domingo, 6 de setembro de 2020

“Seja para ti como o pagão e o publicano, mas não o excomungues”

A opção em epígrafe ditada por Jesus no contexto do perdão das ofensas aliado à comummente denominada correção ou promoção fraterna, um preceito evangélico de que a tradição eclesial fez uma das obras de misericórdia espirituais, lida em olhar superficial, sugere uma postura de desprezo e até excomunhão para quem recalcitra à admoestação fraterna, a qual é um dever premente do cristão para com o próximo. Mas não será esse o significado como veremos.

Já o AT considerava os profetas como sentinelas do povo. Habacuc (cf Hab 2,1), Isaías (cf Is 21,6), Jeremias (cf Jr 6,17) e Oseias (cf Os 5,8) recorrem a esta figura para definir a missão profética.
Na verdade, sentinela é o vigilante que, enquanto os outros descansam, perscruta o horizonte a detetar o perigo que ameaça a cidade, os concidadãos, os camaradas de armas. E, ao pressentir o perigo, tem o dever de dar o alarme, podendo, assim, a comunidade preparar-se para enfrentar o desafio que o inimigo lhe coloque. Mas, se a sentinela não vigiar ou não der o alarme, será responsável pela catástrofe que atingir o povo. Nestes termos, funciona o profeta qual guarda que o Senhor pôs na comunidade para perscrutar o horizonte da história e da vida do povo e dar o alarme sempre que a comunidade corra riscos. Ora, para que o profeta seja uma sentinela eficiente, tem de ser homem de Deus e homem atento ao mundo.

Eleito pelo Senhor, vive em comunhão com Deus e, na intimidade que vai criando com Deus, descobre a divina vontade e aprende a discernir o projeto de Deus para os homens e para o mundo. Por outro lado, é homem do seu tempo, mergulhado na realidade e nos desafios da sociedade em que se integra; conhecedor do mundo, é capaz de entender, em leitura crítica, os problemas, os dramas e as infidelidades dos contemporâneos. E, ao contemplar o desígnio de Deus e a vida do mundo, apercebe-se do desfasamento entre as duas realidades.  

Perante isto, a tentação pode ser a de alijar a responsabilidade dizendo que não é nada com ele e, fechando-se na sua zona de conforto, passar a ignorar a infidelidade dos homens ao desígnio de Deus. Porém, cônscio do mandato que recebeu de Deus, o profeta tem que dizer a todos, doa a quem doer – mesmo que os seus concidadãos não o compreendam ou recusem escutá-lo – que enveredar por escolhas erradas e continuar a trilhar os caminhos errados apenas conduz à infelicidade, ao sofrimento, à morte. Assim, o profeta feito sentinela é um sinal vivo do amor de Deus pelo seu Povo. Foi Deus quem o chamou e enviou em missão, quem lhe dá a coragem do testemunho, quem o apoia em momentos de crise, desilusão e solidão. Assim, sendo a prova de que Deus continua a oferecer ao seu Povo caminhos de salvação e de vida, demonstra, sem margem para dúvidas, que Deus não quer a morte do pecador, mas que ele se converta e viva.  

No livro de Ezequiel (Ez 33,7-9), é expressamente afirmado que a sentinela, se não advertir o ímpio de que o Senhor o avisou de que vai morrer, há de prestar contas da morte do ímpio, a menos que o ímpio, insistentemente advertido, não lhe dê ouvidos, caso em que o ímpio morrerá devido à sua impiedade, mas a sentinela, tendo avisado o ímpio, salvará a sua própria vida.

A este respeito, adverte Dom António Couto, Bispo de Lamego, que Ezequiel nos lembra “a nossa condição de sentinelas atentas e ativas, sensíveis, sempre sintonizadas em Hi-Fi, velando para que não se desperdice a força performativa da Palavra de Deus”, mas adverte para o aviso de Isaías, no sentido de que “todas as sentinelas são cegas: não entendem; todas como cães mudos: incapazes de ladrar; sonham, ficam deitadas, gostam de dormir(Is 56,10), pelo que temos de estar vigilantes, de olhos bem abertos e, como nos desafia São Paulo (Rm 13,8-10), devemos ter sempre boa consciência para sabermos que temos uns para com os outros uma bela dívida a pagar todos os dias: o amor mútuo” – uma dívida a que não podemos escapar, não nos sendo permitido declarar insolvência.

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Por seu turno, o Evangelho de Mateus (Mt 18,15-20) proclamado neste XXIII domingo do Tempo Comum, Ano A, num contexto eclesial, em que todos somos, pelo Batismo, profetas/sentinelas e vocacionados ao apostolado ou envio missionário, estende a obrigação da advertência a todos e cada um de nós. Na verdade, o cap. 18 do Evangelho mateano configura o “discurso eclesial”, ou seja, uma catequese sobre a experiência de caminhada em comunidade, ampliando algumas instruções apresentadas por Marcos sobre a vida comunitária (cf Mc 9,33-37.42-47) e compondo um dos 5 grandes discursos do seu Evangelho. Os destinatários desta “instrução” são os discípulos e, mediante eles, a comunidade a que Mateus se dirige.

Nessa comunidade, normal como tantas outras, há tensões entre grupos e problemas de convivência; irmãos que se julgam superiores aos outros e que querem ocupar os primeiros lugares; irmãos que tomam atitudes prepotentes e escandalizam os pobres e os débeis; irmãos que magoam e ofendem outros membros da comunidade; irmãos que têm dificuldade em perdoar as falhas e os erros dos outros. A atalhar a este quadro, Mateus redigiu uma exortação apostólica a convidar à simplicidade e humildade, ao acolhimento dos pequenos, dos pobres e dos excluídos, ao perdão e ao amor, delineando um modelo de comunidade para os cristãos de todos os tempos, pois a comunidade de Jesus tem de ser família de irmãos, em harmonia e atenção aos pequenos e débeis, na escuta dos apelos e conselhos do Pai e na vivência do amor.

Dom António Couto recorda que, em março de 1947, Muhammed ed-Dib, da tribo dos pastores beduínos Taʼamireh, descobriu nas 11 grutas de junto do Mar Morto os manuscritos da comunidade essénia de Qumran, que ali vivera entre os séculos II aC e I dC. Pelo seu conteúdo, um dos manuscritos foi intitulado de Regra da Comunidade ou Manual de Disciplina, uma espécie de ‘regra monástica’ para orientar a vida da comunidade, contendo uma série de sanções com que eram penalizados os transgressores. A Regra dedica um dos capítulos à correção ou promoção fraterna estabelecendo:

Corrijam-se mutuamente com verdade, humildade e bondade. Ninguém fale ao seu irmão com ira, resmungando e com maldade, mas advirta-o no mesmo dia em que comete a falta, para não carregar ele mesmo com a culpa. Ninguém advirta o seu próximo diante de todos, se primeiro não o fez perante algumas testemunhas.” (V,24-26; VI,1).

Tendo em conta o teor da Regra da Comunidade de Qumran e o do discurso eclesial de Mateus, tem o discurso deste sido, muitas vezes, visto como A Regra da Comunidade Cristã. E ressalta a prática da correção fraterna ou promoção fraterna, “a levar por diante de forma gradativa e sempre com o perdão no coração e no horizonte”: “primeiro, tu a tu, a quatro olhos, dois corações; depois, com o recurso a testemunhas; finalmente, na assembleia, sempre multiplicando os olhos e os corações” – ou seja, “multiplicando sempre a atenção e o amor”.

A 1.ª parte do fragmento do “discurso eclesial” em causa refere-se, pois, ao modo de proceder para com o irmão que errou e que provocou conflitos no seio da comunidade. Neste quadro, as decisões radicais e fundamentalistas – como condenar sem mais e marginalizar o infrator – raramente são cristãs. É preciso tratar o problema com bom senso, com maturidade, com equilíbrio, com tolerância e, acima de tudo, com amor.

Mateus propõe, como se disse, uma via em várias etapas. Primeiro, é de promover um encontro pessoal com esse irmão, em privado (metaxy soû kaì autoû mónou), falando-se com ele cara a cara sobre o problema, nunca dizendo mal “por trás”, não publicitando a falta, não criticando publicamente (ainda que não se invente nada) e muito menos espalhando boatos, caluniando, difamando, mas usando do confronto pessoal, leal, honesto, sereno, compreensivo e tolerante com o irmão. Se essa via resultar, está ganho o irmão. Mas, se não resultar, passa-se a outra etapa, que postula o recurso a outros irmãos (“toma contigo uma ou duas pessoas”: parálabe metà soû éti éna ê dúo, hína epì stómatos dúo martúrôn ê triôn stathê pân rhêma – diz Mateus – v. 16) que, com serenidade, sensibilidade e bom senso, sejam capazes de fazer o infrator perceber o sem sentido do seu comportamento. Se essa tentativa falhar, resta o recurso à comunidade (eipòn têi ekklesíâi). A comunidade será então chamada a confrontar o infrator, a recordar-lhe as exigências do caminho cristão e a pedir-lhe uma decisão. O Padre Porfírio Sá recomenda cautela a pessoas que se armam em frontais e presumindo que dizem toda a verdade ao outro: podem estar a exagerar ou a dizer apenas a sua verdade.

E, se o infrator se obstinar no seu comportamento, a comunidade terá de reconhecer, com dor, a situação em que o irmão se pôs e aceitar que esse comportamento o colocou à margem da comunidade. Mateus adverte que o faltoso será considerado como “o pagão e o cobrador de impostos(v. 17b: ho éthnikòs kaì ho telônês – o grego usa o artigo definido).

Porém, isto não significa que os pagãos e os cobradores de impostos não têm lugar na comunidade de Mateus. Ao usar este exemplo, o autor não pretende referir-se a indivíduos, mas a situações. Trata-se de pessoas que estão instaladas em situações de erro, que se obstinam no mau proceder e recusam todas as oportunidades de integrar a comunidade da salvação. Mateus não sugere que a Igreja possa excluir da comunhão qualquer irmão. Com efeito, a Igreja é realidade divina e humana, onde coexistem a santidade e o pecado. O que Mateus sugere é que a Igreja tem de tomar posição quando algum dos membros, consciente e obstinadamente, recusa a proposta do Reino e realiza atos que estão frontalmente contra as propostas de Cristo. Contudo, não é a Igreja que exclui o prevaricador: é ele que, pelas suas opções, se coloca à margem da comunidade. À Igreja cabe, no entanto, verificar o facto e agir em consequência.

Subjaz ao itinerário proposto que tem de ser sempre o amor fraterno a mover esta importante prática eclesial – que o Padre Porfírio Sá lamenta que tenha caído cada vez mais em desuso –, e não o subtil sentimento, que não raro se apodera de nós, de que somos melhores que o irmão que erra. Contra este pretensiosismo está a clave de abertura deste momento do discurso eclesial, com os discípulos de Jesus (connosco, portanto) a entreterem-se com a questão de quem é o maior (Mt 18,1) e com a paradigmática resposta de Jesus, chamando uma criança e dando-lhe o lugar do meio (Mt 18,2), tornando-a o maior do Reino. Por outro lado, devemos saber que “só podemos abeirar-nos de alguém para o advertir, tendo nós o nosso olhar límpido e puro”, como adverte o Evangelho de Mateus noutra passagem e que o Padre Porfírio Sá também explicitou:

Como podes dizer ao teu irmão: deixa-me tirar o argueiro do teu olho, se no teu há uma trave? Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e depois verás bem para tirar o argueiro do olho do teu irmão.” (Mt 7,4-5).

Considera o Bispo de Lamego que talvez fiquemos tranquilos com a declaração final do itinerário mateano de correção/promoção: “seja para ti como o pagão e o publicano!(Mt 18,17). Mas é preciso reparar que o próprio Jesus Se tornou companheiro de viagem e de mesa de publicanos e de pecadores, pois Ele que veio curar, não os que têm saúde, mas os doentes (cf Mt 9,12; Lc 5,31-32). Por outro lado, há que ter em conta que Mateus era publicano. Porém, Jesus abeirou-se dele um dia, quando Mateus, o publicano, estava sentado no seu telónio, um pouco a norte de Cafarnaum, cobrando impostos e ouvindo insultos dos concidadãos. Os insultos não demoveram Mateus. Mas Jesus aproximou-se, olhou-o com amor indescritível e disse-lhe: “Segue-me!(Mt 9,9). Mateus levantou-se e seguiu Jesus, e foi fazer a grande festa para celebrar a página nova que Jesus acabara de abrir na sua vida triste e cansada. De facto, é admirável “aquele olhar criador de Jesus, que fez Mateus levantar-se do lodaçal e perceber o poder da lógica do amor e do perdão e de saber bem que é Jesus que está no meio” (en mésô autôn).

Por isso, o “seja para ti como o pagão e o publicano(cobrador de impostos) não significa um ponto final no trabalho de perdão e amor devidos a um irmão, ficando de consciência tranquila.

Costumo dizer que essa hipótese de desenlace implica maior atenção e a procura de um momento mais oportuno de voltar à carga da promoção fraterna. Nunca pode implicar desistência de recuperar o irmão. E Dom António Couto – muito bem – avisa que este “seja para ti como o pagão e o publicano” é “virar a página da análise fria e da metodologia cultural, social e profissional em curso, e começar tudo de novo, absolutamente de novo, usando agora a metodologia absolutamente nova de Jesus”. E adverte:

A não ser assim, também já podemos antecipar que o nosso ponto final posto ao trabalho do perdão esbarraria logo a seguir com a lógica do ‘setenta vezes sete’ de Jesus para Pedro (Mt 18,21-22) e do Senhor da história seguinte, que é Deus, e que, de uma assentada, perdoa a um pobre servo a módica quantia de mais coisa menos coisa como o equivalente a 174 toneladas de ouro! (Mt 18,23-27). Note-se também que os três episódios são exclusivos de Mateus e veja-se o quão importante é termos feito um dia a experiência do perdão! Decisivo na pessoa de Mateus, e em todo o seu Evangelho, é ter sido perdoado e chamado por Jesus!”.

***

Depois da instrução sobre a correção/promoção fraterna, Mateus acrescenta, em 2.ª parte, três ditos de Jesus (cf Mt 18,18-20) que, originalmente, seriam independentes da temática precedente, mas que Mateus encaixou neste contexto com forte sentido eclesial.

O primeiro (v. 18) refere-se ao poder, conferido à comunidade, de “ligar” e “desligar”, expressões para designar o poder de interpretar a Lei com autoridade, de declarar o que era ou não permitido e de excluir (?) ou reintroduzir alguém na comunidade do Povo de Deus, mas que, aqui, significam que a comunidade (algum tempo antes – cf Mt 16,19 – Jesus dissera estas mesmas palavras a Pedro; mas aí Pedro representava a totalidade da comunidade dos discípulos) tem o poder de interpretar as palavras de Jesus, de acolher os que aceitam as suas propostas e de advertir os que não estão dispostos a seguir o caminho que Jesus propõe, de modo que pensem e possam voltar. Trata-se de acrescentar uma competência sujeita à obrigação de admoestar com caridade, como decorria do ato de fé da Igreja (pela voz de Pedro Mt 16,17-18) e se retomará com base no amor (Jo 21,15ss).

O segundo (v. 19) sugere que as decisões graves para a vida da comunidade devem ser tomadas em clima de oração comunitária (alimentada pela oração pessoal e com predisposição para o encontro comunitário, em que está Jesus), sendo que Jesus assegura aos discípulos, reunidos em oração, que o Pai os escutará. E o terceiro (v. 20) garante aos discípulos a presença de Jesus no meio da comunidade, sugerindo-se que as tentativas de correção e de reconciliação entre irmãos, no seio da comunidade, terão o apoio e a assistência de Jesus, como não podia deixar de ser.

Efetivamente, quem não reza não perdoa, quem não perdoa não pode usar do poder das chaves, quem não usa devidamente do poder das chaves terá dificuldade em amar e em servir. Ora, como pode ser profeta/sentinela e apóstolo/missionário quem não reze, não perdoe, não ligue/desligue, não ame e não sirva?

Como é que nos entretivemos tantos séculos com interdições, excomunhões e marginalizações?

2020.09.06 – Louro de Carvalho


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