Os nossos
critérios mesquinhos de justiça e o mal da inveja tornam-nos escandalizadiços
face à liberalidade de Deus, que dota muitas vezes o nosso próximo de mercês
com que não contamos e que visam a colmatação de necessidades básicas e/ou a
salvação plena. E o Evangelho proclamado no XXV domingo do Tempo Comum no Ano A
(Mt 20,1-16a) mostra como é feia a nossa inveja pelas mercês que
Deus faz a outrem, o que a doutrina católica tem considerado um dos pecados
contra o Espírito Santo.
Com mais uma parábola do Reino, que tantas vezes se verifica
na vida dos homens e mulheres, Jesus instrui os discípulos no sentido de que eles
compreendam a realidade do Reino dos Céus e a venham a testemunhar. O seu
quadro discursivo reflete a realidade social e económica dos tempos de Jesus,
bem como o de muitas das nossas aldeias e vilas em que os jornaleiros eram
chamados na hora pelos terratenentes.
No tempo de Jesus, abundavam na Galileia os camponeses que,
pela pressão fiscal e por anos contínuos de más colheitas, tinham perdido as
terras que eram património das suas famílias e, para sobreviverem, alugavam a
sua força de trabalho, para o que se juntavam na praça à esperavam de que os
latifundiários os chamassem a trabalhar nos seus campos ou vinhas. Era uso cada
patrão ter os seus assalariados em quem confiava e a quem contratava
regularmente. Por isso, eram contratados em primeiro lugar. E, só quando
eventualmente tinha necessidade de mais alguns, voltava à praça chamá-los. Os
primeiros ganhavam uma jorna completa (um denário, o pagamento diário habitual dum trabalhador não
especializado), ao passo
que os outros ganhavam uma jorna proporcional ao tempo de trabalho despendido.
A perícopa evangélica em referência conta a história com
modelações específicas que ultrapassam o estabelecido pelo costume. A praça
está sempre cheia de gente ali parada ou à espera de oportunidade para ganhar a
jorna. Entretanto, destaca-se o dono duma vinha a chamar trabalhadores para a vinha.
E não o faz em um ou dois momentos do dia. Sai às 6 horas da manhã para a praça
e contrata trabalhadores para cultivar a sua vinha com os quais ajusta o
pagamento de um denário a cada um. Sai outra vez às 9 horas e, encontrando mais
pessoas desocupadas na praça, envia-as para a vinha, garantindo pagar-lhes o
que for justo. Volta a sair às 12 horas, às 15 e às 17, encontrando sempre
gente desocupada, que manda para a vinha.
Assim, verificamos que o dono da vinha sai por cinco vezes à
procura de trabalhadores, encontra-os a toda a hora e a toda a hora os envia
para a sua vinha. É ele que toma a iniciativa, não são eles que se oferecem. Ora,
se o comportamento do dono da vinha é diferente do que se passa usualmente, é
provável que o fim do dia termine também de forma surpreendente. E, sabendo nós
que se trata duma parábola, é de ver que Jesus simboliza no episódio a alegoria
do Reino, em que o dono da vinha é Deus, a vinha o mundo que serve de palco ao
desenvolvimento do Reino, que é iniciativa de Deus, e os trabalhadores somos
nós a quem Deus compensa segundo a sua justiça e liberalidade. E, Às 18 horas, ou
seja, no fim do dia, o dono da vinha manda ao seu capataz (tôi epitrópôi
autoû) que pague o
salário (um denário) aos trabalhadores, a começar pelos
últimos – condição estranha. E o capataz deu um denário a cada um de cada em
todos os grupos, contrariando a nossa justiça de “a trabalho igual salário igual”.
É de anotar
que o convite fora feito diretamente pelo dono, mas o pagamento foi efetuado
através do capataz. É o dinamismo de Deus: Ele é a iniciativa, mas compraz-se
em distribuir as mercês pelo seu capataz, que é, em termos do Reino, o Filho,
que faz a vontade do Pai, e os que agem em nome do Filho. Por outro lado,
compensa não segundo o trabalho efetivamente prestado, mas segundo a
disponibilidade que oferecemos, na certeza de que estamos aqui todos pela
iniciativa de Deus, mesmo que, para o efeito, pague “salário igual a trabalho
desigual”.
O volume de tarefas a realizar na vinha fez com que o dono
saísse várias vezes a recrutar várias levas de trabalhadores. O trabalho
decorreu sem incidentes, até ao final do dia. Todos – tanto os que só trabalharam
uma hora como os que trabalharam o dia todo – receberam a mesma paga: um
denário. Porém, os trabalhadores da 1.ª hora, ou seja, os clientes habituais,
manifestaram surpresa e desconcerto por, desta vez, não terem recebido um
tratamento “de favor”. A reação do dono da vinha foi de que ninguém tem nada a
reclamar se ele decide derramar a sua justiça e misericórdia sobre todos. Ele
cumpre a sua obrigação para com os que trabalharam desde o início, mas nada o
impede de ser bondoso e misericordioso para com os que só chegam no fim, o que
em nada deve afetar os outros.
O texto não
se perde a descrever o trabalho feito, nem informa se aquela gente trabalhou ou
se deixou encantar pela preguiça durante o tempo, muito ou pouco, que esteve na
vinha. Mas frisa a mesquinhez, inveja e ciúme de quem reparou que o dono da
vinha tratou a todos por igual, os da última hora iguais aos da primeira hora. Assim,
ao apontarem o procedimento do dono da vinha para com os últimos, a boca dos
primeiros vociferou: “fizeste-os iguais a
nós” (v. 12 – “ísous
hêmîn autoûs epoíêsas”). Fica,
deste modo, evidenciado o nosso instinto de grandeza e superioridade e a
dificuldade que sentimos na concretização efetiva da fraternidade. E fica bem
espelhado o amor de Deus nas ações do dono da vinha: sai cedo e a toda a hora em busca de nós, para nos tirar da
ociosidade e nos ocupar no afã do Reino, mesmo sem precisar da nossa atividade.
E, querendo-nos a todos por igual, cumula-nos dos seus dons, o que contrasta
com os nossos critérios de justiça meramente retributiva ou comercial (chamavam-lhe
justiça comutativa), segundo o
peso que suportamos e não pelo objetivo soteriológico. Com efeito, Ele quer salvarmos
inteiramente a todos a começar pela colmatação das necessidades básicas de cada
um (uma justiça
mais distributiva), para o que
requer a disponibilidade para o trabalho na vinha: “Ide também vós para a minha vinha” (“hypágete kaì hymeîs eis tòn
ampelôna”). Porém, nós ficamos mal na TAC que
põe a nu a inveja e ciúme que nos minam o coração e não nos deixam ser irmãos.
A última
hora é, como diz Dom António Couto, “a hora da graça” ou “a nossa hora de
filhos de Deus” e “a hora em que podemos ser aceites ou rejeitados como irmãos”.
Assim, “em apenas uma hora se pode ganhar ou perder o dia inteiro, a vida
inteira!” (vd Jornal da Madeira, 20.09.2020).
***
Originariamente,
a parábola serviu a Jesus para responder às críticas dos que O acusavam de
estar próximo dos pecadores (como em Lc 15), os trabalhadores da última
hora, e mostrar, com ela, que o amor do Pai se derrama sobre todos os seus
filhos, sem exceção e por igual, não sendo decisiva a hora a que se respondeu
ao apelo divino para trabalhar na vinha do Reino, mas que se lhe tenha
respondido. Com efeito, para Deus, não há tratamento especial por antiguidade;
para Ele, todos os filhos são iguais e livres (como diz
Gregório Magno) e
merecem o seu amor. E serviu para Jesus denunciar a conceção que os teólogos de
Israel tinham de Deus e da salvação. Para os fariseus, Deus é o patrão que paga
conforme as ações do homem. Se o homem cumprisse a Lei escrupulosamente,
arrebataria os respetivos méritos e Deus pagar-lhe-ia convenientemente. Nesta
ótica, Deus não dá; o homem é que conquista tudo. Para os fariseus, Deus é o
contabilista e justiceiro comercial que diariamente aponta no livro de registos
as dívidas e os créditos do homem, que um dia faz as contas finais, vê o saldo
e dá a recompensa ou a punição.
No entanto, para Jesus, Deus não é um contabilista, de lápis
na mão a fazer as contas dos homens para lhes pagar conforme os merecimentos.
Deus é o Pai, cheio de bondade e misericórdia, que ama com amor de mãe todos os
filhos por igual e derrama sobre todos, sem exceção, o seu amor.
A parábola foi, depois, contada por Mateus para iluminar a
situação concreta que a comunidade estava a viver com a entrada massiva de
pagãos na Igreja. Alguns cristãos de origem judaica não entendiam que os
pagãos, vindos mais tarde, estivessem em pé de igualdade com os que tinham
acolhido a proposta do Reino desde a 1.ª hora. E Mateus deixa claro que o Reino
é dom de Deus a todos os seus filhos. Por isso, judeus ou gregos, escravos ou
livres, cristãos da 1.ª hora ou da última, todos são filhos amados do mesmo
Pai, não havendo, pois, na comunidade de Jesus graus de antiguidade, raça,
classe social, merecimento. O dom de Deus destina-se a todos, por igual. E não
vale a pena fazer mau-olhado (“ophthalmós ponêrós” – cf Mt 20,15).
Em suma, a parábola convida-nos a ver que o nosso Deus é o
Deus que oferece gratuitamente a salvação a todos os filhos, independentemente
da antiguidade, créditos, qualidades, atitudes ou comportamentos, pelo que os
membros da comunidade não devem fazer o bem com vista à recompensa, mas à
felicidade, à vida verdadeira e eterna.
Não sendo o Reino de Deus definível por palavras humanas, Cristo
mostra a sua essência, justiça e dinamismo por parábolas, de que explica as
mais complexas. E a parábola do dono da vinha que chama a todas as horas para o
trabalho da vinha e paga segundo os critérios da justiça divina é poderosa e
eloquente.
***
E a liturgia
desta dominga alicerça este texto evangélico numa passagem do Antigo Testamento
(Is 55,6-9), que nos presenta um Deus bom, que se deixa encontrar,
que é rico em perdão e que nos põe a caminho, advertindo:
“Os meus pensamentos não são os vossos
pensamentos, os vossos caminhos não são os meus caminhos (Is 55,8).
Na verdade,
esta última página do Segundo Isaías, profeta e místico do tempo do exílio (século VI
a. C.), foi escolhida – diz Dom António
Couto – “para fazer coro com a personagem central do Evangelho de hoje, que vê
as coisas de forma muito diferente de nós, muito melhor do que nós”. Por outro
lado, sublinha o mesmo bispo e biblista que Paulo, o Apóstolo de Jesus Cristo,
escreve à sua comunidade dileta de Filipos, lendo-se, no extrato de hoje (Fl
1,20-24.27), que, para
o apóstolo, “viver é Cristo” e o resto é lixo. Por isso, desafia-nos a todos a
viver de maneira digna do Evangelho de Cristo, que não consiste em nenhuma
forma de instalação, mas em “lutar juntos (synathléô) pela fé do Evangelho” como verdadeiros atletas da fé
do Evangelho.
E o Bispo de
Lamego diz que fica bem “cantar com alegria renovada” o Salmo 145, o grande
hino alfabético, “até que vibrem as cordas do nosso coração”. Na verdade, Orígenes
via-o como “o supremo cântico de ação de graças” e Agostinho encarou-o como “a
oração perfeita de Cristo, uma oração para todas as circunstâncias e
acontecimentos da vida”. O salmo faz-nos saborear “as imensas riquezas que nos
vêm de Deus”: a presença ao nosso lado, os caminhos novos e belos, cheios de
graça, misericórdia, amor e bondade. E, usando toda a gama de sabores e todas
as letras do alfabeto, poderemos continuar a cantar “a vinda de Deus até nós e a
sua insuperável proximidade: O Senhor está
próximo de quantos o invocam” (Sl 145,18).
2020.09.20 –
Louro de Carvalho
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