segunda-feira, 29 de maio de 2017

Legislação sobre descentralização estará pronta antes das autárquicas

Desfazendo o equívoco que passara para a comunicação social de que a propalada reforma descentralizadora estaria pronta só depois das eleições para as autarquias locais, António Costa, Secretário-Geral do PS e Primeiro-Ministro, comunicou, ao encerrar em Bragança as jornadas parlamentares do seu partido, que o Governo já fez chegar à ANMP (Associação Nacional de Municípios) onze diplomas, num total de quinze.
Assim, Costa garante que a reforma legal estará pronta a tempo do novo mandato autárquico. Aliás, eu achava estranho que, sendo esta matéria de tal importância, o Governo estivesse a fazer um desnecessário compasso de espera alegadamente para não perturbar a dinâmica eleitoral autárquica. E, sim, o Secretário-Geral do PS, no discurso com que fechou as jornadas parlamentares do PS, assegurou que os autarcas que forem eleitos nas próximas eleições autárquicas (a 1 de outubro) serão a “primeira geração” a governar os municípios e as freguesias com um quadro legal completamente diferente.
Os onze diplomas que chegaram à ANMP devem ser aprovados na Assembleia da República (AR) ainda antes das férias de verão. Com efeito, Costa declarou ao DN a sua intenção de ter todo o pacote legislativo aprovado quando o novo ciclo autárquico se iniciar, incluindo nesse pacote uma nova lei das finanças locais – a qual, porém, só chegará a São Bento depois das férias de verão. E aproveitou o ensejo para confirmar que, a partir do próximo dia 1 de junho, serão revogados todos os cortes de 10% no subsídio de desemprego que fazem com que milhares de beneficiários recebam essa prestação num valor abaixo do IAS (Indexante dos Apoios Sociais), medida que beneficiará cerca de 140 mil pessoas que estavam sob esse risco.
O líder dos socialistas aproveitou ainda a ocasião para – sem se referir aos partidos parceiros do PS na maioria parlamentar de esquerda – se congratular com os resultados da governação, que foram alcançados através de políticas opostas às do Governo PSD/CDS, explicitando:
“Provamos que é possível outro caminho, haver uma alternativa, que produz melhores resultados. Provamos que é possível fazer diferente e fazer melhor. Temos de provar que este resultado pode ser melhorado, beneficiar mais portugueses e mais regiões.”.
Depois, acrescentou:
“Temos de estar ansiosos para resolver os problemas que ainda afetam muitos portugueses. O trabalho não está acabado é preciso continuar com muita ambição. Fingir que os problemas não existem ou adiar soluções não resolve nada.”.
Por outro lado, no discurso de encerramento da Convenção Nacional Autárquica do PS, em Lisboa, a 6 de maio, o Secretário-Geral do PS desafiou os líderes dos restantes partidos com assento parlamentar a esclarecer se acompanham o Governo na proposta da descentralização e se têm vontade política para concretizar esta reforma. Disse:
“Aquilo que eu quero saber, agora que vejo todos os líderes partidários a percorrerem o país, tecendo loas ao poder local democrático, elogiando o excelente trabalho dos autarcas e dizendo que os autarcas são a maior maravilha do mundo, eu quero saber se na Assembleia da República acompanharão ou não acompanharão o Governo para fazermos uma reforma que seja para todo o poder local democrático”.
Costa quer saber, porque tem isso como fundamental, se os partidos têm vontade política para concretizar” a descentralização, em que o executivo tem trabalhado intensamente com a ANMP e a ANAFRE (Associação Nacional de Freguesias) e sobre a qual tem dito, na AR, “que quer o mais amplo consenso possível na aprovação desta reforma”. E, neste sentido, sublinhou:
“Nós queremos concretizar esta reforma, queremos que ela seja concretizada antes das eleições autárquicas para que não seja para o A nem para o B, mas que seja para todos aqueles que, com a total liberdade, os portugueses venham a eleger no próximo dia 1 de outubro”.
Considerando que esta “não pode ser a reforma do PS”, mas que tem que ser uma reforma de todos” por estar seguro de que “juntos fazemos melhor”, entende que deve “entrar em vigor no próximo 1 de janeiro de 2018” para que o seja, “simultaneamente, para todos os municípios e todas as freguesias e não negociado com contratos-programa de acordo com os olhos ou a vontade deste ou daquele” titular do poder autárquico. E, apelando a que não se criem “debates artificiais” na que pensa ser a principal reforma que temos que fazer no nosso Estado, referiu:
“Vai ser na Assembleia da República, onde temos toda a abertura para estudar os projetos-lei que queiram apresentar, para que introduzam alterações às nossas propostas, para que as possam melhorar, para que exijam os estudos que entendam necessário”.
António Costa quer que os municípios e as freguesias “tenham mais e melhores competências” e “mais e melhores meios” que beneficiem todos os que vivem em Portugal, recusando que o Estado se esteja a querer desresponsabilizar. E, embora manifeste um “enorme orgulho no trabalho dos 150 presidentes de câmara e dos 1282 presidentes de junta” socialistas, o líder do PS sabe “que há excelentes autarcas em todos os outros partidos”, pelo que “não se trata de dar mais poder e mais dinheiro às câmaras e freguesias do PS, mas a todas de todo o país”.
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Sobre o desafio lançado aos outros partidos pelo Primeiro-Ministro, o PSD fez saber que a sua postura em sede parlamentar de acompanhamento das intenções do Governo depende do facto de este concitar o consenso dos autarcas em relação à transferência de mais competências para as autarquias.  
Por seu turno, o secretário-geral do PCP defendeu em Peniche, na apresentação do cabeça de lista à câmara municipal, Rogério Cação, uma descentralização para as autarquias diferente da do PS. Para Jerónimo de Sousa, a descentralização do PS “vezes sem conta anunciada, mas tão pouco consagrada, tem servido de pretexto para adiar e inviabilizar a efetiva descentralização que se impunha realizar no país”. Assim, o líder comunista pretende, em alternativa, uma descentralização que “envolva não apenas o poder de executar e pagar, mas também o poder de decidir”, sustentando que “competências sem meios são novos encargos inaceitáveis”.
Nesse sentido, Jerónimo de Sousa defende uma “lei-quadro, que defina com rigor as condições para a transferência de competências para as autarquias, um regime de financiamento baseado numa nova lei das finanças locais, que recupere os níveis de financiamento negados por sucessivos cortes e a criação de regiões administrativas”.
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Uma das áreas mais sensíveis e problemáticas da descentralização é a referente à matéria educativa. A proposta do Governo é para 2018, neste caso para 2018/2019 (respeitando o horizonte dos anos letivos). Porém, deixa alguns setores de fora da descentralização, como se verá adiante.
Competências que a maioria das câmaras municipais só detinham a nível da educação pré-escolar e do 1.º ciclo do ensino básico – por exemplo, a propriedade física das escolas, a tutela do pessoal não docente e a responsabilidade pela Ação Social Escolar, refeições, pequenas e grandes obras nos estabelecimentos, segurança e até a contratação de serviços como a água e eletricidade – vão ser integralmente entregues aos municípios, abrangendo agora todos os ciclos do ensino básico e do ensino secundário. É, pelo menos, este o teor da proposta do governo para a descentralização de competências na educação, documento que o Governo entregou à ANMP.
Nos termos do projeto de diploma legislativo, que prevê a implementação destas medidas a partir do ano letivo de 2018-19, apenas a tutela dos professores e de parte das escolas – algumas escolas agrárias, mas sobretudo as secundárias ora pertencentes à “Parque Escolar” (PE) – ficam fora da lista de recursos físicos e humanos a entregar às autarquias. Isto, apesar de o texto adiantar pouco sobre o modelo e os montantes desta enorme operação de descentralização.
É, porém, de referir que já existe um grupo de autarquias (ronda a centena) com boa parte das competências que o governo quer generalizar. São municípios que, em 2009, assinaram contratos de delegação de competências com o ME (Ministério da Educação), então liderado por Maria de Lurdes Rodrigues, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 144/2008, de 28 de julho, que desenvolve o quadro de transferência de competências para os municípios em matéria de educação, de acordo com o previsto no artigo 19.º da Lei n.º 159/99, de 14 de setembro. 
E há um segundo grupo que abrange um conjunto de 15 concelhos que, em 2015, integraram um projeto-piloto do governo PSD/CDS, assinando contratos interadministrativos com os ministérios da Educação e da Administração Interna, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 30/2015, de 12 de fevereiro, que estabelece o regime de delegação de competências do Estado nos Municípios nas áreas sociais, nomeadamente da educação, com base na Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro, que prevê a delegação de competências através de contratos interadministrativos a celebrar entre o Governo e cada um dos municípios. Estão nesta situação os municípios de Águeda, Amadora, Batalha, Cascais, Crato, Maia, Matosinhos, Mealhada, Óbidos, Oeiras, Oliveira de Azeméis, Oliveira do Bairro, Sousel, Vila Nova de Famalicão e Vila de Rei.
Acresce dizer que, nos últimos anos, aquando da construção de novo edifício escolar ou centro escolar, se tem utilizado muitas vezes o figurino do contrato-programa, de que resulta que o município se candidata aos fundos comunitários, oferece a sua comparticipação em dinheiro e/ou em espécie e se assume como dono da obra perante terceiros, entregando-a depois às entidades escolares.
Em termos de modelo, o projeto de proposta do Governo assemelha-se mais aos contratos de 2009 do que aos de 2015, desde logo por deixar a tutela dos professores fora da equação. O anterior governo ainda tentou dar aos municípios competências em matéria de recrutamento de professores e de gestão dos quadros das escolas, mas a medida enfrentou forte rejeição da classe docente. Além disso, os referidos projetos-piloto contemplavam o envolvimento dos municípios na definição de parte dos currículos, uma ideia que não é contemplada neste projeto de decreto governamental, o qual, no entanto, quer que sejam os municípios, mediante o envolvimento dos conselhos municipais de educação, a definir as políticas de combate ao abandono e insucesso escolar. E certamente no quadro da autonomia das escolas, em que pontifica o conselho geral, com a participação de representantes da autarquia respetiva, será descentralizada a flexibilização curricular e organizacional, sendo que 25% do currículo poderá ser definido a nível local.
A exclusão das escolas da PE (cerca de 200) dever-se-á às dificuldades burocráticas e orçamentais que envolveriam a entrega destas escolas às autarquias. A legislação que criou a empresa com o objetivo de requalificação dessas escolas prevê que a mesma fique proprietária dos espaços após as intervenções. O ME paga, através dos estabelecimentos, uma renda anual à PE, sendo a verba usada para amortizar e assegurar o serviço da dívida que, em 2015, excedia os mil milhões de euros. Para se tornarem donas das escolas, as autarquias teriam de assumir tais dívidas.
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No passado dia 15 de maio, decorreu, em Coimbra, uma conferência sobre descentralização, em que estiveram e intervieram diretores de escolas, que não chegaram a ser confrontados com qualquer versão do documento. Entre os diretores, uma das preocupações é que a transferência acabe por retirar às escolas parte da autonomia de que dispõem, nomeadamente a nível da gestão da disponibilidade do pessoal não docente. Com efeito, o diploma aponta para a centralização da gestão de todas as decisões a esse nível nas autarquias, desde o recrutamento à aprovação de mapas de férias. E, no que toca à gestão corrente de recursos humanos, de duas, uma: ou a autarquia ficará com a obrigação de ouvir o diretor de escola/agrupamento ou delega competências no respetivo diretor, não podendo refugiar-se no princípio abstruso de que quem paga manda. Por outro lado, a proposta do Governo entregará às câmaras a gestão de todos os não docentes, incluindo não só o pessoal auxiliar e administrativo, mas também os próprios técnicos, nomeadamente os da educação especial. E esta é uma questão que dificilmente será aceite pelos sindicatos de professores. Uma das exigências destas é que, por exemplo os professores de Língua Gestual Portuguesa, muitos dos quais estão há décadas nas escolas, integrem um grupo de recrutamento próprio enquanto docentes. Atualmente, para efeitos de contratação, são encarados como técnicos superiores. Não se pode nunca deixar de considerar os professores dos grupos de educação especial – os dos grupos 910 (educação especial 1), 920 (educação especial 2) e 930 (educação especial 3) – como professores.
Para os municípios passa também a ação social escolar, mas fora da descentralização de competências para as autarquias fica a distribuição de manuais escolares gratuitos, que se mantém na esfera do ME.
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A proposta para o setor da educação é um dos 11 diplomas setoriais referidos – de um total de 15 previstos – que já foram remetidos à ANMP pelo governo. Além deste, chegaram, entretanto, à ANMP duas propostas relativas à proteção civil, cultura, policiamento de proximidade, estacionamento público, captação de investimento, áreas protegidas, áreas portuárias e praias. E há diplomas que vão já numa 2.ª versão pelo facto de o texto inicial ter merecido reparos da ANMP, vindo o Governo a apresentar a proposta reformulada. É o caso, por exemplo, da segurança contra incêndios.
A ANMP vai apreciar todos os projetos dos novos decretos setoriais. Em paralelo com a negociação que decorre entre o Governo e as Autarquias, a AR está também a discutir na especialidade a proposta de lei-quadro para a descentralização (uma espécie de “lei-chapéu” para a transferência de competências setor a setor). E, para completar o pacote da legislação descentralizadora falta a revisão da Lei das Finanças Locais, que deverá ser o ponto mais difícil da negociação. Costa declarou que a nova lei, que vai enquadrar financeiramente a transferência de novas competências para as autarquias, só chegará ao Parlamento depois do verão.
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Apesar de não ser adepto da descentralização educativa, considero essencial o recrutamento de todos os que desempenham funções docentes ou equiparadas por concurso público nacional e geridos pela escola e pelo ME. Já a questão da autonomia (que se reforça em rede), apenas se desloca da escola para o município e desde que se mantenha intacto o teor do art.º 35.º do ECD, nada há a opor. Porém, pergunto-me: “ No quadro da escolaridade obrigatória de 12 anos, universal e gratuita, quem paga e quem gere a situação dos municípios que não têm oferta de ensino secundário ou têm uma oferta diminuta deste nível de ensino”?

2017.05.28 – Louro de Carvalho

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