Não se podem definir limites à criatividade, quer seja
para assinalar o centenário de Fátima, quer seja para assinalar a peregrinação
do Papa Francisco ao Santuário da Cova da Iria.
Na verdade, depois do Pórtico simbólico que marca a
mística do Ano Jubilar Mariano e do terço gigante de Joana Vasconcelos, para emoldurar
escultórica e luzidamente o conjunto das principais celebrações centenárias, a
cidade de Fátima acaba de receber um coração gigante de homenagem ao
Papa Francisco e “às pessoas boas como ele”.
Trata-se de uma escultura da autoria de Fernando Crespo, escultor residente
em Coimbra, que delineou um coração gigante chamado Francisco, em vermelho e
com uma cruz de cada um dos lados. De facto, a obra figurativa de cerca de 12
metros de altura e 12 de largura, intitulada “Francisco, o maior coração do mundo”, tem dois segmentos, que
juntos representam um coração e é nominalmente dedicada ao Papa, que visita
Fátima como peregrino, na próxima sexta-feira e sábado (12 e 13 de
maio), para a celebração do Centenário
das Aparições e para a canonização dos pastorinhos Jacinta Marto e Francisco
Marto, dois dos videntes das Aparições do Anjo da paz e de Nossa Senhora.
Assente numa base de betão de “88 toneladas”, a escultura pretende ser “uma
homenagem a um homem simples” e de uma “humanidade que é tocante”, como
sublinhou o escultor durante a sessão de apresentação (no
largo junto ao Posto de Turismo de Fátima), que
pretendeu que a peça fosse singela e bonita e longe de ser “beata”, mas que,
através de materiais inertes como o aço, pudesse “deixar um recado muito mais
afetivo” a quem a observe e contemple.
A estrutura em aço conta com uma figura humana, em bronze, de cada um dos
dois lados, que pode, segundo o artista, ser “um peregrino ou qualquer um de
nós” e que caminha no coração em direção à “terra”. E Crespo assegurou que
pretendeu representar “o lado efémero da vida”.
Os dois lados do coração representam “as várias dicotomias da vida humana”;
e a predita figura humana instalada em cada um dos lados a descer até ao fundo
é, na perspetiva e na tentativa do autor, uma figuração andrógina a fim de
poder representar todas as pessoas.
Nas placas vermelhas figura também a cruz, “símbolo da Igreja Católica”, de
onde desponta uma “ramificação que pode ser uma árvore ou veias”, simbolizando
“a difusão de determinados princípios e de determinados valores”, como explicou
o escultor. Tanto a figuração da árvore com a das veias remete para o campo
semântico da vida.
A escolha da
cruz envolta em ramos de árvore como ícone tem a ver com a simbologia deste
signo e instrumento de salvação no âmbito da fé católica e com a expressão local
da missão de evangelizar. Não sendo uma obra beata, a cruz empresta à escultura
o traço de união das pessoas que visitam Fátima. O autor confessa que, “se
fosse num país muçulmano, colocaria outro símbolo” e refere que “a arte urbana
tem de dizer alguma coisa às pessoas”.
O monumento, que fica instalado atrás da Basílica da Santíssima Trindade, é
uma oferta da Câmara Municipal de Ourém à cidade por ocasião da visita do Papa
Francisco ao Santuário de Fátima, constituindo um dos contributos simbólicos do
município para as celebrações centenárias. Todavia, questionado pela agência Lusa, Fernando Crespo afirmou que pagou
“o custo da obra” e que “não houve mecenas”, apesar de ter sido referido em
várias reuniões da Câmara de Ourém que a escultura tinha sido custeada a partir
de mecenato. E o escultor escusou-se a revelar qual o valor total dos custos da
escultura, cuja instalação em Fátima foi suportada pela Câmara de Ourém.
Pretendendo
que o coração gigante se torne “em mais um dos ícones da cidade de Fátima”, o
artista escultor revela que já tinha a ideia de executar uma obra com este
formato, pois “o coração representa a nossa humanidade mais orgânica, a
capacidade de amar que nós temos”. E Fernando Crespo queria com este desenho
“unir pessoas”. Uma das primeiras ideias que teve foi a de fazer uma série de
esculturas, para instalar uma em cada país da CPLP (Comunidade
dos Países de Língua Portuguesa), mas a
ideia nunca avançou.
O autor
aproveitou então o convite da Câmara Municipal de Ourém para concretizar de
certo modo um dos seus emblemáticos sonhos e apresentou a proposta, tendo o
município ficado responsável pela instalação do momento.
Apesar de
não ter sido revelado o seu exato custo, estima-se que o custo da peça tenha rondado
os 500 mil euros.
A diocese de
Leiria-Fátima aprovou a instalação da obra e a inauguração, realizada pelas 12 horas
de hoje, dia 10, contou com a presença de representantes do Santuário de Fátima
e da diocese de Leiria-Fátima.
***
Também Dom António Marto, Bispo de Leiria-Fátima, disse da sua justiça para
classificar o coração gigante como “uma obra monumental que fica aqui como
memorial de um acontecimento de alcance histórico-mundial, que é o Centenário
das Aparições”. Nesta peça artística, o prelado vê representado “o coração de
uma mãe, que é o maior”, mas também o coração “grande dos filhos pequeninos,
muito acolhedor, sem muros”, que depois os adultos, por vezes, constroem.
Vê outrossim na escultura “o coração do papa Francisco”, um “coração
grande” de uma pessoa que procura “deitar por terra os muros” que foram
levantados e que, ao mesmo tempo, incita à criação de “pontes, de abraços, de
afetos e de entendimentos”.
Por seu
turno, o Presidente da Câmara Municipal, Paulo Fonseca, lembrou que a peça é o
resultado de uma conversa com o escultor há bastante tempo, mas que o município
não tinha condições económicas para a financiar. Por isso, chegou-se a acordo e
o município ficou com a tutela, suportando os custos de implementação da obra,
e Fernando Crespo os direitos de autor.
***
Embora a
arquitetura exterior originária do Santuário de Fátima não seja modelar e o
ordenamento do território do burgo que hoje tem o estatuto de cidade seja tudo
menos ordenamento, vale a pena atentar no esforço despendido ao longo dos anos
para que o Santuário ganhe funcionalidade em relação ao espírito multiforme da
Mensagem – mariano, cristológico e trinitário – valorizando as suas diversas
componentes: penitência e oração, sacrifício e reparação, adoração e
contemplação, valorização da infância e dos que apresentam fragilidades.
Depois, releva o cuidado dos espaços e serviços de modo que os peregrinos se
sintam acolhidos, se sintam em comunhão na multidão, tenham acesso ao lugar
memorialista das aparições e se ponham em contacto com o silêncio e a
inspiração de Maria. E é pertinente a organização do serviço, que tanto
privilegia a Capelinha das Aparições como as celebrações nas duas basílicas – a
de Nossa Senhora do Rosário e a da Santíssima Trindade – ou a simplicidade solene
do Altar emoldurado pelo Recinto de Oração.
Por outro
lado, deve considerar-se a existência de espaços que favorecem a cultura e a
formação das pessoas e, em especial dos agentes da pastoral, complementados pela
oferta acolhedora e formativa de muitos institutos religiosos ali instalados. E
não podemos esquecer a multiplicidade de elementos escultóricos, tanto os de
feição mais tradicional como os de feição mais arrojada que visam o
embelezamento, a memória e a vivência da fé.
Porém, o itinerário típico das grandes peregrinações é edificante, quer do
lado do acompanhamento da piedade popular como do incremento à vivência
litúrgica. Com efeito, recitar o terço na Capelinha das Aparições, rumar em
procissão caminhando com a Mãe ao encontro de Cristo para a Celebração
Eucarística ou no Altar do Recinto de Oração ou na Basílica da Santíssima
Trindade e, depois, continuar com a vigília de oração e procissão eucarística ou,
no dia, com a bênção dos doentes e a procissão do Adeus são componentes de um
itinerário peregrino que alia a alma popular com o sentido do arejado culto
público.
Razão tinha Bento XVI quando confessava a Dom António Marto que não havia
nada na Igreja Católica como Fátima. De facto, quando visitei o Santuário de
Lourdes, não vi a mesma coerência entre os espaços ou entre os serviços, mas
admito que tenha mudado. Era edificante o silêncio junto à Gruta, tal como a
caótica dispersão e o ruído excessivo na esplanada. Achei uma ternura o
percurso da via-sacra dos doentes, mas as celebrações na “Prairie” não
mobilizavam o grosso dos peregrinos. E os atos religiosos – litúrgicos ou da
piedade popular valiam por si, mas sem a concatenação que se vêm em Fátima.
E creio que, apesar das críticas demolidoras que algumas almas já
desferiram contra a obra de Joana Vasconcelos, apraz-me olhar para o terço
monumental de contas brancas que se suspende à frente da Basílica da Santíssima
Trindade para se mostrar aos peregrinos como ícone mariano emblemático do
Centenário e iluminar as grandes celebrações centenárias. Nem toda a arte tem
de corresponder aos parâmetros do convencionalismo das escolas nem estas detêm
o monopólio da criatividade e da estética. Também a arte ingénua e do desperdício
tem lugar junto do Santuário, desde que se faça Bíblia dos Simples.
E o Coração do Papa, se for recebido como ícone da Cidade de Deus que se
torna cidade dos homens, revelará o amor do Coração da Mãe e/ou do Coração do
Filho que está presente como refúgio de todos e todas que sentem o acossamento
das vicissitudes da vida e pretendem neste asilo de acolhimento desfiar o
rosário dos seus dramas, para que os superem, ou depositar o tesouro das suas
esperanças, para que elas se robusteçam.
Talvez seja conveniente que as pessoas e os povos comecem a interessar-se,
pela via da metanoia, para a concretização do triunfo do Coração Imaculado, que
outra coisa não é que a realização mariana do desígnio de Cristo: “Eu venci o mundo” (Jo 16,33).
2017.05.10 – Louro de Carvalho
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