segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Espírito e especificidade da Cerimónia de Chá no Japão

 

Tendo lido o romance “Xogum”, de James Clavell, e relido o livro “Rodrigues, o Intérprete”, de Michael Cooper, que aludem à Cerimónia de Chá, descrita pelo Padre João Rodrigues, de Sernancelhe (N. 1562 – M. Macau, 1-08-1633), com minúcia e arte, aqui deixo o historial do chá no Japão e os elementos que enformam a Cerimónia, bem como o seu espírito e filosofia. Ademais, é de referir que o romance “A última concubina”, de Lesley Downer, também alude várias vezes à toma do chá, e é de recordar que o conhecimento que os portugueses colheram do chá na relação com o Oriente e a generalização que fizeram do seu uso levaram Dona Catarina de Bragança, filha de Dom João IV, dada em casamento a Carlos II, rei da Inglaterra, a introduzir o hábito do chá na corte britânica, de forma que a monarca passou a promover festas regadas a chá e a realeza inglesa facilmente aderiu à tradição de tomar um chazinho em confraternizações.    

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A Cerimónia de Chá no Japão – “Chanoyu”, que significa “água quente para chá” ou “caminho do chá” – assume importância fulcral na cultura tradicional japonesa e carateriza-se por servir e beber o Matcha, um chá verde pulverizado, em ambiente de simplicidade e boa vontade.

Porém, não se trata apenas de saborear o chá. Os mestres dizem que a cerimónia leva ao estado de tranquilidade, experimentando o praticante momentos de paz. Por isso, o chá, mais que uma bebida, é uma filosofia e um relevante elemento do estilo de vida.

O chá, originário da China, foi introduzido no Japão, no século VI, pelos monges budistas que descobriram que o chá aumentava a concentração durante a meditação; e, durante muito tempo, foi cultivado e consumido apenas pelos monges, que o utilizavam para se manterem acordados durante as suas meditações noturnas.

Porém, a cerimónia formal da tomada do matcha (chá verde em pó) só foi introduzida no final do século XII pelo monge Eisai, quando o Zen Budismo era introduzido no solo japonês. Nessa altura, era uma bebida preciosa, usada também para fins medicinais. Entretanto, o costume de beber Matcha difundiu-se entre os sacerdotes dos Templos Budistas e as classes superiores, acabando por se transformar em filosofia de vida através do “Chado” – Caminho do Chá – materializado no ritual “Chanoyu”, ou seja, a Cerimónia de Chá.

Beber chá viria a popularizar-se entre outros grupos da sociedade japonesa no século XVI, no período Momoyama, altura em que Sen Rikyu, considerado o mestre japonês da cerimónia do Japão, estabeleceu um conjunto de ensinamentos que persistem até aos dias de hoje.

Praticado exclusivamente por homens, somente no final do século XIX o Chado foi franqueado às mulheres. Ennosai, 13.º grão-mestre de Urassenke, ensinou essa arte às viúvas e órfãos da guerra sino-japonesa (1894/95) para sobreviverem como professoras de chá. E, a partir daí, estendeu-se a todas as classes sociais através de aulas em escolas e templos.

Com o propósito de alcançar “a paz numa xícara de chá”, os mestres dedicaram-se à difusão da filosofia do chá no Ocidente. O ritual, a concentração, o desenvolvimento rítmico da Cerimónia de Chá levam, segundo os mestres, à meditação, à tranquilidade e à paz superior.

A prática de tomar chá verde em pó aportou, como se disse, ao Japão com os monges zen-budistas que chegavam da China, no século XII, mas, com o desenrolar do tempo, o seu uso difundiu-se entre samurais e às comunidades rurais. Tornaram-se comuns as reuniões de chá ou “Cha-yoriai”, em que se promoviam concursos de provadores de chá com ostensivas exibições de riqueza e apostas vultosas.

No final do século XV, o monge zen-budista Murata Shuko (1422/1502) passou a incentivar a prática da cerâmica de chá em salas pequenas, com poucos utensílios, muitos de procedência doméstica. E outro monge, Sen no Rikyu (1522/1591), ligado à filosofia zen, estabeleceu a estrutura definitiva da Cerimónia de Chá, no final do século XVI, no período Momoyama, o mais ostentador da história japonesa, e pregava o espírito wabi (desprendimento, simplicidade, eliminação do supérfluo) para a Cerimónia de Chá, que se tornara, ao longo dos anos, a essência da arte japonesa.

Segundo Rikyu, os princípios básicos do Caminho do chá são: Wa (Harmonia), Kei (Respeito), Sei (Pureza) e Jaku (Tranquilidade), competindo ao Chajin (homem do chá) criar um ambiente através do ritual e total participação, onde todos sintam e vivam intensamente tais princípios, por um momento único e irrepetível. E, no atinente a estes princípios básicos, é de relevar:

A Harmonia resulta da interação do anfitrião, do convidado, da comida servida, dos utensílios usados e da natureza. Com efeito, antes do chá, é oferecido doce e/ou uma leve refeição ao convidado cujos pratos estarão de acordo com a estação do ano.

O Respeito tem a ver com a sinceridade do coração, aberto para um relacionamento com o ser humano e a natureza, reconhecendo a dignidade inata de cada um.

A Pureza está conexa com o ato de limpar nos preparativos, no próprio serviço do chá e na limpeza após a cerimónia, colocando em ordem o próprio íntimo – ordem que é essencial.

E a Tranquilidade relaciona-se intrinsecamente com o conceito estético do chá e alcança-se através da prática constante, no nosso quotidiano, dos três primeiros princípios básicos.

Segundo Rikyu, o ponto essencial do Caminho do Chá é que os seus princípios são dirigidos à totalidade da existência e não apenas aos momentos vividos na sala de chá. É uma disciplina a ser treinada durante a vida toda, sendo necessários, pelo menos, 10 anos para o domínio de todas as cambiantes relativas à cerimónia, que tem seguido intacta até aos nossos dias e que se reduz a: aquecer a água; preparar o chá; e bebê-lo corretamente. Todavia, cada cerimónia é única e não pode ser reproduzida. Por isso, a aprendizagem das regras e preceitos de servir chá é exigente e difícil, implicando também conhecimentos das artes tradicionais, nomeadamente ao nível da arquitetura (salas de chá), jardinagem paisagística e artes florais.

Tal como a cerimónia, também se mantêm até aos dias atuais o desenvolvimento da arquitetura, a jardinagem paisagística, a cerâmica e as artes florais, bem como a apreciação do cómodo onde é realizada, o jardim a ele contíguo, os utensílios utilizados no serviço do chá, a decoração do ambiente como um rolo suspenso ou um “chabana” (arrojo floral para a cerimónia). Foi o espírito da Chanoyu, representando a beleza da simplicidade e da harmonia com a natureza, que moldou a base das formas tradicionais da cultura japonesa, que se mantém intacta mais de um milénio.

O itinerário da cerimónia é, em geral, como segue. Quando chegam, os participantes passam um portão japonês com o intuito de deixar para trás as preocupações do quotidiano. Depois, seguem o caminho até à casa de chá, uma casa simples em madeira. Antes de entrarem, lavam as mãos e a boca num poço. A entrada da casa de chá é baixa para que todos os participantes entrem de joelhos. Os samurais tinham que deixar a espada do lado de fora. Ao entrarem de joelhos, todas as pessoas assumem a mesma importância. Os sapatos ficam à entrada da casa e, uma vez dentro desta, os participantes sentam-se no chão à espera do mestre de chá. Dentro da casa há sempre uma tokonoma (cantinho) com uma caligrafia e uma flor da estação do ano. A cerimónia ocorre em silêncio. Porém, há muitas maneiras de realizar a Cerimónia de Chá, que varia de acordo com a escola a que o anfitrião pertence, a ocasião e a estação do ano, mas, nos elementos essenciais, há uma semelhança básica.

A tradicional Cerimónia de Chá desenvolve-se em 4 sessões com a duração de cerca de 4 horas.

Na 1.ª sessão, é servida uma refeição ligeira, denominada “kaiseki”: os convidados, cinco ao todo, reúnem-se na sala de espera. O anfitrião comparece e condu-los pelo caminho ajardinado até à sala de chá. Num determinado lugar do caminho há uma bacia de pedra cheia de água fresca, onde lavam as mãos e a boca. A entrada para a sala é muito pequena, o que obriga os convidados a rastejar para atravessá-la numa demonstração de humildade.

Ao entrar na sala, provida de fogareiro, fixo ou portátil, para a chaleira, cada convidado ajoelha-se à frente do “tokonoma” ou nicho e faz uma reverência respeitosa. Em seguida, com o leque dobrável diante de si, admira o rolo suspenso na parede do “tokonoma”. A seguir, olha do mesmo modo o fogareiro. Quando todos os convidados concluírem a contemplação desses objetos, tomam os seus assentos, com o principal no lugar mais próximo do anfitrião. Depois de o anfitrião e os convidados trocarem cumprimentos, a “kaiseki” é servida, com os doces e a leve refeição termina.

A 2.ª sessão constitui o momento em que os convidados fazem o “nakadachi” (breve pausa). Por sugestão do anfitrião, os convidados retiram-se para o banco de espera existente no jardim interno próximo da sala.

Na 3.ª sessão, ou o denominado “Goza-iri”, a etapa principal da cerimónia, é servido o chá. Primeiro, é tocado pelo anfitrião um gongo de metal próximo da sala para assinalar o início da cerimónia principal. E os convidados erguem-se neste momento. É costume fazer soar o gongo cinco ou sete vezes. Depois de repetir o rito de purificação na bacia, os convidados entram novamente na sala. Os biombos de junco suspensos do lado de fora das janelas são retirados por um assistente a fim de se tornar mais claro o ambiente. O rolo suspenso desaparece e, no “tokonoma”, há um vaso com flores. O recetáculo para água fresca e o recipiente de cerâmica para o chá estão em posição antes que o anfitrião entre trazendo a tigela de chá com a vassourinha e a concha de chá dentro dela. Os convidados examinam e admiram as flores e a chaleira como fizeram no início da 1.ª sessão. O anfitrião retira-se para a sala de preparo e logo retorna com o recetáculo para água servida, a cocha e o descanso para da tampa da chaleira ou cocha. Depois, o anfitrião limpa o recipiente de chá e a concha com pano especial denominado “fukusa” e faz o mesmo com a vassourinha na tigela de chá contendo água quente tirada da chaleira. O anfitrião esvazia a tigela despejando a água no recetáculo de água servida e limpa a tigela com um “chakin” ou pedaço de tecido de linho. O anfitrião ergue a cocha de chá e o recipiente e põe “matcha” (três conchas para cada convidado) na tigela e tira uma concha cheia de água quente da chaleira, pondo cerca de um terço dela na tigela e devolvendo o que sobrou à chaleira. A seguir, bate a mistura com a vassourinha até que se transforme em algo que lembre uma muito grossa sopa de ervilha verde, tanto na consistência como na cor.

O chá feito é denominado “koicha”. O “matcha” usado aqui é feito de folhas tenras de plantas de chá com idade de 20 a 70 anos ou mais. O anfitrião coloca a tigela no lugar apropriado, junto ao fogareiro, e o convidado principal desloca-se de joelhos para pegar na tigela. O convidado faz uma reverência com a cabeça, para os outros convidados e põe a tigela na palma da sua mão esquerda, sustentando um dos lados dela com a direita. Depois de tomar um gole, elogia o sabor da bebida e, em seguida, toma mais dois goles. Limpa a beirada da tigela onde bebeu com o “kaishi” de papel e passa a tigela para o segundo convidado, que bebe e limpa a tigela tal como o fez o convidado principal. A tigela é passada ao terceiro convidado e, em seguida, ao quarto e, depois, ao quinto até que todos os cinco tenham partilhado do chá. Quando o último convidado termina, entrega a tigela ao convidado principal, que a devolve ao anfitrião.

A 4.ª sessão é a etapa em que ocorre a cerimónia com “usucha”, que difere do “koicha” na circunstância de que, primeiro, é feito de plantas tenras de apenas 3 a 15 anos, proporcionando uma mistura espumosa. As regras seguidas nessa cerimónia são semelhantes às do “koicha”, mas há diferenças. A primeira é que o chá é feito individualmente para cada convidado com duas a duas e meia conchas de “matcha”, esperando-se que o convidado beba toda a sua porção. A segunda diferença está no facto de ser o convidado a limpar a parte da tigela em que os seus lábios tocaram com os dedos da mão direita. Limpa essa parte com o “kaishi” de papel.

E, depois de o anfitrião retirar os utensílios da sala, faz uma reverência silenciosa com a cabeça para os convidados, dando a entender que a cerimónia terminou. Os convidados deixam a “sukiya”, despedindo-se respeitosamente do anfitrião.

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Como se depreende do exposto, há aspetos de arquitetura e de utensílios a considerar para a Cerimónia de Chá. Assim, é de relevar o costume muito antigo de ter uma pequena casa especialmente construída para o Chanoyu. Denominada Sukiya, a casa é constituída pela sala de chá (cha-shitsu), pela sala de preparo (mizu-ya), pela sala de espera (yoritsuki) e por um caminho ajardinado (roji), que leva à entrada da casa de chá. A casa, geralmente, é localizada numa secção arborizada especialmente criada para esse fim no jardim propriamente dito.

Os principais utensílios são a “cha-wan” (tigela de chá), o “cha-ire” (recipiente do chá), a “cha-sen” (vassourinha de chá feita de bambu) e o “cha-shaku” (concha de chá feita de bambu), utensílios que os japoneses consideram valiosos objetos de arte.

Ainda, uma componente a referenciar, e não menos relevante, é a concernente aos trajes, que são preferencialmente roupas de cores discretas. Em ocasiões estritamente formais, os homens vestem quimono de seda, de cor firme, com três ou cinco brasões de família nele estampados e “tabi” brancas ou meias tradicionais japonesas. Por sua vez, as mulheres envergam, nessas ocasiões, o conservador quimono blasonado e também “tabi”. Os convidados devem trazer um pequeno leque dobrável e uma almofada de “kaishi” (pequenos guardanapos de papel).

Por fim, é de anotar que, no tempo em que a capital do Japão era Quioto, todas as Geishas, ou Gueixas, passaram a receber os ensinamentos da Cerimónia de Chá, uma arte passada pelas Geikos experientes às Maikos (aprendiz de Geisha), sendo que estas precisavam de cerca de 5 anos de prática para aprender, bem como de permissão para cada uma realizar sozinha uma Cerimónia de Chá nos moldes tradicionais.

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Ora bem! Um chazinho faz sempre bem sobretudo a quem mais dele precisar. E há muitos que dele precisam. Sigam a duquesa de Bedford, Anna Maria Russell, cuja fome levou a que o chá tenha um lugar garantido nas casas, restaurantes e bares de todo território britânico: dantes ao pequeno almoço; depois, às cinco da tarde.

2020.09.28 – Louro de Carvalho

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