Desfazendo o
equívoco que passara para a comunicação social de que a propalada reforma
descentralizadora estaria pronta só depois das eleições para as autarquias
locais, António Costa, Secretário-Geral do PS e Primeiro-Ministro, comunicou,
ao encerrar em Bragança as jornadas parlamentares do seu partido, que o Governo
já fez chegar à ANMP (Associação Nacional de Municípios) onze diplomas, num total de quinze.
Assim, Costa
garante que a reforma legal estará pronta a tempo do novo mandato autárquico.
Aliás, eu achava estranho que, sendo esta matéria de tal importância, o Governo
estivesse a fazer um desnecessário compasso de espera alegadamente para não
perturbar a dinâmica eleitoral autárquica. E, sim, o Secretário-Geral do PS, no
discurso com que fechou as jornadas parlamentares do PS, assegurou que os
autarcas que forem eleitos nas próximas eleições autárquicas (a 1 de
outubro) serão a “primeira geração” a
governar os municípios e as freguesias com um quadro legal completamente
diferente.
Os onze
diplomas que chegaram à ANMP devem ser aprovados na Assembleia da República (AR) ainda antes das férias de verão. Com efeito, Costa
declarou ao DN a sua intenção de ter
todo o pacote legislativo aprovado quando o novo ciclo autárquico se iniciar,
incluindo nesse pacote uma nova lei das finanças locais – a qual, porém, só
chegará a São Bento depois das férias de verão. E aproveitou o ensejo para confirmar
que, a partir do próximo dia 1 de junho, serão revogados todos os cortes de 10%
no subsídio de desemprego que fazem com que milhares de beneficiários recebam
essa prestação num valor abaixo do IAS (Indexante dos Apoios Sociais), medida que beneficiará cerca de 140 mil pessoas que
estavam sob esse risco.
O líder dos socialistas
aproveitou ainda a ocasião para – sem se referir aos partidos parceiros do PS
na maioria parlamentar de esquerda – se congratular com os resultados da
governação, que foram alcançados através de políticas opostas às do Governo
PSD/CDS, explicitando:
“Provamos
que é possível outro caminho, haver uma alternativa, que produz melhores
resultados. Provamos que é possível fazer diferente e fazer melhor. Temos de
provar que este resultado pode ser melhorado, beneficiar mais portugueses e
mais regiões.”.
Depois,
acrescentou:
“Temos de
estar ansiosos para resolver os problemas que ainda afetam muitos portugueses.
O trabalho não está acabado é preciso continuar com muita ambição. Fingir que
os problemas não existem ou adiar soluções não resolve nada.”.
Por outro lado, no discurso de encerramento da Convenção Nacional
Autárquica do PS, em Lisboa, a 6 de maio, o Secretário-Geral do PS desafiou os
líderes dos restantes partidos com assento parlamentar a esclarecer se
acompanham o Governo na proposta da descentralização e se têm vontade política
para concretizar esta reforma. Disse:
“Aquilo que
eu quero saber, agora que vejo todos os líderes partidários a percorrerem o
país, tecendo loas ao poder local democrático, elogiando o excelente trabalho
dos autarcas e dizendo que os autarcas são a maior maravilha do mundo, eu quero
saber se na Assembleia da República acompanharão ou não acompanharão o Governo
para fazermos uma reforma que seja para todo o poder local democrático”.
Costa quer
saber, porque tem isso como fundamental, se os partidos têm vontade política
para concretizar” a descentralização, em que o executivo tem trabalhado
intensamente com a ANMP e a ANAFRE (Associação Nacional de Freguesias) e sobre a qual tem dito, na AR, “que quer o mais
amplo consenso possível na aprovação desta reforma”. E, neste sentido,
sublinhou:
“Nós
queremos concretizar esta reforma, queremos que ela seja concretizada antes das
eleições autárquicas para que não seja para o A nem para o B, mas que seja para
todos aqueles que, com a total liberdade, os portugueses venham a eleger no
próximo dia 1 de outubro”.
Considerando
que esta “não pode ser a reforma do PS”, mas que tem que ser uma reforma de
todos” por estar seguro de que “juntos fazemos melhor”, entende que deve “entrar
em vigor no próximo 1 de janeiro de 2018” para que o seja, “simultaneamente,
para todos os municípios e todas as freguesias e não negociado com
contratos-programa de acordo com os olhos ou a vontade deste ou daquele”
titular do poder autárquico. E, apelando a que não se criem “debates
artificiais” na que pensa ser a principal reforma que temos que fazer no nosso
Estado, referiu:
“Vai ser na
Assembleia da República, onde temos toda a abertura para estudar os
projetos-lei que queiram apresentar, para que introduzam alterações às nossas
propostas, para que as possam melhorar, para que exijam os estudos que entendam
necessário”.
António Costa
quer que os municípios e as freguesias “tenham mais e melhores competências” e
“mais e melhores meios” que beneficiem todos os que vivem em Portugal,
recusando que o Estado se esteja a querer desresponsabilizar. E, embora
manifeste um “enorme orgulho no trabalho dos 150 presidentes de câmara e dos
1282 presidentes de junta” socialistas, o líder do PS sabe “que há excelentes
autarcas em todos os outros partidos”, pelo que “não se trata de dar mais poder
e mais dinheiro às câmaras e freguesias do PS, mas a todas de todo o país”.
***
Sobre o
desafio lançado aos outros partidos pelo Primeiro-Ministro, o PSD fez saber que
a sua postura em sede parlamentar de acompanhamento das intenções do Governo
depende do facto de este concitar o consenso dos autarcas em relação à
transferência de mais competências para as autarquias.
Por seu turno, o secretário-geral do PCP defendeu em Peniche,
na apresentação do cabeça de lista à câmara municipal, Rogério Cação, uma
descentralização para as autarquias diferente da do PS. Para Jerónimo de Sousa,
a descentralização do PS “vezes sem conta anunciada, mas tão pouco consagrada,
tem servido de pretexto para adiar e inviabilizar a efetiva descentralização que
se impunha realizar no país”. Assim, o líder comunista pretende, em
alternativa, uma descentralização que “envolva não apenas o poder de executar e
pagar, mas também o poder de decidir”, sustentando que “competências sem meios são
novos encargos inaceitáveis”.
Nesse sentido, Jerónimo de Sousa defende uma “lei-quadro, que
defina com rigor as condições para a transferência de competências para as
autarquias, um regime de financiamento baseado numa nova lei das finanças
locais, que recupere os níveis de financiamento negados por sucessivos cortes e
a criação de regiões administrativas”.
***
Uma das
áreas mais sensíveis e problemáticas da descentralização é a referente à
matéria educativa. A proposta do Governo é para 2018, neste caso para 2018/2019
(respeitando
o horizonte dos anos letivos). Porém,
deixa alguns setores de fora da descentralização, como se verá adiante.
Competências
que a maioria das câmaras municipais só detinham a nível da educação pré-escolar
e do 1.º ciclo do ensino básico – por exemplo, a propriedade física das
escolas, a tutela do pessoal não docente e a responsabilidade pela Ação Social
Escolar, refeições, pequenas e grandes obras nos estabelecimentos, segurança e
até a contratação de serviços como a água e eletricidade – vão ser
integralmente entregues aos municípios, abrangendo agora todos os ciclos do
ensino básico e do ensino secundário. É, pelo menos, este o teor da proposta do
governo para a descentralização de competências na educação, documento que o Governo
entregou à ANMP.
Nos termos do
projeto de diploma legislativo, que prevê a implementação destas medidas a
partir do ano letivo de 2018-19, apenas a tutela dos professores e de parte das
escolas – algumas escolas agrárias, mas sobretudo as secundárias ora
pertencentes à “Parque Escolar” (PE) – ficam fora da lista de recursos físicos e humanos a entregar às
autarquias. Isto, apesar de o texto adiantar pouco sobre o modelo e os
montantes desta enorme operação de descentralização.
É, porém, de
referir que já existe um grupo de autarquias (ronda a centena) com boa parte das competências que o governo quer
generalizar. São municípios que, em 2009, assinaram contratos de delegação de
competências com o ME (Ministério da Educação), então liderado por Maria de Lurdes Rodrigues, ao abrigo do Decreto-Lei n.º
144/2008, de 28 de julho, que desenvolve
o quadro de transferência de competências para os municípios em matéria de
educação, de acordo com o previsto no artigo 19.º da Lei n.º 159/99, de 14 de
setembro.
E há um
segundo grupo que abrange um conjunto de 15 concelhos que, em 2015, integraram
um projeto-piloto do governo PSD/CDS, assinando contratos interadministrativos
com os ministérios da Educação e da Administração Interna, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 30/2015, de 12 de
fevereiro, que estabelece o regime de delegação de competências do Estado nos
Municípios nas áreas sociais, nomeadamente da educação, com base na Lei n.º
75/2013, de 12 de setembro, que prevê a delegação de competências através de
contratos interadministrativos a celebrar entre o Governo e cada um dos
municípios. Estão nesta situação os municípios
de Águeda, Amadora, Batalha, Cascais, Crato, Maia, Matosinhos, Mealhada,
Óbidos, Oeiras, Oliveira de Azeméis, Oliveira do Bairro, Sousel, Vila Nova de
Famalicão e Vila de Rei.
Acresce dizer
que, nos últimos anos, aquando da construção de novo edifício escolar ou centro
escolar, se tem utilizado muitas vezes o figurino do contrato-programa, de que
resulta que o município se candidata aos fundos comunitários, oferece a sua
comparticipação em dinheiro e/ou em espécie e se assume como dono da obra
perante terceiros, entregando-a depois às entidades escolares.
Em termos de
modelo, o projeto de proposta do Governo assemelha-se mais aos contratos de
2009 do que aos de 2015, desde logo por deixar a tutela dos professores fora da
equação. O anterior governo ainda tentou dar aos municípios competências em
matéria de recrutamento de professores e de gestão dos quadros das escolas, mas
a medida enfrentou forte rejeição da classe docente. Além disso, os referidos projetos-piloto
contemplavam o envolvimento dos municípios na definição de parte dos
currículos, uma ideia que não é contemplada neste projeto de decreto governamental,
o qual, no entanto, quer que sejam os municípios, mediante o envolvimento dos
conselhos municipais de educação, a definir as políticas de combate ao abandono
e insucesso escolar. E certamente no quadro da autonomia das escolas, em que
pontifica o conselho geral, com a participação de representantes da autarquia
respetiva, será descentralizada a flexibilização curricular e organizacional,
sendo que 25% do currículo poderá ser definido a nível local.
A exclusão
das escolas da PE (cerca de 200) dever-se-á
às dificuldades burocráticas e orçamentais que envolveriam a entrega destas
escolas às autarquias. A legislação que criou a empresa com o objetivo de
requalificação dessas escolas prevê que a mesma fique proprietária dos espaços
após as intervenções. O ME paga, através dos estabelecimentos, uma renda anual
à PE, sendo a verba usada para amortizar e assegurar o serviço da dívida que,
em 2015, excedia os mil milhões de euros. Para se tornarem donas das escolas,
as autarquias teriam de assumir tais dívidas.
***
No passado
dia 15 de maio, decorreu, em Coimbra, uma conferência sobre descentralização,
em que estiveram e intervieram diretores de escolas, que não chegaram a ser
confrontados com qualquer versão do documento. Entre os diretores, uma das
preocupações é que a transferência acabe por retirar às escolas parte da
autonomia de que dispõem, nomeadamente a nível da gestão da disponibilidade do
pessoal não docente. Com efeito, o diploma aponta para a centralização da
gestão de todas as decisões a esse nível nas autarquias, desde o recrutamento à
aprovação de mapas de férias. E, no que toca à gestão corrente de recursos
humanos, de duas, uma: ou a autarquia ficará com a obrigação de ouvir o diretor
de escola/agrupamento ou delega competências no respetivo diretor, não podendo
refugiar-se no princípio abstruso de que quem paga manda. Por outro lado, a
proposta do Governo entregará às câmaras a gestão de todos os não docentes,
incluindo não só o pessoal auxiliar e administrativo, mas também os próprios
técnicos, nomeadamente os da educação especial. E esta é uma questão que
dificilmente será aceite pelos sindicatos de professores. Uma das exigências
destas é que, por exemplo os professores de Língua Gestual Portuguesa, muitos
dos quais estão há décadas nas escolas, integrem um grupo de recrutamento
próprio enquanto docentes. Atualmente, para efeitos de contratação, são
encarados como técnicos superiores. Não se pode nunca deixar de considerar os
professores dos grupos de educação especial – os dos grupos 910 (educação
especial 1), 920 (educação
especial 2) e 930 (educação
especial 3) – como professores.
Para os
municípios passa também a ação social escolar, mas fora da descentralização de
competências para as autarquias fica a distribuição de manuais escolares
gratuitos, que se mantém na esfera do ME.
***
A proposta
para o setor da educação é um dos 11 diplomas setoriais referidos – de um total
de 15 previstos – que já foram remetidos à ANMP pelo governo. Além deste,
chegaram, entretanto, à ANMP duas propostas relativas à proteção civil,
cultura, policiamento de proximidade, estacionamento público, captação de
investimento, áreas protegidas, áreas portuárias e praias. E há diplomas que
vão já numa 2.ª versão pelo facto de o texto inicial ter merecido reparos da
ANMP, vindo o Governo a apresentar a proposta reformulada. É o caso, por
exemplo, da segurança contra incêndios.
A ANMP vai
apreciar todos os projetos dos novos decretos setoriais. Em paralelo com a negociação
que decorre entre o Governo e as Autarquias, a AR está também a discutir na
especialidade a proposta de lei-quadro para a descentralização (uma espécie
de “lei-chapéu” para a transferência de competências setor a setor). E, para completar o pacote da legislação
descentralizadora falta a revisão da Lei das Finanças Locais, que deverá ser o
ponto mais difícil da negociação. Costa declarou que a nova lei, que vai
enquadrar financeiramente a transferência de novas competências para as
autarquias, só chegará ao Parlamento depois do verão.
***
Apesar de
não ser adepto da descentralização educativa, considero essencial o
recrutamento de todos os que desempenham funções docentes ou equiparadas por
concurso público nacional e geridos pela escola e pelo ME. Já a questão da
autonomia (que se reforça em rede), apenas se
desloca da escola para o município e desde que se mantenha intacto o teor do
art.º 35.º do ECD, nada há a opor. Porém, pergunto-me: “ No quadro da escolaridade
obrigatória de 12 anos, universal e gratuita, quem paga e quem gere a situação
dos municípios que não têm oferta de ensino secundário ou têm uma oferta
diminuta deste nível de ensino”?
2017.05.28 – Louro de Carvalho
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