É legítimo que a UCP (Universidade Católica Portuguesa) se congratule com a autorização para ministrar um
curso de medicina, sonho de anos e anos e agora a concretizar. Com efeito, é a primeira instituição não estatal a oferecer uma licenciatura
em Medicina em Portugal, um ano depois de ter sido rejeitada a primeira
proposta pela Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES), que agora aprovou o novo curso.
As notícias públicas que rodearam a decisão deixaram-me dúvidas, pelo que
li com atenção a entrevista do médico hematologista António Almeida, diretor da
Faculdade de Medicina da UCP à Renascença
e a Ecclesia, publicada a 11 de
setembro.
O médico não disfarçou a
alegria com que recebeu a notícia da aprovação do curso e conta que o pedido para a acreditação feito no ano passado não
passou por várias razões técnicas, pelo que foi repetido com aperfeiçoamentos e
novas propostas, indo ao encontro das sugestões da A3ES e da Ordem dos Médicos (OM). E, além da alegria, António Almeida sublinhou o enorme
sentido de responsabilidade que recai sobre a UCP pelo curso de medicina,
perante os alunos e o público, por ir “formar pessoas para servir a sociedade e
poder ajudar na medicina em Portugal.
Face ao lamento a ‘Plataforma
para a Formação Médica’ (que reúne a OM, o CEM-Conselho
de Escolas Médicas e a ANEM-Associação Nacional de Estudantes de Medicina) pela aprovação do curso,
alegadamente por ter havido “pressão política”, sendo que a decisão pode
“ameaçar a qualidade da formação médica e dos cuidados de saúde à população”,
explicou o processo de acreditação:
“A A3ES é uma agência estatal independente
que faz a acreditação de todos os cursos superiores em Portugal e, como tal,
tem de pedir a peritos, dentro de cada área, para avaliarem os pedidos que são
submetidos”.
Depois, referiu que a aprovação se escuda na avaliação técnica de peritos
nacionais e internacionais da área da medicina e da educação médica, em que
avulta o professor José Ponte, que foi o diretor da Faculdade de Medicina do
Algarve. Tal avaliação olhou para o currículo, para os docentes, para a
instituição clínica, que é o Grupo Luz Saúde e para todo o programa de ensino,
sendo a comissão de avaliação isenta, pois dois dos membros eram estrangeiros e
não tinham nenhum interesse em que isto acontecesse, do ponto de vista
político.
Quanto à crítica da Plataforma ao
“aumento do número de alunos do ensino pré-graduado”, não sendo consideradas as
necessidades a longo prazo, em recursos humanos, o entrevistado assegurou que a
UCP tem a mesma preocupação que a OM e o CEM, ou seja, “que os médicos
tenham emprego” e os alunos “estejam preparados” para a vida profissional,
consigam prosseguir as suas carreiras e tenham as melhores armas para enfrentarem
o mundo profissional em que se vão inserir. No entanto, só se vão formar 100
alunos por ano, num universo de 1800 alunos que são formados em Portugal por
ano, ou seja, “uma pequena percentagem…”.
Crendo que mais 100 alunos não inundarão o mercado, apontou os 400 alunos
por ano que estudam Medicina no estrangeiro, imaginando que desses 400, haja
100 que desejem ficar em Portugal. Por outro lado, não tem a veleidade de crer
que esses 100 alunos vão resolver os problemas do SNS (Serviço
Nacional de Saúde). Porém,
assegurou que os ditos 100 alunos/ano terão uma educação de excelência, serão
médicos bem formados para a sua profissão e pode alargar-se o leque de escolha
de estudos em Portugal. Esta é a intenção da UCP, mais do que uma intenção
macro, a longo prazo, de resolver problemas de natureza demográfica em
Portugal. E, questionado se fazia mesmo falta esta
nova licenciatura em medicina, reagiu apontando que uma nova proposta
educacional, que possa trazer novo sangue, é boa para o mundo da educação, o
que vale para outras áreas além da medicina. E exemplificou com os estudos de economia:
“A Católica entrou em cena, há bastantes
anos, e isso foi benéfico para todos, não só para a UCP. Vemos a projeção
da Universidade Nova, com a Nova Business School”.
Assim, acredita que o novo curso de medicina trará uma qualidade de ensino
não só para a UCP, para a Faculdade de Medicina, como para todas as outras
faculdades – “uma atitude muito colaborante”, pois, como disse, “queremos
colaborar tanto nacional como internacionalmente”.
Assenta em que o curso vai ser bastante diferente, embora a UCP não
seja a única em Portugal no currículo e na metodologia, pois o curso da
Universidade do Minho tem caraterísticas semelhantes. O que a UCP se propõe
implementar é um curso com novos métodos de ensino, modernos, centrados no
aluno, em que o aluno é encorajado a ir procurar, a estudar por si próprio, aprendendo
através da resolução de problemas, através da discussão em grupos e da investigação
guiada. Mais: os alunos vão ter treino clínico desde o primeiro ano.
Além de ser um curso
prático, desenvolverá, desde o
início, disse, “todas as competências que apreciamos nos clínicos e que
julgamos importantes – a comunicação, a empatia, a capacidade de ligação com o
doente. Assim, nos primeiros dois anos os alunos terão aulas de comunicação,
com treinos práticos com doentes simulados, com manequins, com modelos, para
poderem aprender a lidar com doentes, e no 3.º ano terão contacto com doentes
reais no Hospital da Luz Oeiras, onde farão “uma consulta semanal gravada, que podem
ver depois, ver-se uns aos outros, avaliar-se uns aos outros e ser avaliados
pelo tutor”. Nos anos clínicos a UCP terá um rácio muito pequeno de alunos por
médico (um a dois
alunos por equipa médica), os alunos durante
os estágios clínicos estarão inseridos nas equipas de trabalho, não sendo só observadores,
e terão um papel muito ativo, o que lhes dará muito mais à vontade na vida
profissional. Por outro lado, a UCP terá uma aposta grande na investigação,
pois criará um centro de investigação dentro da faculdade, e um semestre
inteiro do curso será dedicado à investigação (laboratorial, clinica ou
epidemiológica)
desenvolvendo-se projetos de investigação nesse semestre.
***
António Almeida promete
imprimir no curso uma vertente
diferenciadora muito importante, a marca da cultura católica como Universidade.
Na verdade, como acentua, “uma das grandes missões da Igreja sempre foi cuidar
dos doentes, e continua a ser, e esse também é o nosso grande mote para criar
este curso”. Assim, dentro dos módulos serão abordadas questões éticas,
mas haverá cadeiras específicas de Ética, de Cristianismo, História da
Medicina, focando o contributo que a Igreja católica tem dado ao longo dos séculos
para o seu desenvolvimento, o que se refletirá no ensino clínico. Depois,
enfatiza o valor do Grupo Luz Saúde a nível de corpo clínico e docente e de
instalações, bem como ao nível da “cultura de cuidado com os doentes”,
referindo que é um dos grupos pioneiros em unidades de cuidados paliativos e de
cuidados neonatais, com um serviço de maternidade dos maiores do país, um
cuidado maternal e do bebé muito grande e todos os cuidados que têm em todas as
especialidades de Oncologia. Ou seja, tem uma excelência técnica e clínica
enorme e uma excelência humana muito grande.
Mostra-se compreensivo com as falhas existentes na formação e nos cuidados,
que “são um bocadinho inevitáveis”, dada a pressão diária. Mas acha que “quanto
mais conseguimos introduzir os alunos nas equipas e ter um rácio aluno/tutor
menor, de maneira a haver tempo e espaço para os alunos conseguirem estar com
os doentes, melhor”. E, relativamente
à visão holística da pessoa doente, para lá dos aspetos técnicos, julga
fundamental “ensinar o que é que é ser médico”. Na verdade, no contexto
de fontes de informação inesgotável neste século XXI de grande facilidade de
acesso a ela, é pertinente ensinar aos alunos aonde ir buscar a informação
certa e como é que se reconhecem os padrões das doenças nas pessoas. Além
disso, o papel do médico é “um papel técnico de excelência, de ter de fazer as
coisas como deve ser, é um papel de comunicação, de empatia, de conforto, de
apoio ao doente” – o que distingue o médico “de um computador, de uma medicina
computorizada”. Efetivamente, o médico do século XXI é, como sempre foi, “uma
entidade de conforto, de segurança e de apoio”.
Interpelado, com respeito
aos avanços da tecnologia que permite prolongar a vida em muitos casos, mas
também permite encurtá-la, se os estudantes de medicina devem pensar nestas
coisas desde cedo, respondeu:
“Todas estas questões éticas vão ser
abordadas ao longo do curso. É fundamental, como formadores, dar aos alunos as
ferramentas para que consigam pensar e abordar estas questões éticas por eles
próprios. Não há nada menos construtivo do que impormos uma certa doutrina, mas
temos de estimulá-los a pensar nas questões, a olhar para a parte ética, para
as opções que existem.”.
Recusa a eutanásia como “a única opção de fim”, existindo “muitas outras
opções”, a cujo encontro vem “toda a rede de cuidados paliativos”. E mais uma
vez aponta o Hospital da Luz como modelar. E reitera que “todas essas questões
têm de ser abordadas diretamente, sem doutrinamento, mas estimulando os alunos
a pensar e a decidir por eles próprios, com toda a informação, tudo o que
circunda estas questões, para poderem tomar uma decisão informada”.
Justifica a lecionação do
curso todo em inglês por vir a acolher alunos e professores estrangeiros, sendo
“uma fonte de riqueza poder ter este
intercâmbio cultural”.
Não adianta dados sobre a
percentagem de alunos estrangeiros, mas esclarece que serão as candidaturas avaliadas “de acordo com a
excelência académica – notas do final do secundário – e entrevistas”. Isto é, um
método de seleção é misto: de acordo com as notas do ensino secundário, como o
nacional, mas também “personalizado, com entrevistas, currículos, em que é
possível selecionar mais finamente”. Imagino, pois, que haverá candidatos de
fora, já que “Portugal é um país cada vez mais popular a nível da emigração
estudantil”.
Porém, a grande razão pela qual o curso é em inglês prende-se, além da
parceira com a Universidade de Maastricht (Holanda) – que tem este curso implementado há bastantes anos,
com muito sucesso e satisfação dos alunos, tanto enquanto alunos como enquanto
profissionais –, é que a língua franca da medicina é o inglês. Não obstante, ninguém
que não fale português poderá ver doentes. Por isso, “todos os estrangeiros que
venham e não saibam falar a língua terão aulas de português, para que no 3.º
ano possam falar com os doentes”. E, sobre
a vinda de docentes do estrangeiro, revelou que a parceria com
Maastricht prevê pelo menos um docente por bloco, por unidade curricular, que
virá dar apoio, mas que a maioria dos docentes será portuguesa, pois alguns
docentes portugueses que estão no estrangeiro desejam voltar, são já cientistas
de renome e teremos muito gosto em combinar com eles “esse eventual regresso”.
Especificou que, para lá do
Grupo Luz, a UCP trabalhará com mais três entidades: o Hospital Beatriz Ângelo, em Loures (PPP gerida
pelo Grupo Luz), a ARS de
Lisboa e Vale do Tejo (pois os Centros de Saúde do Estado fazem algumas
coisas que os Centros de Saúde no Grupo Luz não fazem, como programas de
vacinação, etc.) – e a UMP (União das
Misericórdias Portuguesas), que tem
muitas unidades de saúde, sobretudo de cuidados continuados, reabilitação...
Garantiu que, mesmo que a PPP não seja renovada, o acordo com Loures
é para manter, desde que a nova administração o aceite, pois é um hospital
associado do projeto, embora o hospital universitário seja o Hospital da Luz
Lisboa, porque é o único que tem as condições para tal, de acordo com o
Decreto-Lei n.º 61/2018, de 3 de agosto, que determina todos os requisitos de
um hospital universitário, desde corpo docente a publicações, investigação
clínica, etc. Para lá disso, “duplicou recentemente a sua capacidade, tornou-se
um hospital de 450 camas, com todas as especialidades – excetuando a
transplantação, que é realizada só no Estado, mas que não é uma especialidade
essencial para um aluno de Medicina –, incluindo hematologia, neurocirurgia,
portanto, especialidades bastante focadas e de nicho”.
Mais referiu que o predito hospital tem um centro de simulação que está
entre os maiores da Europa, no qual médicos e alunos podem ir treinar antes dos
doentes. Apesar de a simulação ser criticada, António Almeida julga essencial que
o doente sinta a segurança de que quem vai colher sangue, fazer um
procedimento, já treinou em algo que não esteve a sofrer. Além disso, o centro
de simulação é importante “para a formação dos médicos”, pelas condições
excelentes que tem para os alunos, por exemplo anfiteatros, estando preparado
para ser hospital universitário, o que pesou nas condições para que o projeto
fosse aceite.
***
Estando a abertura do curso
a ser apontada para 2021/2022, há um ano para preparar o edifício do Campus de Sintra, onde era já a Faculdade de
Engenharia da UCP, edifício com 8500 m2, que precisa de adaptação e
renovação. Tendo já os anfiteatros, precisa, por exemplo, dum teatro anatómico.
E tem de se acabar de fazer o currículo e promover o ensino de docente, pois
todos os docentes vão ser formados em ensino médico, antes de começarem a
ensinar.
É preciso abrir candidaturas e abrir as portas em setembro de 2021, sendo
que os primeiros alunos que vão ingressar no ensino clínico serão só em 2023 e
depois 2024, nos estágios.
Deseja este médico ficar
ligado ao Hospital da Luz na especialidade de hematologia, pois é estranho “um médico ensinar Medicina sem a
praticar”.
***
Posto isto, devo dizer que são de saudar as intenções propaladas na
entrevista, mas que não me convencem as razões da rodagem do curso
exclusivamente em inglês. Entendo que os docentes vindos de fora possam
lecionar e escrever em inglês, mas em Portugal a língua a utilizar deve ser preferencialmente
o português. Obviamente o inglês é útil para as relações internacionais. Mas,
se os alunos estrangeiros têm de aprender português para poderem ver doentes… O
português é tão capaz para falar e escrever ciência como as outras línguas.
Perguntem ao Brasil.
Uma questão que deixa dúvidas é a licenciatura. Porque arranca a UCP com a
licenciatura, quando a prática é o mestrado integrado. Onde vão os licenciados
completar a formação?
Mais: porquê apenas 100 alunos e neste primeiro ano 50? Não correrá a UCP o
risco de fazer a formação de um grupo elitista, até pelo pau de dois bicos que
as entrevistas podem veicular? Tem a garantia de que a OM os aceita como
profissionais?
E, quanto às questões fraturantes, como se garante a marca católica? Isso
não vem devidamente explicado, embora seja difícil congraçar liberdade de
pensamento com doutrinação católica em matérias essenciais, embora baseada nos
sinais dos tempos.
Provavelmente os verdadeiros amigos da UCP gostariam de ver tudo
esclarecido e posto na melhora das rotas, nomeadamente a da catolicidade no
quadro do pensamento do Papa atual!
2020.09.18 –
Louro de Carvalho
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