava o Senhor. De­pois do fogo, ouviu-se o murmúrio de uma brisa suave.” (1Rs 19,11-12).
O Senhor estava na brisa suave, na brisa ligeira, na brisa nova, na brisa do Espírito (A. Mendes).
Não obstante, quando é necessário – se a libertação ou a urgência da Aliança o postulam, o espetáculo emerge:
Olhou e viu que a sarça ardia no fogo, mas não era devorada. Moisés disse: ‘Vou adentrar-me para ver esta grande visão: porque não se consome a sarça?’. Deus disse: ‘Não te aproximes; tira as sandálias dos pés, porque o lugar em que estás é uma terra santa’. E continuou: ‘Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacob’. Moisés escondeu o rosto, porque tinha medo de olhar para Deus. O SENHOR disse: ‘Eu bem vi a opressão do meu povo que está no Egito e ouvi o seu clamor ante os seus inspetores; conheço, na verdade, os seus sofrimentos. Desci a fim de o libertar da mão dos egípcios.” (Ex 3,2b-3.5-8a). 
E no Sinai:
A montanha do Sinai estava toda coberta de fumo, porque o SENHOR tinha descido sobre ela no fogo; o seu fumo subia como o fumo de um forno; e toda a montanha tremia muito. O som da trombeta era cada vez mais forte. Moisés falava e Deus respondia-lhe no trovão. O SENHOR desceu sobre a montanha do Sinai, no cimo da montanha. Chamou Moisés ao cimo da montanha e Moisés subiu.” (Ex 19,18-20).
O Senhor estava no fogo, no fumo, no tremor, no som da trombeta.
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O Evangelho da Solenidade do Pentecostes (Jo 20,19-23) é o do sopro do Espírito: os discípulos de Jesus estão fechados em casa por medo dos judeus. O Ressuscitado, qual vida nova e novo modo de presença, que nada nem ninguém pode reter ou impedir, atravessa as portas fechadas, aparece e fica de pé no meio deles, o lugar da liderança, e saúda-os por duas vezes: “A paz convosco!”. Mostra-lhes as mãos e o lado, tornados rosto do Deus sofrido, mas ora redivivo, o cartão de identidade de Jesus a fazer coincidir o Ressuscitado com o Crucificado de há dias. Obviamente, o medo cedeu o passo à alegria e os discípulos mostraram-se cheios de alegria (ekhárêsan), disposição que propicia o convite para a missão, tal como sucedeu com Maria: o anjo saudou-A com o piropo “Alegra-te, Cheia de Graça” (Khaîre, kekharitôménnê). E a Virgem de Nazaré, obediente ao Senhor, dispôs-Se a que se fizesse em Si o que a Palavra de Deus ditava. 
Ora, a Vida de Jesus, dada por amor, para sempre e para todos, vincula os discípulos à sua missão de dar a vida por amor: “Como o Pai me enviou (do grego apéstalken: pretérito perfeito de apostéllô), também Eu vos mando ir (pémpô)”. Os discípulos e Jesus têm em comum o envio, mas os verbos gregos marcam a diferença: o envio d’Ele está no tempo perfeito (é para sempre): a sua missão começou e continua, não acaba e Ele continua em missão; a nossa missão está no presente e o presente dela surge agrafado à missão de Jesus, não fazendo sentido sem Ele e sem a sua missão. Imbricados n’Ele e na sua missão, sabemos que Ele está connosco todos os dias até ao fim dos tempos (cf Mt 28,20). Este mandato que recebemos de Jesus define o estilo da nossa missão de acordo com o estilo e a missão de Jesus.
Como foi referido, os discípulos ficaram cheios de alegria (o medo dissipou-se com a presença do Mestre) ao verem (idóntes: particípio aoristo 2.º de horáô) o Senhor. Tal como o Outro Discípulo, aquele que Jesus amava, também eles todos veem a identidade do Senhor Ressuscitado com um olhar histórico (tempo aoristo). Jesus soprou sobre eles. Ora, este sopro de Jesus é o sopro criador (emphysáô), o sopro do Espírito, o mesmo que pairava sobre as águas, o que o Senhor insuflou nas narinas do homem recém-criado, o que inspirou a Aliança e a Lei, o sopro da brisa suave, o que o Senhor derramará sobre toda a criatura, para que os vossos filhos e as vossas filhas hajam profetizar, os vossos jovens hajam de ter visões e os vossos velhos hajam de ter sonhos” (cf At 2,17; Jl 3,1). É o sopro do Espírito para a frágil-forte missão do Arrependimento e do Perdão, o Jubileu Divino do Espírito. Anote-se que o Pentecostes surge 50 dias após o dia da Ressurreição. A Páscoa dos judeus celebra a libertação do Egito, ao passo que o seu Pentecostes, de festa das colheitas passou a celebrar a constituição de Israel como o Povo de Deus. Assim, a nova vida merecida pelo Filho de Deus insufla-se no novo Povo de Deus, a Igreja – anunciada sobre a rocha petrina (vd Mt 16,18-19), gerada na cruz a partir do lado aberto do Salvador (vd Jo 19,34) e nascida na Páscoa (vd Jo 20,21-23) e ‘epifanizada’ com a irrupção do Espírito Santo no Pentecostes (como se verá adiante). Este sopro, este alento, só aparece neste lugar em todo o Novo Testamento, mas é fácil fazer a ponte para Génesis 2,7, para o sopro ou alento (naphah TM / emphysáô LXX) criador de Deus no rosto do homem.
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O trecho do Livro dos Atos dos Apóstolos (At 2,1-11), assumido como 1.ª leitura, apresenta os apóstolos reunidos no Cenáculo, com Maria e outras mulheres, mas agora varridos ou recriados pelo vento impetuoso do Espírito, que os areja e lhes varre as teias de aranha que ainda os tolhem, e pelo seu fogo, que os batiza purificando-os de todas impurezas e vincando-os contra todos os medos e contra toda a pusilanimidade e tibieza. É o momento da espetacularidade teofânica do Espírito, é a Epifania da Igreja, novo Povo de Deus. Anote-se que o interesse catequético fundamental do autor é apresentar a Igreja como a comunidade que nasce de Jesus, é assistida pelo Espírito e é chamada a testemunhar aos homens o projeto libertador do Pai.
O Espírito senta-se (kathízô) sobre os apóstolos como novo Mestre que os orienta e lhes guia a vida. Ei-los a falar agora outras línguas, por dádiva do Espírito! Miraculosamente cessam as incompreensões, divisões, invejas, ciúmes, ódios e indiferenças. Nasce um mundo novo de comunhão e comunicação plenas, pois todos se entendem tão bem como se todos tivessem a mesma língua materna, da palavra antes das palavras, divina e humana lalação. É o contrário da Babel, que estabelecera a divisão e a confusão das línguas, a dispersão ou diáspora anárquica e atabalhoada. Os apóstolos falam e cada um dos presentes os ouve falar na sua própria língua. Ora, o intérprete da linguagem dos apóstolos é o Espírito Santo. Por outro lado, o mesmo Espírito Santo os faz falar a variedade das línguas. A era do Espírito é a era da confiança, da intimidade, da ternura, da misericórdia, do amor. Assim, o Pentecostes dos “Atos” é a página programática da Igreja e anuncia o que será o resultado da ação das “testemunhas” de Jesus: a humanidade nova, a antiBabel, nascida da ação do Espírito, onde todos serão capazes de comunicar e de se relacionar como irmãos, porque o Espírito reside no coração de todos como lei suprema, como fonte de amor e de liberdade.
Porém, impõe-se, na comunidade, a atitude de vigilância permanente, pois será sempre grande a tentação de querer levar o Espírito à letra. E aí vem, a propósito, a advertência aos Coríntios, cujo falar em línguas ninguém entende (1Cor 14,2), sendo preciso o recurso a intérpretes (1Cor 14,28). Todos consideraríamos um absurdo a existência dum intérprete entre mãe e bebé para traduzir aquela lalação que os dois tão bem entendem.
Ora, é esta divina lalação do Espírito (alálêtos) (Rm 8,26) – única vez no Novo Testamento – que nos ensina a compreender que “Jesus é Senhor” (1Cor 12,3) e que Deus é Pai (ʼAbbaʼ) (Gl 4,6; Rm 8,15). Repare-se na importância da definição de carisma, no que insistiu hoje o Arcebispo de Braga na sua homilia: “a cada um é dada a manifestação do Espírito para proveito comum” (1Cor 12,7) e “não para proveito próprio” (1Cor 10,33), sendo que o que define o proveito comum é a edificação, não de si mesmo, mas dos outros (1Cor 10,23-24). E dizia o Arcebispo que este proveito ou bem comum se entende para toda a Igreja e toda a sociedade em que é necessário insuflar o espírito do Evangelho. Trata-se de um só e único Senhor, um só e único Espírito, mas espelhado numa enorme diversidade de dons, serviços, ministérios e membros. E estes inúmeros membros formam um só corpo, o corpo de Cristo, que é a Igreja, cuja alma é o Espírito Santo. E, como nos alerta Paulo, é o Espírito Santo que nos ajuda a discernir a validade dos carismas, pois nunca se pode falar de carisma quando se trata de comportamento que pretende garantir privilégios a certas figuras. O verdadeiro “carisma” é o que leva a confessar que “Jesus é o Senhor” (pois não há oposição entre Cristo e o Espírito) e que é útil para o bem da comunidade.  
A tradição fundada na Bíblia situa no Cenáculo as duas cenas acima descritas – a da aparição do Ressuscitado (bem como a que sucedeu 8 dias depois) e a do Pentecostes. É a sala da Ceia Primeira (designada por Última Ceia) que deu origem a tudo, do último serão de Jesus com os discípulos, da Aparição do Senhor aos Apóstolos, da eleição de Matias, da descida pentecostal do Espírito Santo, enfim, o primeiro lugar de encontro da primeira comunidade cristã reunida em oração com Maria-Mãe de Jesus (At 1,13-14), a primeira Sé-Catedral, a primeira sede da Igreja nascente, a mãe de todas as Igrejas, a primeira domus-ecclesia [casa-igreja] do mundo, situada uns 200 metros a sul da muralha de Jerusalém, muito perto da Porta de Sião. O atual edifício remonta ao trabalho dos Franciscanos no século XIV e é sucedâneo de outras construções sucessivamente edificadas e destruídas, desde a Basílica de Santa Sião [Hagía Sion], do século IV. Por se encontrar no quarteirão sul de Jerusalém, o primitivo Cenáculo resistiu à destruição romana (ano 70), pois os romanos atacaram e destruíram a cidade pela parte norte (mais facilmente expugnável).
Associada às cenas susoidentificadas, a sala superior do Cenáculo [15,30m por 9,40m] assemelha-se ao Sinai com os fenómenos lá registados. Deles fala Fílon de Alexandria (± 20 a.C.-50 d.C.):
Deus não tinha boca ou língua, mas, com um prodígio, fez que um rombo se produzisse no ar, que um sopro se articulasse em palavras pondo o ar em movimento. Este transformou-se em fogo que tinha forma de chamas […], e uma voz ressoava do meio no fogo e descia do céu, e esta voz articulava-se no idioma próprio dos ouvintes.
E evoca-se Babel em contraponto. Em Gn 11,7, “ninguém compreendia mais a língua do seu próximo”, o passo que em Atos 2,6, “cada um compreendia na sua própria língua materna”.
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Não são apenas Cristo e os apóstolos que são enviados em missão. Também o Espírito Santo é enviado em missão como Aquele que recebe o que é do Filho (Jo 16,14.15) e que o Filho recebeu do Pai. Tal como o Filho é a transparência do Pai, o Espírito Santo é a transparência do Filho. O ensinamento do Espírito Santo é o mesmo que Jesus fez e que recebeu do Pai, mas vem depois do de Jesus (Jo 14,26) e processa-se, ao invés do de Jesus, não com palavras sensíveis que tocam os órgãos da audição dum público determinado, mas na interioridade da inteligência e do coração de cada ser humano. Este ensinamento é comparável à unção de óleo (chrísma) que penetra lentamente, como diz o Apóstolo: “Vós recebestes a unção (chrísma) que vem do Santo e todos sabeis (oídate)” (1Jo 2,20); ou então: “a unção (chrísma) dele vos ensina (didáskei) acerca de todas as coisas” (1Jo 2,27). É a unção que, penetrando lentamente em nós, ocupa o nosso interior, suaviza as asperezas, cura as dores e, fazendo nascer entre nós a comunidade concreta, mas com sabor e alcance universal, e gerando a comunhão, ensina o que devemos pedir e o que devemos dizer e fazer. Este saber maravilhoso assemelha-nos a Deus, que sabe de nós (Ex 2,25) e nos põe em confronto com Caim, que não sabe do seu irmão (Gn 4,9), e com Pedro, que não sabe de Jesus (Mt 26,70.72.74). O essencial passa a ser a experiência do amor que, no respeito pela liberdade e pelas diferenças, deve unir todas as nações da terra.
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É um ensinamento novo, não exterior, com sons e palavras, mas diretamente inoculado nas pregas da inteligência e do coração. É assim a linguagem nova do Espírito a afetar ao mesmo tempo o português e o chinês, o inglês e o russo, o católico, o muçulmano e o hebreu. É como se, em vez de falarem cada um a sua língua incompreensível para o outro, o português e o chinês entregassem uma flor um ao outro. Assim fala e age o Espírito, Pessoa-Dom, fonte de dons (1Cor 12,3-13), o verdadeiro dom de Deus. Com Ele, a comunidade canta e realiza a opção formulada no salmo 133, salmo de peregrinação – meditação sapiencial que parece contemplar a vida da comunidade de Israel como uma grande família de irmãos, sendo que as imagens do óleo e do orvalho sugerem a necessária fertilidade da terra:
Vede como é bom e agradável que os irmãos vivam unidos! É como óleo perfumado derramado sobre a cabeça, a escorrer pela barba, a barba de Aarão, a escorrer até à orla das suas vestes. É como o orvalho do monte Hermon, que escorre sobre as montanhas de Sião. É ali que o SENHOR dá a sua bênção, a vida para sempre.”.
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Com razão a Liturgia da Palavra nos faz rezar o Salmo 104 que induz a contemplação das obras maravilhosas de Deus, cheias do seu alento, que são a alegria de Deus (Sl 104,31), que, por sua vez, é a nossa alegria (Sl 104,34). Isto é extraordinário porquanto a temática de Deus que se alegra é rara na Escritura. Aparece agora no meio deste mundo novo e maravilhoso como fonte da nossa alegria. Nós somos efetivamente, pela unção batismal e crismal, templo do Espírito Santo; e, por mandato de Cristo, somos do tempo da missão do Espírito, de tal modo que os apóstolos sentiam a forte vinculação do e ao Espírito santo: “O Espírito Santo e nós” (At 15,28).
E, nesta missão, somos e temos uma realidade nova: Deus a habitar em nós (Jo 14,24), Deus connosco (Ap 21), a Cidade nova, a Consolação nova, a Bênção nova, a Paz nova, o Amor novo, não com a medida do mundo, mas com a medida de Deus (Jo 14,27; Sl 67), não com os critérios do mundo, mas com os critérios das bem-aventuranças (vd Mt 5,3-12).
 2019.06.09 – Louro de Carvalho

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