sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Da excelência técnica, clínica e humana do curso de medicina da UCP

 

É legítimo que a UCP (Universidade Católica Portuguesa) se congratule com a autorização para ministrar um curso de medicina, sonho de anos e anos e agora a concretizar. Com efeito, é a primeira instituição não estatal a oferecer uma licenciatura em Medicina em Portugal, um ano depois de ter sido rejeitada a primeira proposta pela Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES), que agora aprovou o novo curso.

As notícias públicas que rodearam a decisão deixaram-me dúvidas, pelo que li com atenção a entrevista do médico hematologista António Almeida, diretor da Faculdade de Medicina da UCP à Renascença e a Ecclesia, publicada a 11 de setembro.

O médico não disfarçou a alegria com que recebeu a notícia da aprovação do curso e conta que o pedido para a acreditação feito no ano passado não passou por várias razões técnicas, pelo que foi repetido com aperfeiçoamentos e novas propostas, indo ao encontro das sugestões da A3ES e da Ordem dos Médicos (OM). E, além da alegria, António Almeida sublinhou o enorme sentido de responsabilidade que recai sobre a UCP pelo curso de medicina, perante os alunos e o público, por ir “formar pessoas para servir a sociedade e poder ajudar na medicina em Portugal.

Face ao lamento a ‘Plataforma para a Formação Médica’ (que reúne a OM, o CEM-Conselho de Escolas Médicas e a ANEM-Associação Nacional de Estudantes de Medicina) pela aprovação do curso, alegadamente por ter havido “pressão política”, sendo que a decisão pode “ameaçar a qualidade da formação médica e dos cuidados de saúde à população”, explicou o processo de acreditação:

A A3ES é uma agência estatal independente que faz a acreditação de todos os cursos superiores em Portugal e, como tal, tem de pedir a peritos, dentro de cada área, para avaliarem os pedidos que são submetidos”.

Depois, referiu que a aprovação se escuda na avaliação técnica de peritos nacionais e internacionais da área da medicina e da educação médica, em que avulta o professor José Ponte, que foi o diretor da Faculdade de Medicina do Algarve. Tal avaliação olhou para o currículo, para os docentes, para a instituição clínica, que é o Grupo Luz Saúde e para todo o programa de ensino, sendo a comissão de avaliação isenta, pois dois dos membros eram estrangeiros e não tinham nenhum interesse em que isto acontecesse, do ponto de vista político.

Quanto à crítica da Plataforma ao “aumento do número de alunos do ensino pré-graduado”, não sendo consideradas as necessidades a longo prazo, em recursos humanos, o entrevistado assegurou que a UCP tem a mesma preocupação que a OM e o CEM, ou seja, “que os médicos tenham emprego” e os alunos “estejam preparados” para a vida profissional, consigam prosseguir as suas carreiras e tenham as melhores armas para enfrentarem o mundo profissional em que se vão inserir. No entanto, só se vão formar 100 alunos por ano, num universo de 1800 alunos que são formados em Portugal por ano, ou seja, “uma pequena percentagem…”.

Crendo que mais 100 alunos não inundarão o mercado, apontou os 400 alunos por ano que estudam Medicina no estrangeiro, imaginando que desses 400, haja 100 que desejem ficar em Portugal. Por outro lado, não tem a veleidade de crer que esses 100 alunos vão resolver os problemas do SNS (Serviço Nacional de Saúde). Porém, assegurou que os ditos 100 alunos/ano terão uma educação de excelência, serão médicos bem formados para a sua profissão e pode alargar-se o leque de escolha de estudos em Portugal. Esta é a intenção da UCP, mais do que uma intenção macro, a longo prazo, de resolver problemas de natureza demográfica em Portugal. E, questionado se fazia mesmo falta esta nova licenciatura em medicina, reagiu apontando que uma nova proposta educacional, que possa trazer novo sangue, é boa para o mundo da educação, o que vale para outras áreas além da medicina. E exemplificou com os estudos de economia:

A Católica entrou em cena, há bastantes anos, e isso foi benéfico para todos, não só para a UCP. Vemos a projeção da Universidade Nova, com a Nova Business School”. 

Assim, acredita que o novo curso de medicina trará uma qualidade de ensino não só para a UCP, para a Faculdade de Medicina, como para todas as outras faculdades – “uma atitude muito colaborante”, pois, como disse, “queremos colaborar tanto nacional como internacionalmente”.

Assenta em que o curso vai ser bastante diferente, embora a UCP não seja a única em Portugal no currículo e na metodologia, pois o curso da Universidade do Minho tem caraterísticas semelhantes. O que a UCP se propõe implementar é um curso com novos métodos de ensino, modernos, centrados no aluno, em que o aluno é encorajado a ir procurar, a estudar por si próprio, aprendendo através da resolução de problemas, através da discussão em grupos e da investigação guiada. Mais: os alunos vão ter treino clínico desde o primeiro ano.

Além de ser um curso prático, desenvolverá, desde o início, disse, “todas as competências que apreciamos nos clínicos e que julgamos importantes – a comunicação, a empatia, a capacidade de ligação com o doente. Assim, nos primeiros dois anos os alunos terão aulas de comunicação, com treinos práticos com doentes simulados, com manequins, com modelos, para poderem aprender a lidar com doentes, e no 3.º ano terão contacto com doentes reais no Hospital da Luz Oeiras, onde farão “uma consulta semanal gravada, que podem ver depois, ver-se uns aos outros, avaliar-se uns aos outros e ser avaliados pelo tutor”. Nos anos clínicos a UCP terá um rácio muito pequeno de alunos por médico (um a dois alunos por equipa médica), os alunos durante os estágios clínicos estarão inseridos nas equipas de trabalho, não sendo só observadores, e terão um papel muito ativo, o que lhes dará muito mais à vontade na vida profissional. Por outro lado, a UCP terá uma aposta grande na investigação, pois criará um centro de investigação dentro da faculdade, e um semestre inteiro do curso será dedicado à investigação (laboratorial, clinica ou epidemiológica) desenvolvendo-se projetos de investigação nesse semestre.

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António Almeida promete imprimir no curso uma vertente diferenciadora muito importante, a marca da cultura católica como Universidade. Na verdade, como acentua, “uma das grandes missões da Igreja sempre foi cuidar dos doentes, e continua a ser, e esse também é o nosso grande mote para criar este curso”. Assim, dentro dos módulos serão abordadas questões éticas, mas haverá cadeiras específicas de Ética, de Cristianismo, História da Medicina, focando o contributo que a Igreja católica tem dado ao longo dos séculos para o seu desenvolvimento, o que se refletirá no ensino clínico. Depois, enfatiza o valor do Grupo Luz Saúde a nível de corpo clínico e docente e de instalações, bem como ao nível da “cultura de cuidado com os doentes”, referindo que é um dos grupos pioneiros em unidades de cuidados paliativos e de cuidados neonatais, com um serviço de maternidade dos maiores do país, um cuidado maternal e do bebé muito grande e todos os cuidados que têm em todas as especialidades de Oncologia. Ou seja, tem uma excelência técnica e clínica enorme e uma excelência humana muito grande.

Mostra-se compreensivo com as falhas existentes na formação e nos cuidados, que “são um bocadinho inevitáveis”, dada a pressão diária. Mas acha que “quanto mais conseguimos introduzir os alunos nas equipas e ter um rácio aluno/tutor menor, de maneira a haver tempo e espaço para os alunos conseguirem estar com os doentes, melhor”. E, relativamente à visão holística da pessoa doente, para lá dos aspetos técnicos, julga fundamental “ensinar o que é que é ser médico”. Na verdade, no contexto de fontes de informação inesgotável neste século XXI de grande facilidade de acesso a ela, é pertinente ensinar aos alunos aonde ir buscar a informação certa e como é que se reconhecem os padrões das doenças nas pessoas. Além disso, o papel do médico é “um papel técnico de excelência, de ter de fazer as coisas como deve ser, é um papel de comunicação, de empatia, de conforto, de apoio ao doente” – o que distingue o médico “de um computador, de uma medicina computorizada”. Efetivamente, o médico do século XXI é, como sempre foi, “uma entidade de conforto, de segurança e de apoio”.

Interpelado, com respeito aos avanços da tecnologia que permite prolongar a vida em muitos casos, mas também permite encurtá-la, se os estudantes de medicina devem pensar nestas coisas desde cedo, respondeu:

Todas estas questões éticas vão ser abordadas ao longo do curso. É fundamental, como formadores, dar aos alunos as ferramentas para que consigam pensar e abordar estas questões éticas por eles próprios. Não há nada menos construtivo do que impormos uma certa doutrina, mas temos de estimulá-los a pensar nas questões, a olhar para a parte ética, para as opções que existem.”.

Recusa a eutanásia como “a única opção de fim”, existindo “muitas outras opções”, a cujo encontro vem “toda a rede de cuidados paliativos”. E mais uma vez aponta o Hospital da Luz como modelar. E reitera que “todas essas questões têm de ser abordadas diretamente, sem doutrinamento, mas estimulando os alunos a pensar e a decidir por eles próprios, com toda a informação, tudo o que circunda estas questões, para poderem tomar uma decisão informada”.

Justifica a lecionação do curso todo em inglês por vir a acolher alunos e professores estrangeiros, sendo “uma fonte de riqueza poder ter este intercâmbio cultural”.

Não adianta dados sobre a percentagem de alunos estrangeiros, mas esclarece que serão as candidaturas avaliadas “de acordo com a excelência académica – notas do final do secundário – e entrevistas”. Isto é, um método de seleção é misto: de acordo com as notas do ensino secundário, como o nacional, mas também “personalizado, com entrevistas, currículos, em que é possível selecionar mais finamente”. Imagino, pois, que haverá candidatos de fora, já que “Portugal é um país cada vez mais popular a nível da emigração estudantil”.

Porém, a grande razão pela qual o curso é em inglês prende-se, além da parceira com a Universidade de Maastricht (Holanda) – que tem este curso implementado há bastantes anos, com muito sucesso e satisfação dos alunos, tanto enquanto alunos como enquanto profissionais –, é que a língua franca da medicina é o inglês. Não obstante, ninguém que não fale português poderá ver doentes. Por isso, “todos os estrangeiros que venham e não saibam falar a língua terão aulas de português, para que no 3.º ano possam falar com os doentes”. E, sobre a vinda de docentes do estrangeiro, revelou que a parceria com Maastricht prevê pelo menos um docente por bloco, por unidade curricular, que virá dar apoio, mas que a maioria dos docentes será portuguesa, pois alguns docentes portugueses que estão no estrangeiro desejam voltar, são já cientistas de renome e teremos muito gosto em combinar com eles “esse eventual regresso”.

Especificou que, para lá do Grupo Luz, a UCP trabalhará com mais três entidades: o Hospital Beatriz Ângelo, em Loures (PPP gerida pelo Grupo Luz), a ARS de Lisboa e Vale do Tejo (pois os Centros de Saúde do Estado fazem algumas coisas que os Centros de Saúde no Grupo Luz não fazem, como programas de vacinação, etc.) – e a UMP (União das Misericórdias Portuguesas), que tem muitas unidades de saúde, sobretudo de cuidados continuados, reabilitação...

Garantiu que, mesmo que a PPP não seja renovada, o acordo com Loures é para manter, desde que a nova administração o aceite, pois é um hospital associado do projeto, embora o hospital universitário seja o Hospital da Luz Lisboa, porque é o único que tem as condições para tal, de acordo com o Decreto-Lei n.º 61/2018, de 3 de agosto, que determina todos os requisitos de um hospital universitário, desde corpo docente a publicações, investigação clínica, etc. Para lá disso, “duplicou recentemente a sua capacidade, tornou-se um hospital de 450 camas, com todas as especialidades – excetuando a transplantação, que é realizada só no Estado, mas que não é uma especialidade essencial para um aluno de Medicina –, incluindo hematologia, neurocirurgia, portanto, especialidades bastante focadas e de nicho”.

Mais referiu que o predito hospital tem um centro de simulação que está entre os maiores da Europa, no qual médicos e alunos podem ir treinar antes dos doentes. Apesar de a simulação ser criticada, António Almeida julga essencial que o doente sinta a segurança de que quem vai colher sangue, fazer um procedimento, já treinou em algo que não esteve a sofrer. Além disso, o centro de simulação é importante “para a formação dos médicos”, pelas condições excelentes que tem para os alunos, por exemplo anfiteatros, estando preparado para ser hospital universitário, o que pesou nas condições para que o projeto fosse aceite.

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Estando a abertura do curso a ser apontada para 2021/2022, há um ano para preparar o edifício do Campus de Sintra, onde era já a Faculdade de Engenharia da UCP, edifício com 8500 m2, que precisa de adaptação e renovação. Tendo já os anfiteatros, precisa, por exemplo, dum teatro anatómico. E tem de se acabar de fazer o currículo e promover o ensino de docente, pois todos os docentes vão ser formados em ensino médico, antes de começarem a ensinar.

É preciso abrir candidaturas e abrir as portas em setembro de 2021, sendo que os primeiros alunos que vão ingressar no ensino clínico serão só em 2023 e depois 2024, nos estágios.

Deseja este médico ficar ligado ao Hospital da Luz na especialidade de hematologia, pois é estranho “um médico ensinar Medicina sem a praticar”.

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Posto isto, devo dizer que são de saudar as intenções propaladas na entrevista, mas que não me convencem as razões da rodagem do curso exclusivamente em inglês. Entendo que os docentes vindos de fora possam lecionar e escrever em inglês, mas em Portugal a língua a utilizar deve ser preferencialmente o português. Obviamente o inglês é útil para as relações internacionais. Mas, se os alunos estrangeiros têm de aprender português para poderem ver doentes… O português é tão capaz para falar e escrever ciência como as outras línguas. Perguntem ao Brasil.

Uma questão que deixa dúvidas é a licenciatura. Porque arranca a UCP com a licenciatura, quando a prática é o mestrado integrado. Onde vão os licenciados completar a formação?

Mais: porquê apenas 100 alunos e neste primeiro ano 50? Não correrá a UCP o risco de fazer a formação de um grupo elitista, até pelo pau de dois bicos que as entrevistas podem veicular? Tem a garantia de que a OM os aceita como profissionais?

E, quanto às questões fraturantes, como se garante a marca católica? Isso não vem devidamente explicado, embora seja difícil congraçar liberdade de pensamento com doutrinação católica em matérias essenciais, embora baseada nos sinais dos tempos.

Provavelmente os verdadeiros amigos da UCP gostariam de ver tudo esclarecido e posto na melhora das rotas, nomeadamente a da catolicidade no quadro do pensamento do Papa atual!  

2020.09.18 – Louro de Carvalho   

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