A informação surgiu no passado dia 9 de junho
incluída numa entrevista concedia ao Público
pelo juiz-presidente do TEDH (Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem), tribunal que
serve de guardião da CEDH (Convenção Europeia dos Direitos Humanos) desde 2011.
Em reação a esta notícia, o Bispo do Porto
publicou no site da diocese “a
mensagem 36” em que acusa ironicamente o toque. Com efeito, em dia de
Pentecostes, celebrando os cristãos o Espírito da verdade a quem pedem que
renove a face da terra, parecia surgir o estímulo à difamação, que é um
atentado ao bom nome, reputação e à credibilidade de alguém mediante a
comunicação de factos ou juízos a terceiros. E diz o prelado portuense:
“Isto é, em linguagem que todos
entendam: difame-se. Difame-se, que isso é a coisa mais normal deste mundo.”.
Considerando
que, para “este mundo”, será natural o atropelo à verdade, como o “atestam
diariamente os meios de comunicação social e os muitos que lhes seguem a pisada”
nas redes sociais, assegura que, “para o ‘mundo humanizado’, a difamação e a
calúnia foram, são e serão uma das coisas mais nojentas que se podem produzir,
uma baixeza que degrada o seu autor a um nível infra-humano e o torna assassino
da dignidade do irmão”. Neste contexto, fica definida a grande tarefa dos
cristãos enquanto alma do mundo:
“A eles e a outras pessoas de boa vontade
está confiada a tarefa de manter esta alma como o maior valor de que o mundo
carece. Ouro e prata, joias e outros valores vêm do princípio do mundo. E, por
si, não conseguiram a renovação social. Mas a palavra de ordem ‘Amai-vos uns
aos outros como Eu vos amei’ gerou progresso, construiu civilização, elevou a
dignidade, trouxe ao seio do mundo a alegria e a felicidade.”.
Ora, a base
do amor fraterno, a base da renovação é a verdade. Com efeito, foi para dar
testemunho da verdade que Jesus veio ao mundo e todo aquele que é da verdade
ouve a sua voz (cf Jo 18,37). E Dom
Manuel Linda, citando Plutarco, recordou:
“A inteligência não é um vaso a encher, mas
lenha a fazer arder para que se incendeie no mundo o amor pela verdade”.
E sentenciou:
“Renovar, elevar, sensibilizar, puxar para a
frente o que teima voltar para trás é tarefa do crente. (…) Mas muito mais
urgente e indispensável num mundo que insiste em dirigir-se para metas que já
se rejeitaram no passado. Um mundo que se julga culto, mas que não conhece o
Espírito Santo.”.
***
Porém, a questão não é deste ano. Em 17 de junho
de 2017, no programa “Em Nome da Lei”,
da Rádio Renascença, o advogado e professor de Direito Penal Tiago Geraldo
alertava para o facto de as redes sociais serem um espaço público, “pelo que
quem injuria ou difama alguém de forma gratuita, arrisca ser condenado em
tribunal”. E à questão se devem a injúria e a difamação ser punidas como crime (há pessoas
presas por esta matéria em Portugal) dizia que
“a Europa diz que não”. Assim, “Portugal está longe da Europa ao criminalizar a
injúria e a difamação” e a Europa considera “feudal” a legislação
portuguesa. E o advogado
defende a descriminalização aduzindo
que devem continuar a constituir um facto ilícito e, por isso, dar direito a
uma indemnização, mas devem ser retirados do catálogo de crimes, passando do
foro penal para o civil. E justifica:
“O direito penal, a meu ver, não está a desempenhar eficazmente o seu
papel. Para já não tem qualquer efeito dissuasor. Depois porque tem uma malha,
e a malha, como vem a ser interpretada pelos nossos tribunais, é demasiado
ampla, ou seja, permite que se atribua relevância penal a comportamentos que
manifestamente não são ofensivos da honra de ninguém. Depois acresce esta
disfunção processual de ser um crime processual e, por isso, mais fácil de
levar a julgamento.”.
Obviamente
cabe ao legislador português seguir ou não o exemplo da maioria dos países
europeus, que já descriminalizaram a difamação e a injúria.
Luís Júdice,
um dos subscritores duma petição que pede a descriminalização da difamação e da
injúria, aduz que o CE (Conselho da Europa) considera obsoleta a nossa legislação explicitando:
“Há uma convenção da assembleia do Conselho Europeu que considera feudal
e obsoleta a nossa legislação. Termina assim: ‘A legislação portuguesa em matéria de difamação deve ser reformulada de
forma a prever normas claras de defesa, incluindo a verdade, a publicação
razoável e a opinião, e qualquer indemnização atribuída deve ser razoável e
proporcional ao dano causado’.”.
O TEDH já
condenou Portugal mais de 20 vezes, por entender que as condenações decididas
pela nossa Justiça violam o artigo 10.º da CEDH. Em 2017, havia há 11 pessoas a
cumprir pena de prisão por esses crimes.
Paulo de
Morais, antigo candidato às eleições presidenciais de 2016 e vice-presidente da
ATI (Associação
Transparência e Integridade), fora alvo
de 9 processos movidos por personalidades públicas e privadas que se sentiram
afetadas por afirmações suas. Disse aquele cidadão:
“Gostaria de não ser vítima deste ‘bullying
jurídico’ permanente, mas a verdade é que há um conjunto de entidades, em
particular aquelas que beneficiam de negócios do Estado, que estão metidas em
mecanismos de corrupção e tráfego de influências, que não gostam que essa
realidade seja estampada em público. Desde sociedades de advogados a empresas
que beneficiam de negócios do Estado até políticos, tenho tido um conjunto de
perseguições judiciais, na medida em que talvez gostassem que eu e outros
estivéssemos calados.”.
Defende que
quem anda na vida pública tem de prestar contas de todos os aspetos da sua
vida, com exceção da sua vida intima, e diz que há entidades coletivas e
pessoas individuais que usam os meios de tutela jurídica para tentar silenciar quem
denuncia a corrupção. É “bullying” com
efeito dissuasor sobre toda a sociedade: as pessoas não denunciam, por recearem
processos.
Geraldo
lembra que, por força das mais de 20 condenações de que Portugal foi alvo, tem
havido aproximação da jurisprudência dos tribunais às posições do TEDH, que
tende a valorizar mais a liberdade de expressão que a honra e o bom nome. Não
obstante, encontrou-se na jurisprudência adotada em 2017 uma decisão judicial
que considera injuriosa a palavra “estúpido”:
“Há expressões que associamos a palavras completamente inócuas, por
exemplo num acórdão deste ano a palavra “estúpido” é considerada uma palavra
suscetível de comportar uma ofensa à honra”.
Para a maior
parte dos países da UE, a difamação e a injúria não constituem crime, ao invés
do que sucede em Portugal, em que, por força da legislação e da interpretação
que dela fazem os juízes, a balança da Justiça pesa mais para o lado da
proteção da honra que para o da liberdade de expressão, o que tem originado
condenações no TEDH.
***
Em maio, o
professor universitário grego Linos-Alexandre Sicilianos (59 anos) tomou posse como presidente do TEDH. Esteve
recentemente na UCP – Porto, num congresso organizado pela Ordem dos Advogados
para assinalar os 40 anos da ratificação portuguesa da CEDH.
Na sua
entrevista ao Público, falou de
várias matérias em questão, designadamente os atrasos na Justiça como problema
europeu, a detenção por período indefinido, o uso excessivo da força pelas polícias,
os migrantes e refugiados a liberdade de expressão e a difamação e a injúria.
Quanto aos
migrantes e refugiados, o TEDH reforçou o princípio da não devolução, nos
termos da Convenção de Genebra, deu orientações aos membros do CE para
políticas de refugiados, legalidade e condições de detenção, acompanhamento dos
menores, condições de subsistência. Trata-se apenas de orientações, pois os
Estados têm o direito de regular as condições de entrada e residência desde que
não violem os direitos fundamentais.
No âmbito do
combate ao terrorismo que alguns países adotaram após do 11 Setembro, o TEDH
tem recebido mais queixas. Disse o juiz-presidente:
“Em muitos casos reconhecemos a dificuldade
dos Estados em combater o terrorismo, mas ao mesmo tempo afirmamos com
veemência a proibição absoluta de tratamentos desumanos. Não podemos admitir a
tortura mesmo contra alegados terroristas. A detenção por um período indefinido
é um anátema para o Estado de direito como dissemos relativamente ao transporte
da CIA de alegados terroristas para Guantánamo, que passaram por diversos
países europeus.”.
Em relação a
europeus que saíram para se aliarem a grupos terroristas (como o
Estado Islâmico) e querem
regressar ao país de origem, que não os quer de volta, havendo até crianças
envolvidas, disse que deve ser tido em consideração “o princípio do melhor
interesse da criança”, sendo preciso “fazer um balanço justo entre interesses
em conflito”, os gerais e os da criança, não havendo “uma solução única para
todos os casos”, pois “depende da situação concreta”.
Quanto ao
direito de regresso dos adultos, referiu:
“Muitos dos Estados-membros do CE
ratificaram o 4.º Protocolo da Convenção e aí está previsto que toda a gente
tem direito de sair do seu próprio país e de lá regressar. (…) Ao regressar,
também pode ter de enfrentar consequências. (…) Mas é impossível estes Estados
recusarem o regresso de cidadãos nacionais. A não ser que se prive um cidadão
da sua nacionalidade. Mas isso levanta outras questões. Porque também há duas
convenções das Nações Unidas a combater a criação de apátridas.”.
Sobre a
eutanásia, lembra que “o direito à vida não incluiu o direito de adicionar a
morte”, mas a análise de casos à luz do art.º 8.º da CEDH leva ao direito ao
respeito da vida privada, onde se inclui o direito de escolher as modalidades
da morte como um assunto de privacidade.
Pensa que a liberdade de expressão é um
assunto estrutural em Portugal e não crê que haja falta sistémica de respeito
pela atividade jornalística e
acha a detenção
por um período indefinido como um anátema para o Estado de direito. Refere que as condenações do Estado português no TEDH por atrasos na
Justiça se reduziram porque em 2015 se reconheceu que os tribunais nacionais
estavam aptos a decidir estes casos. Assim, só deverão subir ao TEDH, se os
tribunais nacionais não estiverem a funcionar bem. Diz haver muitos casos sobre as condições de detenção nas prisões e noutros centros na
Europa, sendo que um em cada 5 casos pendentes é deste tipo. As condições nas
prisões pioraram com a crise económica. O corte nos orçamentos afetou as
condições nas prisões. Por consequência, há Estados a mexer na política
criminal para responder ao problema de sobrelotação das cadeias, tanto nos
países pobres como nos ricos. E, entre os casos mais graves da violação dos
direitos humanos na Europa, contam-se, além das condições prisionais, casos
sobre a independência do poder judicial, maioritariamente por intervenções do
poder executivo, casos relacionados com conflitos armados e situações de
tortura, uso excessivo da força por parte das forças policiais e casos
relacionados com a liberdade de expressão e a liberdade dos jornalistas.
Alguns países
não cumprem parte das decisões do TEDH – problema da autoridade de todo o
sistema, mas mais do Comité de Ministros do Conselho da Europa, que é
responsável por supervisionar o cumprimento das decisões do tribunal. E disse o
juiz-presidente:
“Este é um mecanismo único no mundo e muito
importante para a credibilidade do sistema. Nenhum outro sistema de proteção de
Direitos Humanos tem um órgão político para supervisionar o cumprimento das
decisões. Apenas uma decisão pode ter efeito em milhares de casos similares.”.
***
É sobretudo
no confronto entre a liberdade de expressão e o direito à honra e ao bom nome
que se coloca a questão da descriminalização da difamação e da injúria. E,
apesar de Portugal ter sido condenado pela forma como condenou jornalistas (e meios de comunicação) por crimes de difamação, o juiz não entende “que se
justifique uma mudança geral na legislação”, pois a liberdade de expressão é
assunto estrutural em Portugal, não há uma falta sistémica de respeito pela
atividade jornalística, embora haja casos isolados, matéria para o sistema judicial
lidar.
Depois, há
casos de condenados por difamação por escreverem num livro de reclamações ou
numa denúncia às autoridades que nunca sequer foi divulgada publicamente. E,
sobre isto, o juiz-presidente do TEDH comenta:
“O crime de difamação existe em muitos
países. Tudo depende de como a lei é aplicada. A tendência na Europa é
abolir a difamação como um crime. Essas questões podem ser resolvidas pelos
tribunais cíveis e podem dar azo a uma indemnização. No TEDH, dizemos que impor
uma sanção privativa da liberdade, mesmo condicional, é, em muitos casos,
desproporcional. A não ser que seja num caso de incitação ao ódio, casos
relacionados com expressões racistas. Nestes casos de limites de mau uso da
liberdade de expressão então pode haver sanções criminais.”.
Entende que
“normalmente uma sanção criminal será desproporcionada” e recorda que “há
recomendações da assembleia do CE para abolir a difamação como crime”, passando
a ser matéria a analisar pelos tribunais cíveis.
Afinal, não
se trata de apenas uma tendência, mas de movimento ancorado numa recomendação
duma instância judicial prestigiada!
***
Não
parece que a criminalização da difamação e da injúria atente “per se” contra o art.º 10.º da CEDH. Na
verdade, o normativo estabelece que “qualquer pessoa tem direito à liberdade de
expressão”, que abrange “a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de
transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer
autoridades públicas e sem considerações de fronteiras”. Porém, o artigo “não
impede que os Estados submetam” as empresas de radiodifusão, cinematografia ou
televisão a “regime de autorização prévia”. E dispõe que “o exercício destas
liberdades”, por implicar responsabilidades e deveres, pode ser submetido a “formalidades,
condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam
providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança
nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e
a prevenção do crime, a proteção da saúde ou da moral, a proteção da honra ou
dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais,
ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial”.
Dizer
que a nossa legislação é feudal, medieval ou obsoleta não passa de tirada de
mau gosto. E, pelos vistos, a tendência para a descriminalização não decorre de
uma doutrina sólida, mas do objetivo de não sobrelotar as prisões. Aliás, a
nossa Constituição, revista em 2005, faz anteceder a liberdade de expressão e informação (art.º 37.º), do direito de todos “à identidade pessoal, ao
desenvolvimento da personalidade, à capacidade
civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da
intimidade da vida privada e
familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação” (art.º
26.º/1). Assim, no
art.º 180.º do Código Penal, a difamação implica que alguém se dirija a terceiro a “imputar a outra pessoa, mesmo sob
a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua
honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo”; e, segundo
o art.º 181.º, a injúria comporta que alguém se dirija diretamente a outra pessoa, “imputando-lhe factos, mesmo sob a forma
de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração”
(equiparando-se à difamação e injúria verbais as feitas por
escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão – art.º
182.º).
***
Não me
apraz a criminalização, que dificilmente levará a uma penalização eficaz em
termos de multa convertível em prisão ou prisão (efetivas ou
suspensas). Em vez
de apreciada como crime contra a honra (punível
com pena de prisão até 6 meses ou de multa até 240 dias, tratando-se de
difamação, ou com pena de prisão até 3 meses ou de multa até 120 dias,
tratando-se de injúria)
pode muito bem ser apreciada no âmbito da contraordenação (punível com coimas e processada em entidades administrativas com recurso
para os Tribunais),
de que pode resultar coima e indemnização por danos morais ou não patrimoniais.
O que interessa é que ao ato ilícito corresponda uma penalização eficaz,
proporcionada e dissuasora e, sobretudo, que prevaleça a verdade e a dignidade
da pessoa.
2019.06.13 –
Louro de Carvalho
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