Ainda
estão os portugueses a digerir os efeitos de Francisco, o peregrino da luz “na
paz e na esperança” e cá está o desmancha-prazeres do Louro de Carvalho a lembrar
coisas velhas – dirão alguns. Porém, devo dizer que o que me apraz lembrar tem
apenas 7 anos e alguns dias.
Dom
António Marto, Bispo de Leiria-Fátima, disse, em recente entrevista que sentiu
bem o repto de Bento XVI, quando o ouviu dizer aos peregrinos na sua homilia de
13 de maio de 2010:
“Mais sete
anos e voltareis aqui para celebrar o centenário da primeira visita feita pela
Senhora ‘vinda do Céu’, como Mestra que introduz os pequenos videntes no
conhecimento íntimo do Amor Trinitário e os leva a saborear o próprio Deus como
o mais belo da existência humana”.
Aqui
terá o prelado fatimita colhido a inspiração para promover as celebrações
centenárias no horizonte do septenário em vez da redução a uma celebração anual.
Além disso, aqui ficou vincada a ideia da Senhora, não como a Santinha com quem se fazem negócios por
baixo preço como disse o papa Francisco, mas a Mestra luminosa do
conhecimento de Deus trino, que é amor “saboreável”, porque é a verdadeira
Sabedoria ao dispor dos homens.
Também
Ratzinger não reduz aquele recinto de oração a um mariódromo, mas cita as
palavras da fé em Cristo, luminosa e ardente de Jacinta:
“Gosto
tanto de dizer a Jesus que O amo. Quando Lho digo muitas vezes, parece que
tenho um lume no peito, mas não me queimo.”.
E a confidência do Francisco:
“Do que
gostei mais foi de ver a Nosso Senhor, naquela luz que Nossa Senhora nos meteu
no peito. Gosto tanto de Deus!”.
E, se alguém se sentia com inveja destes
pastorinhos que tinham esta fé e este amor porque viram, teve de ouvir do Papa
as palavras de Cristo: “Não andareis vós
enganados, ignorando as Escrituras e o poder de Deus?” (Mc 12,24); e as Escrituras convidam-nos a crer, ‘Felizes os que acreditam sem terem visto’
(Jo 20,29).”. Depois, o Papa alemão, sem subvalorizar a maternidade
de Maria, salienta dela a fé em tudo quanto Lhe foi dito da parte do Senhor, citando
Jesus:
“E o entusiasmo que a sua sabedoria [de jesus de
Nazaré] e poder salvífico suscitavam nas pessoas de então era tal que uma
mulher do meio da multidão – como ouvimos no Evangelho – exclama: ‘Feliz Aquela
que Te trouxe no seu ventre e Te amamentou ao seu peito’. Contudo, Jesus
observou: ‘Mais felizes são os que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática’
(Lc 11,27.28). Mas quem tem tempo para escutar a sua
palavra e deixar-se fascinar pelo seu amor? Quem vela, na noite da dúvida e da
incerteza, com o coração acordado em oração? Quem espera a aurora do dia novo,
tendo acesa a chama da fé? A fé em Deus abre ao homem o horizonte de uma
esperança certa que não desilude; indica um sólido fundamento sobre o qual apoiar,
sem medo, a própria vida; pede o abandono, cheio de confiança, nas mãos do Amor
que sustenta o mundo.”
Depois, o afeto a Deus por Maria tem de incluir a
contrapartida do amor ao próximo. E Bento, para concluir pelo amor e pela paz, aponta
como exemplo os pastorinhos, que fizeram da sua vida uma doação a Deus e uma
partilha com os outros por amor de Deus:
“Nossa Senhora ajudou-os a abrir o coração à
universalidade do amor. De modo particular, a beata Jacinta mostrava-se
incansável na partilha com os pobres e no sacrifício pela conversão dos
pecadores. Só com este amor de fraternidade e partilha construiremos a
civilização do Amor e da Paz.”.
E, da parte de Deus, que procura justos para
salvar a cidade dos homens, adverte para a responsabilidade para com os irmãos,
a que os pastorinhos corresponderam fielmente:
Aqui revive aquele desígnio de Deus que interpela
a humanidade desde os seus primórdios: ‘Onde está Abel, teu irmão? […] A voz do
sangue do teu irmão clama da terra até Mim’ (Gn 4,9). O homem pôde despoletar um ciclo de morte
e terror, mas não consegue interrompê-lo… Na Sagrada Escritura, é frequente
aparecer Deus à procura de justos para salvar a cidade humana e o mesmo faz
aqui, em Fátima, quando Nossa Senhora pergunta: ‘Quereis oferecer-vos a Deus
para suportar todos os sofrimentos que Ele quiser enviar-vos, em ato de
reparação pelos pecados com que Ele mesmo é ofendido e de súplica pela
conversão dos pecadores?’ (Memórias da Irmã Lúcia, I, 162).”.
É a oferta a vida a Deus por Maria em prol da humanidade
pobre ou pecadora.
E
atente-se na missão que Bento XVI atribui à peregrina Mãe de Deus, a partir de
Fátima, frente aos desvarios da humanidade, e o desafio que lança a todos
quantos se associam aos videntes:
“Com a família humana pronta a sacrificar os seus
laços mais sagrados no altar de mesquinhos egoísmos de nação, raça, ideologia, grupo,
indivíduo, veio do Céu a nossa bendita Mãe oferecendo-Se para
transplantar no coração de quantos se Lhe entregam o Amor de Deus que arde no
seu. Então eram só três, cujo exemplo de vida irradiou e se multiplicou em
grupos sem conta por toda a superfície da terra, nomeadamente à passagem da
Virgem Peregrina, que se votaram à causa da solidariedade fraterna. Possam os
sete anos que nos separam do centenário das Aparições apressar o anunciado
triunfo do Coração Imaculado de Maria para glória da Santíssima Trindade.”.
De
facto, o Papa Ratzinger, no quadro do centenário da República, também veio a
Fátima como peregrino da esperança. Disse-o na primeira saudação em Lisboa, a
11 de maio de 2010:
“Venho como peregrino de Nossa Senhora de Fátima,
investido pelo Alto na missão de confirmar os meus irmãos que avançam na sua
peregrinação a caminho do Céu. […] A visita, que agora inicio sob o signo da
esperança, pretende ser uma proposta de sabedoria e de missão.”.
É claro que ilustra o que entende ser este quadro
de sabedoria:
“Veio do Céu a Virgem Maria para nos recordar
verdades do Evangelho que são para a humanidade, fria de amor e desesperada de
salvação, fonte de esperança. Naturalmente esta esperança tem como dimensão primária e
radical, não a relação horizontal, mas a vertical e transcendente. A
relação com Deus é constitutiva do ser humano: foi criado e ordenado para Deus,
procura a verdade na sua estrutura cognitiva, tende ao bem na esfera volitiva,
é atraído pela beleza na dimensão estética. A consciência é cristã na
medida em que se abre à plenitude da vida e da sabedoria, que temos em Jesus
Cristo.”.
E
situa o ser e o modo de agir da Igreja na liberdade e na pluralidade, cuja caminhada
de irmãos pretende confirmar, e no quadro da sabedoria que preconiza:
“De uma visão sábia sobre a vida e sobre o
mundo deriva o ordenamento justo da sociedade. Situada na história, a Igreja
está aberta a colaborar com quem não marginaliza nem privatiza a essencial
consideração do sentido humano da vida. Não se trata de um confronto ético
entre um sistema laico e um sistema religioso, mas de uma questão de sentido à
qual se entrega a própria liberdade. O que divide é o valor dado à problemática
do sentido e a sua implicação na vida pública. A viragem republicana, operada
há cem anos em Portugal, abriu, na distinção entre Igreja e Estado, um espaço
novo de liberdade para a Igreja, que as duas Concordatas de 1940 e 2004
formalizariam, em contextos culturais e perspetivas eclesiais bem
demarcados por rápida mudança. Os sofrimentos causados pelas mutações foram
enfrentados geralmente com coragem. Viver na pluralidade de sistemas de valores
e de quadros éticos exige uma viagem ao centro de si mesmo e ao cerne do
cristianismo para reforçar a qualidade do testemunho até à santidade, inventar
caminhos de missão até à radicalidade do martírio.”.
***
E, porque alguns salientaram, com razão, a forma
como o Papa Francisco reescreveu a Salve
Rainha (trabalho que o Pontífice
atribui ao Santuário), é de reter o núcleo teológico mariano de
Ratzinger na oração que proferiu aos pés de Maria na Capelinha das Aparições em
12 de maio daquele ano que já parece tão longínquo. Rezava Bento XVI (interrompido pelo coro e povo, que entoavam: “Nós
Te cantamos e aclamamos, Maria”):
“Senhora Nossa e Mãe de
todos os homens e mulheres, aqui estou como um filho que vem visitar sua Mãe e
o faz na companhia de uma multidão de irmãos e irmãs”.
Depois deste protesto de devoção filial em união
com a multidão, vem a relação do sucessor de Pedro, tão querido de Fátima, com
o Coração imaculado de Maria a quem apresenta, na linha da Gaudium et Spes (GS), as alegrias e esperanças, os problemas e as dores da humanidade:
“Como sucessor de Pedro, a
quem foi confiada a missão de presidir ao serviço da caridade na Igreja de
Cristo e de confirmar a todos na fé e na esperança, quero apresentar ao vosso
Coração Imaculado as alegrias e esperanças e também os problemas e as dores de
cada um destes vossos filhos e filhas, que se encontram na Cova da Iria ou nos
acompanham de longe”.
E,
no cerne do ato de consagração a Maria, pois Ela a todos e a cada um conhece e
ama, reconhece n’ Ela a benevolência maternal que brota do próprio coração de
Deus Amor:
“Mãe
amabilíssima, Vós conheceis cada um pelo seu nome, com o seu rosto e a sua
história, e a todos quereis com
a benevolência maternal que brota do próprio coração de Deus Amor. A todos
confio e consagro a Vós, Maria Santíssima, Mãe de Deus e nossa Mãe.”.
Recorda, como é natural em termos de sucessão
próxima, a tríplice peregrinação fatimita do Papa Polaco, notável pela sua idade
mariana, expressa no lema “Totus Tuus,
Maria”:
“O Venerável Papa João
Paulo II, que Vos visitou três vezes, aqui em Fátima, e agradeceu a ‘mão
invisível’ que o libertou da morte no atentado de 13 de maio, na Praça de São
Pedro, há quase 30 anos, quis oferecer ao Santuário de Fátima uma bala que o
feriu gravemente e foi posta na vossa coroa de Rainha da Paz. É profundamente
consolador saber que estais coroada, não só com a prata e o oiro das nossas alegrias
e esperanças, mas também com a bala das nossas preocupações e sofrimentos.”.
Tendo
reconhecido que a coroa da imagem de Maria retém a prata e o ouro das alegrias
e esperanças, mas também a bala das preocupações e sofrimentos, tudo no espírito
da GS, evoca agradecido as orações e
os sacrifícios que os videntes faziam (e hoje tantos fazem) pelo Papa:
“Agradeço, Mãe querida, as
orações e os sacrifícios que os Pastorinhos de Fátima faziam pelo Papa, levados
pelos sentimentos que lhes infundistes nas aparições. Agradeço também todos
aqueles que, em cada dia, rezam pelo Sucessor de Pedro e pelas suas intenções para
que o Papa seja forte na fé, audaz na esperança e zeloso no amor”.
A
oração definiu os anseios do Pontífice: forte
na fé, audaz na esperança e zeloso no amor. Mas vem, a seguir, o sentido da
oferta papal, não um sentido comercial por dádivas materiais, mas o da gratidão
pontifical pelas maravilhas operadas por Deus no coração dos peregrinos:
“Mãe querida de todos nós,
entrego aqui no vosso Santuário de Fátima, a Rosa de Oiro que trouxe de Roma, como
homenagem de gratidão do Papa pelas maravilhas que o Omnipotente tem realizado
por Vós no coração de tantos que peregrinam a esta vossa casa maternal”.
É momento para recordar que, na referida homilia,
o agora Papa emérito, evoca “a
filha excelsa deste povo de Deus” – “a Virgem Mãe de Nazaré, a qual, revestida
de graça e docemente surpreendida com a gestação de Deus que se estava operando
no seu seio, faz igualmente sua esta alegria e esta esperança [messiânicas
proclamadas em Isaías] no cântico do Magnificat: O meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador.
Porém, não se vê como privilegiada entre um povo estéril, antes profetiza-lhe
as doces alegrias duma prodigiosa maternidade de Deus, porque a sua misericórdia se estende de geração em geração sobre aqueles
que O temem (Lc 1,47.50).
E
finaliza esta oração de entrega com a certeza da visão comungante dos
pastorinhos – então dois beatos e uma serva de Deus:
“Estou certo que os
Pastorinhos de Fátima, os Beatos Francisco e Jacinta e a Serva de Deus Lúcia de
Jesus nos acompanham nesta hora de prece e de júbilo”.
Depois
de ler Bento XVI, que então também ouvi, e de ouvir e ler o Papa Francisco, pergunto-me
em que sentido é que se pode dizer que estes são menos marianos que São João
Paulo II.
***
Finalmente,
recordo alguns segmentos da saudação aos peregrinos antes do terço e da
procissão das velas a 12 de maio de 2010, corporizando o ser e a missão do
discípulo de Cristo:
“Lembrais
um mar de luz à volta desta singela capelinha, amorosamente erguida em honra da
Mãe de Deus e nossa Mãe, cujo caminho da terra ao céu foi visto pelos
pastorinhos como um rasto de luz. Contudo, nem Ela nem nós gozamos de luz
própria: recebemo-la de Jesus.”.
Ela
não é a fonte da luz: recebe-a de Jesus, tal como nós que somos luz do mundo. Depois,
diz:
“No nosso tempo em que a fé, em vastas zonas da
terra, corre o perigo de apagar-se como uma chama que já não recebe alimento, a
prioridade que está acima de todas é tornar Deus presente neste mundo e abrir
aos homens o acesso a Deus. Não a um deus qualquer, mas àquele Deus que falou
no Sinai; àquele Deus cujo rosto reconhecemos no amor levado até ao extremo (cf Jo 13,1) em Jesus Cristo crucificado e ressuscitado.[…] Adorai
Cristo Senhor em vossos corações (cf 1 Pe 3,15)! Não tenhais medo de falar de Deus e de
ostentar sem vergonha os sinais da fé, fazendo resplandecer aos olhos dos
vossos contemporâneos a luz de Cristo, tal como a Igreja canta na noite da
Vigília Pascal que gera a humanidade como família de Deus.”.
E ainda:
“Sinto que me acompanham a devoção e o afeto dos
fiéis aqui reunidos e do mundo inteiro. Trago comigo as preocupações e as
esperanças deste nosso tempo e as dores da humanidade ferida, os problemas do
mundo e venho colocá-los aos pés de Nossa Senhora de Fátima: Virgem Mãe de Deus
e nossa Mãe querida, intercedei por nós junto de vosso Filho para que todas as
famílias dos povos, quer as que se distinguem pelo nome cristão quer as que
ainda ignoram o seu Salvador, vivam em paz e concórdia até se reunirem
finalmente num só povo de Deus, para glória da santíssima e indivisível
Trindade.”.
Será
ainda possível dizer que Bento VXI não aproveitou o Santuário para a evangelização?
2017.05.23 – Louro de Carvalho
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