quinta-feira, 13 de junho de 2019

A tendência na Europa é abolir a difamação como crime


A informação surgiu no passado dia 9 de junho incluída numa entrevista concedia ao Público pelo juiz-presidente do TEDH (Tribunal Europeu dos Direitos do Homem), tribunal que serve de guardião da CEDH (Convenção Europeia dos Direitos Humanos) desde 2011.
Em reação a esta notícia, o Bispo do Porto publicou no site da diocese “a mensagem 36” em que acusa ironicamente o toque. Com efeito, em dia de Pentecostes, celebrando os cristãos o Espírito da verdade a quem pedem que renove a face da terra, parecia surgir o estímulo à difamação, que é um atentado ao bom nome, reputação e à credibilidade de alguém mediante a comunicação de factos ou juízos a terceiros. E diz o prelado portuense:
Isto é, em linguagem que todos entendam: difame-se. Difame-se, que isso é a coisa mais normal deste mundo.”.
Considerando que, para “este mundo”, será natural o atropelo à verdade, como o “atestam diariamente os meios de comunicação social e os muitos que lhes seguem a pisada” nas redes sociais, assegura que, “para o ‘mundo humanizado’, a difamação e a calúnia foram, são e serão uma das coisas mais nojentas que se podem produzir, uma baixeza que degrada o seu autor a um nível infra-humano e o torna assassino da dignidade do irmão”. Neste contexto, fica definida a grande tarefa dos cristãos enquanto alma do mundo:
A eles e a outras pessoas de boa vontade está confiada a tarefa de manter esta alma como o maior valor de que o mundo carece. Ouro e prata, joias e outros valores vêm do princípio do mundo. E, por si, não conseguiram a renovação social. Mas a palavra de ordem ‘Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei’ gerou progresso, construiu civilização, elevou a dignidade, trouxe ao seio do mundo a alegria e a felicidade.”.
Ora, a base do amor fraterno, a base da renovação é a verdade. Com efeito, foi para dar testemunho da verdade que Jesus veio ao mundo e todo aquele que é da verdade ouve a sua voz (cf Jo 18,37). E Dom Manuel Linda, citando Plutarco, recordou:
A inteligência não é um vaso a encher, mas lenha a fazer arder para que se incendeie no mundo o amor pela verdade”.
E sentenciou:
Renovar, elevar, sensibilizar, puxar para a frente o que teima voltar para trás é tarefa do crente. (…) Mas muito mais urgente e indispensável num mundo que insiste em dirigir-se para metas que já se rejeitaram no passado. Um mundo que se julga culto, mas que não conhece o Espírito Santo.”.
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Porém, a questão não é deste ano. Em 17 de junho de 2017, no programa “Em Nome da Lei”, da Rádio Renascença, o advogado e professor de Direito Penal Tiago Geraldo alertava para o facto de as redes sociais serem um espaço público, “pelo que quem injuria ou difama alguém de forma gratuita, arrisca ser condenado em tribunal”. E à questão se devem a injúria e a difamação ser punidas como crime (há pessoas presas por esta matéria em Portugal) dizia que “a Europa diz que não”. Assim, “Portugal está longe da Europa ao criminalizar a injúria e a difamação” e a Europa considera “feudal” a legislação portuguesa. E o advogado defende a descriminalização aduzindo que devem continuar a constituir um facto ilícito e, por isso, dar direito a uma indemnização, mas devem ser retirados do catálogo de crimes, passando do foro penal para o civil. E justifica:
O direito penal, a meu ver, não está a desempenhar eficazmente o seu papel. Para já não tem qualquer efeito dissuasor. Depois porque tem uma malha, e a malha, como vem a ser interpretada pelos nossos tribunais, é demasiado ampla, ou seja, permite que se atribua relevância penal a comportamentos que manifestamente não são ofensivos da honra de ninguém. Depois acresce esta disfunção processual de ser um crime processual e, por isso, mais fácil de levar a julgamento.”.
Obviamente cabe ao legislador português seguir ou não o exemplo da maioria dos países europeus, que já descriminalizaram a difamação e a injúria.
Luís Júdice, um dos subscritores duma petição que pede a descriminalização da difamação e da injúria, aduz que o CE (Conselho da Europa) considera obsoleta a nossa legislação explicitando:
Há uma convenção da assembleia do Conselho Europeu que considera feudal e obsoleta a nossa legislação. Termina assim: ‘A legislação portuguesa em matéria de difamação deve ser reformulada de forma a prever normas claras de defesa, incluindo a verdade, a publicação razoável e a opinião, e qualquer indemnização atribuída deve ser razoável e proporcional ao dano causado’.”.
O TEDH já condenou Portugal mais de 20 vezes, por entender que as condenações decididas pela nossa Justiça violam o artigo 10.º da CEDH. Em 2017, havia há 11 pessoas a cumprir pena de prisão por esses crimes.
Paulo de Morais, antigo candidato às eleições presidenciais de 2016 e vice-presidente da ATI (Associação Transparência e Integridade), fora alvo de 9 processos movidos por personalidades públicas e privadas que se sentiram afetadas por afirmações suas. Disse aquele cidadão:
Gostaria de não ser vítima deste ‘bullying jurídico’ permanente, mas a verdade é que há um conjunto de entidades, em particular aquelas que beneficiam de negócios do Estado, que estão metidas em mecanismos de corrupção e tráfego de influências, que não gostam que essa realidade seja estampada em público. Desde sociedades de advogados a empresas que beneficiam de negócios do Estado até políticos, tenho tido um conjunto de perseguições judiciais, na medida em que talvez gostassem que eu e outros estivéssemos calados.”.
Defende que quem anda na vida pública tem de prestar contas de todos os aspetos da sua vida, com exceção da sua vida intima, e diz que há entidades coletivas e pessoas individuais que usam os meios de tutela jurídica para tentar silenciar quem denuncia a corrupção. É “bullying” com efeito dissuasor sobre toda a sociedade: as pessoas não denunciam, por recearem processos.
Geraldo lembra que, por força das mais de 20 condenações de que Portugal foi alvo, tem havido aproximação da jurisprudência dos tribunais às posições do TEDH, que tende a valorizar mais a liberdade de expressão que a honra e o bom nome. Não obstante, encontrou-se na jurisprudência adotada em 2017 uma decisão judicial que considera injuriosa a palavra “estúpido”:
Há expressões que associamos a palavras completamente inócuas, por exemplo num acórdão deste ano a palavra “estúpido” é considerada uma palavra suscetível de comportar uma ofensa à honra”.
Para a maior parte dos países da UE, a difamação e a injúria não constituem crime, ao invés do que sucede em Portugal, em que, por força da legislação e da interpretação que dela fazem os juízes, a balança da Justiça pesa mais para o lado da proteção da honra que para o da liberdade de expressão, o que tem originado condenações no TEDH.
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Em maio, o professor universitário grego Linos-Alexandre Sicilianos (59 anos) tomou posse como presidente do TEDH. Esteve recentemente na UCP – Porto, num congresso organizado pela Ordem dos Advogados para assinalar os 40 anos da ratificação portuguesa da CEDH.
Na sua entrevista ao Público, falou de várias matérias em questão, designadamente os atrasos na Justiça como problema europeu, a detenção por período indefinido, o uso excessivo da força pelas polícias, os migrantes e refugiados a liberdade de expressão e a difamação e a injúria.
Quanto aos migrantes e refugiados, o TEDH reforçou o princípio da não devolução, nos termos da Convenção de Genebra, deu orientações aos membros do CE para políticas de refugiados, legalidade e condições de detenção, acompanhamento dos menores, condições de subsistência. Trata-se apenas de orientações, pois os Estados têm o direito de regular as condições de entrada e residência desde que não violem os direitos fundamentais.
No âmbito do combate ao terrorismo que alguns países adotaram após do 11 Setembro, o TEDH tem recebido mais queixas. Disse o juiz-presidente:
Em muitos casos reconhecemos a dificuldade dos Estados em combater o terrorismo, mas ao mesmo tempo afirmamos com veemência a proibição absoluta de tratamentos desumanos. Não podemos admitir a tortura mesmo contra alegados terroristas. A detenção por um período indefinido é um anátema para o Estado de direito como dissemos relativamente ao transporte da CIA de alegados terroristas para Guantánamo, que passaram por diversos países europeus.”.
Em relação a europeus que saíram para se aliarem a grupos terroristas (como o Estado Islâmico) e querem regressar ao país de origem, que não os quer de volta, havendo até crianças envolvidas, disse que deve ser tido em consideração “o princípio do melhor interesse da criança”, sendo preciso “fazer um balanço justo entre interesses em conflito”, os gerais e os da criança, não havendo “uma solução única para todos os casos”, pois “depende da situação concreta”.
Quanto ao direito de regresso dos adultos, referiu:
Muitos dos Estados-membros do CE ratificaram o 4.º Protocolo da Convenção e aí está previsto que toda a gente tem direito de sair do seu próprio país e de lá regressar. (…) Ao regressar, também pode ter de enfrentar consequências. (…) Mas é impossível estes Estados recusarem o regresso de cidadãos nacionais. A não ser que se prive um cidadão da sua nacionalidade. Mas isso levanta outras questões. Porque também há duas convenções das Nações Unidas a combater a criação de apátridas.”.
Sobre a eutanásia, lembra que “o direito à vida não incluiu o direito de adicionar a morte”, mas a análise de casos à luz do art.º 8.º da CEDH leva ao direito ao respeito da vida privada, onde se inclui o direito de escolher as modalidades da morte como um assunto de privacidade.
Pensa que a liberdade de expressão é um assunto estrutural em Portugal e não crê que haja falta sistémica de respeito pela atividade jornalística e acha a detenção por um período indefinido como um anátema para o Estado de direito. Refere que as condenações do Estado português no TEDH por atrasos na Justiça se reduziram porque em 2015 se reconheceu que os tribunais nacionais estavam aptos a decidir estes casos. Assim, só deverão subir ao TEDH, se os tribunais nacionais não estiverem a funcionar bem. Diz haver muitos casos sobre as condições de detenção nas prisões e noutros centros na Europa, sendo que um em cada 5 casos pendentes é deste tipo. As condições nas prisões pioraram com a crise económica. O corte nos orçamentos afetou as condições nas prisões. Por consequência, há Estados a mexer na política criminal para responder ao problema de sobrelotação das cadeias, tanto nos países pobres como nos ricos. E, entre os casos mais graves da violação dos direitos humanos na Europa, contam-se, além das condições prisionais, casos sobre a independência do poder judicial, maioritariamente por intervenções do poder executivo, casos relacionados com conflitos armados e situações de tortura, uso excessivo da força por parte das forças policiais e casos relacionados com a liberdade de expressão e a liberdade dos jornalistas.
Alguns países não cumprem parte das decisões do TEDH – problema da autoridade de todo o sistema, mas mais do Comité de Ministros do Conselho da Europa, que é responsável por supervisionar o cumprimento das decisões do tribunal. E disse o juiz-presidente:
Este é um mecanismo único no mundo e muito importante para a credibilidade do sistema. Nenhum outro sistema de proteção de Direitos Humanos tem um órgão político para supervisionar o cumprimento das decisões. Apenas uma decisão pode ter efeito em milhares de casos similares.”.
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É sobretudo no confronto entre a liberdade de expressão e o direito à honra e ao bom nome que se coloca a questão da descriminalização da difamação e da injúria. E, apesar de Portugal ter sido condenado pela forma como condenou jornalistas (e meios de comunicação) por crimes de difamação, o juiz não entende “que se justifique uma mudança geral na legislação”, pois a liberdade de expressão é assunto estrutural em Portugal, não há uma falta sistémica de respeito pela atividade jornalística, embora haja casos isolados, matéria para o sistema judicial lidar.
Depois, há casos de condenados por difamação por escreverem num livro de reclamações ou numa denúncia às autoridades que nunca sequer foi divulgada publicamente. E, sobre isto, o juiz-presidente do TEDH comenta:
O crime de difamação existe em muitos países. Tudo depende de como a lei é aplicada. A tendência na Europa é abolir a difamação como um crime. Essas questões podem ser resolvidas pelos tribunais cíveis e podem dar azo a uma indemnização. No TEDH, dizemos que impor uma sanção privativa da liberdade, mesmo condicional, é, em muitos casos, desproporcional. A não ser que seja num caso de incitação ao ódio, casos relacionados com expressões racistas. Nestes casos de limites de mau uso da liberdade de expressão então pode haver sanções criminais.”.
Entende que “normalmente uma sanção criminal será desproporcionada” e recorda que “há recomendações da assembleia do CE para abolir a difamação como crime”, passando a ser matéria a analisar pelos tribunais cíveis.
Afinal, não se trata de apenas uma tendência, mas de movimento ancorado numa recomendação duma instância judicial prestigiada! 
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Não parece que a criminalização da difamação e da injúria atente “per se” contra o art.º 10.º da CEDH. Na verdade, o normativo estabelece que “qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão”, que abrange “a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras”. Porém, o artigo “não impede que os Estados submetam” as empresas de radiodifusão, cinematografia ou televisão a “regime de autorização prévia”. E dispõe que “o exercício destas liberdades”, por implicar responsabilidades e deveres, pode ser submetido a “formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a proteção da saúde ou da moral, a proteção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial”.
Dizer que a nossa legislação é feudal, medieval ou obsoleta não passa de tirada de mau gosto. E, pelos vistos, a tendência para a descriminalização não decorre de uma doutrina sólida, mas do objetivo de não sobrelotar as prisões. Aliás, a nossa Constituição, revista em 2005, faz anteceder a liberdade de expressão e informação (art.º 37.º), do direito de todos “à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação” (art.º 26.º/1). Assim, no art.º 180.º do Código Penal, a difamação implica que alguém se dirija a terceiro a “imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo”; e, segundo o art.º 181.º, a injúria comporta que alguém se dirija diretamente a outra pessoa, “imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração” (equiparando-se à difamação e injúria verbais as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão – art.º 182.º).
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Não me apraz a criminalização, que dificilmente levará a uma penalização eficaz em termos de multa convertível em prisão ou prisão (efetivas ou suspensas). Em vez de apreciada como crime contra a honra (punível com pena de prisão até 6 meses ou de multa até 240 dias, tratando-se de difamação, ou com pena de prisão até 3 meses ou de multa até 120 dias, tratando-se de injúria) pode muito bem ser apreciada no âmbito da contraordenação (punível com coimas e processada em entidades administrativas com recurso para os Tribunais), de que pode resultar coima e indemnização por danos morais ou não patrimoniais. O que interessa é que ao ato ilícito corresponda uma penalização eficaz, proporcionada e dissuasora e, sobretudo, que prevaleça a verdade e a dignidade da pessoa.
2019.06.13 – Louro de Carvalho    

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